Brasil

Tolerância Zero e o manejo penal da insegurança social 

Placa do Departamento de Polícia de NYC na Times Square (Crédito: FxP42/Wikimedia/Creative Commons)

Quinto da série “Relações BR-EUA em matéria de Segurança Pública”

Por João Gaspar* [Informe OPEU] [Série] [Segurança pública] [Brasil-EUA]

No Informe anterior desta Série OPEU, vimos que se vem construindo, nos Estados Unidos e em vários países sob sua influência, um consenso securitário neoliberal em torno das ideias desenvolvidas com financiamento do Manhattan Institute. 

Já havendo analisado sua estratégia de inserção ideológica, no debate público, do material produzido pelos intelectuais por ele empregados, bem como o próprio processo de construção de um corpo teórico pseudo-acadêmico conhecido como Teoria das Janelas Quebradas, passemos agora ao estudo de como as ideias paridas em seu seio vieram a informar uma série de políticas públicas que promovem um manejo policial-penal da insegurança social. 

Pois bem. O processo de transformação da Doutrina de Tolerância Zero em política pública passa, originalmente, pela relação que Rudolph Giuliani, futuro prefeito da Cidade de Nova York, e William Bratton, futuro comissário-chefe do Departamento de Polícia da Cidade de Nova York (NYPD, na sigla em inglês), desenvolveram junto do Manhattan Institute e dos seus intelectuais. 

(Arquivo) Giuliani em evento em Nashua, New Hampshire, em 4 jan. 2008 (Fonte: Wikimedia Commons. Crédito: Marc Nozell)

Conforme Loïc Wacquant (1999, p. 104), Giuliani (no cargo de 1994 a 2001), que ficaria conhecido como o “Prefeito da América”, pôde ser visto diversas vezes “rabiscando furiosamente sua caderneta de anotações por ocasião dessas conferências [do MI]”. De fato, “O próprio prefeito reconheceu publicamente, diversas vezes, sua dívida ‘intelectual’ para com o instituto”. 

Essa proximidade se depreende já dos dois temas centrais de sua campanha, quais foram, crime e policiamento, de um lado, e raça, de outro, exatamente aqueles aos quais o MI se dedica, como lemos em seu sítio virtual (tradução nossa): 

… Trabalhamos para melhorar a qualidade de vida em nossos centros urbanos, com foco especial no problema da violência urbana (…). 

Oferecemos alternativas construtivas a políticas identitárias para ajudar a superar as divisões étnicas e culturais de nossa nação. 

O seguinte comentário feito por Giuliani em 1994 (tradução nossa), durante um fórum sobre violência urbana, ilustra bem, ademais, seu íntimo relacionamento com o MI: 

Se eles não fizerem isso, será muito difícil nos manter unidos como país, porque são os valores compartilhados que nos mantêm unidos. Vamos superar isso quando percebermos que tudo se resume, em última análise, à responsabilidade individual. Que, de fato, o ato criminoso tem a ver com a responsabilidade individual, e [que] a construção do respeito pela lei e pela ética também é uma questão de responsabilidade individual. 

Bratton, enfim, falando durante o lançamento do seu primeiro livro, em evento promovido pelo Manhattan Institute, em 1998 (tradução nossa), corrobora o que expusemos: 

Estamos vivendo bons momentos. E meus cumprimentos ao Manhattan Institute por, de muitas maneiras, oferecer liderança e apoio. Muito desde o início, apoiou muito o prefeito Giuliani quando ele chegou à cidade com as ideias que tinha, muitas das quais eram fruto do contato com o Manhattan Institute e George Kelling. 

Nessa história, mais importante do que Giuliani, porém, foi, exatamente, William Bratton, que ficaria conhecido como o “Policial nº 1 da América”. Seu relacionamento com o Manhattan Institute, de modo geral, e especificamente com George Kelling – pesquisador sênior do MI –, não pode ser descrito senão como um verdadeiro romance “gramsciano”. Afinal, vejamos o que o próprio Bratton relata, quando da primeira Aula Anual George L. Kelling sobre Policiamento e Segurança Pública do MI (tradução nossa): 

… George (…) cujo trabalho perdurará e moldará as futuras gerações de policiais nos próximos anos (…) era o pesquisador e eu era o “cara da prática” (tradução livre do original “practitioner”), que abraçava as mesmas ideias, ideais e visão. Ao trabalharmos juntos, ficou claro que ele era mais do que um pesquisador. Ele também era um “cara da prática”. 

… o artigo da Atlantic Monthly de 1982, Janelas Quebradas, de coautoria de George e James Q. Wilson, (…) influenciou profundamente minha vida profissional e minha carreira. É, sem dúvida, a teoria de policiamento mais importante e impactante dos últimos 50 anos. Uma teoria que defendi e que utilizei de forma tão impactante em todos os departamentos que dirigi. 

Bratton e Kelling parecem haver sido apresentados um ao outro por Bob Wasserman, que fora o mentor de Bratton na carreira policial, ainda na década de 1980. Daí surge uma parceria que seria fundamental para a criação e a expansão de um consenso securitário neoliberal ligado às ideias do MI. Conforme conta Bratton durante aquele mesmo evento, em 2020 (tradução nossa): 

… Bob Wasserman me enviou este artigo [Janelas Quebradas, The Atlantic, 1982]. Ele falava sobre tudo o que eu havia vivido no final dos anos 1970. E George e eu fomos apresentados por Bob. Foi efetivamente um casamento feito no céu, o pesquisador “da prática” (tradução livre do original “practitioner”) e o garoto que viria a se tornar o “cara da prática” dos metrôs de Nova York, das ruas de Nova York, das ruas e colinas de Los Angeles e, mais uma vez, de volta aos metrôs e às ruas de Nova York. 

À época da eleição de Giuliani à prefeitura de Nova York, Bratton dirigia a polícia do metrô da cidade, havendo sido chamado para ocupar o cargo pelo mítico Robert Kiley, então chefe da Autoridade Metropolitana dos Transportes (MTA, na sigla em inglês). Essa foi, precisamente, a primeira experiência de implementação das ideias de Wilson e Kelling na Segurança Pública. O suposto sucesso da gestão “pró-qualidade de vida” de Bratton (que tomou como seus alvos centrais os fare evaders, os grafiteiros e os mendigos) levou-o a ser nomeado comissário-chefe do NYPD, em 1994, com a missão de reproduzir, agora na Big Apple como um todo, os resultados obtidos em seus trilhos. 

Tolerância Zero: um caso de sucesso? 

TIME Magazine Cover: William Bratton, New York City's Top Cop -- Jan. 15, 1996

(Arquivo) Capa da ed. de 15 jan. 1996 da revista TIME: William Bratton, o “Policial nº 1 da América” (Crédito: Gregory Heisler)

Sua passagem pelo NYPD foi, sem sombra de dúvida, revolucionária. Nos dois anos que esteve à frente da corporação, Bratton promoveu reformas institucionais, doutrinárias e logístico-operacionais/de gestão. E isso ao, por exemplo, transformar a polícia do metrô em unidade do NYPD, instituir o princípio quase-categórico de repressão firme aos menores desvios de conduta e implementar o sistema Compare Statistics (CompStat) – que permitia tanto determinar quais as áreas com as maiores taxas de violência, como saber se o trabalho de dada delegacia vinha sendo “efetivo” na redução das mesmas. 

A criminalidade baixou, nesse meio-tempo, mais de 50%, e Bratton, creditado por isso, ganhou fama nacional e a sua demissão do governo, por haver ofuscado a imagem do prefeito. 

Há, porém, quem conteste a avaliação de que foram as novas políticas implementadas sob Bratton e Giuliani as responsáveis pela redução nos indicadores de violência urbana. Conforme Loïc Wacquant (2002), deve-se observar que: 

1) a tendência à diminuição do crime na Cidade de Nova York vinha desde antes de Giuliani ser eleito e perdurou ainda depois que o mesmo deixou a prefeitura; 

2) essa redução foi observada em diversos outros lugares dos EUA no mesmo período, mesmo onde se implementaram políticas opostas àquelas formuladas por Bratton e Kelling, como em San Diego, cujos resultados foram até melhores que os de Nova York (Bellafante, 2015); 

3) fatores socioeconômicos como: o crescimento econômico e a alta oferta de empregos; a diminuição no número de jovens na cidade; as mudanças nas estruturas do tráfico e nos padrões de consumo das drogas; a conscientização dos próprios jovens quanto às drogas e ao crime; e o fato de as estatísticas criminais oficiais inicialmente haverem sido muito infladas pela rápida dispersão do uso do crack etc. – tudo isso verificado no caso de Nova York –, podem ter tido papel central na redução da criminalidade que se observou no período em questão, em detrimento da intervenção policial. 

Um ponto importante, outrossim, e que não deixa espaço para questionamentos, é que, ao promover um verdadeiro manejo penal da insegurança social, a gestão Bratton contribuiu para um aprofundamento da desconfiança popular em relação à polícia, para uma sobrecarga dos tribunais e para uma maciça expansão da população carcerária do estado de Nova York (Wacquant, 1999, p. 25, 52). 

Já em suas passagens futuras pelos departamentos de polícia de Los Angeles (2002-2009) e outra vez de Nova York (2014-2016), Bratton logrou, de fato, reduzir os índices de criminalidade locais. Fê-lo, porém, às custas de um aumento exponencial do número de pessoas detidas e/ou revistadas cotidianamente e de um aprofundamento da violência policial, ambos com um claro perfilamento étnico-racial, bem como de uma deterioração da credibilidade da polícia perante a população, sobretudo no que tange a comunidades negras e latinas (Lee, 2016). 

Tudo isso culminará no execrável caso Eric Garner, em 2014, em que, como relatam os próprios comissário-chefe do NYPD à época, William Bratton, e seu conselheiro, George L. Kelling, em artigo publicado no The Wall Street Journal, um homem negro foi assassinado por um oficial do NYPD, após ser detido por uma quality-of-life offense, sufocado em um mata-leão. O suposto “crime”? Ele estaria vendendo cigarros soltos, e não em carteira (pelo que não incidiriam impostos). 

Eric Garner Video: Staten Island Police Chokehold Death | TIME

(Arquivo) Registro do momento em que Eric Garner é levado ao chão, já preso em um mata-leão. Ele, então, começa a dizer, repetidamente, “eu não consigo respirar” (Crédito: Captura de tela do vídeo da revista TIME/Ramsey Orta) 

O policial que matou Garner nunca foi denunciado pela Promotoria e, por US$ 5,9 milhões, o processo aberto pela família foi encerrado. 

O artigo de Bratton e Kelling, a que fizemos referência, foi pensado para ser uma defesa da Tolerância Zero. 

Desde os anos 1990, não obstante, o Manhattan Institute vem divulgando como um caso de sucesso o conjunto de políticas públicas implementadas por Bratton e Kelling: primeiro, no NYPD, no governo Giuliani; e, posteriormente, em diversas outras cidades dos EUA e do mundo. Vende-se, assim, a Doutrina de Tolerância Zero como uma solução universal para a Segurança Pública – neutra, apolítica, baseada em dados, racional etc. 

A difusão da “boa-nova” em Segurança Pública 

De fato, vários outros departamentos de polícia vieram a ser ou comandados diretamente pela dupla Bratton/Kelling, ou por eles assessorados – a custos elevados, pagos para as firmas de consultoria mantidas por eles ou às quais eles estiveram vinculados –, sob os auspícios, sempre, do MI, para a implementação daquelas políticas. 

Pouco a pouco, foi-se construindo um consenso neoliberal em Segurança Pública ao redor daquelas ideias desenvolvidas no MI por Wilson, Kelling e Coles. O mesmo vem sendo continuamente gerenciado e expandido pelos materiais multimídia produzidos no seio do instituto, em prol da Teoria das Janelas Quebradas e da Doutrina de Tolerância Zero, que vão desde artigos em defesa de ambas de autoria, por exemplo, de Kelling e Bratton, até podcasts, vídeos e textos curtos que as divulgam e continuamente retomam-nas no debate. 

Além disso, o MI vem promovendo anualmente duas aulas magnas sobre Segurança Pública, das quais Bratton costuma participar: a “Aula Anual George L. Kelling sobre Policiamento e Segurança Pública” e a “Aula Anual James Q. Wilson sobre Assuntos Urbanos”, para manter vivo o legado desses seus importantes autores. 

Turnaround: How America's Top Cop Reversed the Crime Epidemic See more 1st  Edition1st EditionAmbos os livros de William Bratton, importante comentá-lo, ademais, foram lançados em eventos organizados pelo MI: “Turnaround: How America’s Top Cop Reversed the Crime Epidemic”, em 1998, e “The Profession: A Memoir of Community, Race, and the Arc of Policing in America”, em 2021. 

Como o atual presidente de tal think tank, Reihan Salam, disse na primeira Aula Anual George L. Kelling sobre Policiamento e Segurança Pública do MI, em 2020: 

Pelos últimos 20 anos, aproximadamente, viemos comemorando o incrível declínio da criminalidade experimentado por muitas cidades americanas. É importante lembrar, no entanto, que esse progresso não aconteceu por acaso. Ele veio das boas ideias que pessoas como George Kelling e Catherine Coles [tiveram], e [do] trabalho incansável de funcionários públicos corajosos como o comissário Bratton. 

Países como Brasil, México, Argentina, Reino Unido, França, Alemanha, Itália, Nova Zelândia, Austrália, Canadá, Áustria, África do Sul e Venezuela implementaram, ou tentaram fazê-lo, políticas derivadas de tudo quanto fora desenvolvido com financiamento do MI, além de diversos departamentos de polícia dos EUA, como dito. Materialmente, todavia, como veremos no próximo informe, ao analisarmos o caso brasileiro, o modelo importado veio a ser modificado aqui e acolá, conforme as determinantes históricas e os interesses hegemônicos locais dos importadores, passando-se necessariamente, também, por um processo de decadência ideológica. 

Para ilustrarmos algumas das problemáticas que buscamos explorar neste texto, e assim encerrá-lo, tomemos como exemplo o que se passou com o Departamento de Polícia de Baltimore. 

Em 2013, pagou-se cerca de US$ 230 mil e US$ 50 mil para as firmas de consultoria de Wasserman e Bratton, respectivamente (Reutter, 2013) – ambas tendo Kelling como conselheiro –, para que ali fossem implementadas políticas semelhantes àquelas da Doutrina de Tolerância Zero do NYPD. Alguns anos mais tarde, a porta-voz da corporação assume que se falhou ao tentar combater o crime recorrendo às soluções do MI, não apenas pelo execrável fato de que houve um ano em que um em cada seis cidadãos da cidade passaram ao menos um dia na cadeia, mas antes, simplesmente, porque os índices de violência da cidade continuaram bastante elevados (Schelp, 2017). 

Segundo ela (apud Schelp, 2017), “nós criminalizamos o vício” – mas em benefício de quem? Esperamos haver deixado claro, por meio dos dois últimos Informes OPEU, qual é a resposta. 

A Teoria das Janelas Quebradas e a Doutrina de Tolerância Zero servem aos capitalistas, na medida em que permitem o manejo, pela via policial-penal, das adversidades oriundas do subemprego e da retração do Estado de Bem-Estar. Como dito no início do Informe anterior desta Série OPEU, constituem a seção de Segurança Pública da multissetorial cartilha neoliberal, servindo organicamente às elites que a promovem globalmente – inclusive no Brasil.

 

Conheça outros textos do autor para o OPEU 

Informe “Teoria das Janelas Quebradas e o consenso securitário neoliberal”, em 22 abr. 2025

Informe “Ingerência externa: exceção ou regra?”, em 19 abr. 2025

Informe  “A cooperação policial entre Brasil e EUA no marco do Imperialismo”, em 14 abr. 2025  

Informe  “Segurança Pública na Dependência”, em 10 abr. 2025  

Informe  “A lisergia material de Trump 2.0”, em coautoria com Morgana Trintin, em 7 mar. 2025  

Informe  “Atuação da USAID em matéria de Segurança Pública no Brasil (1950 – 1970)”, em 24 fev. 2025  

Informe  “Reflexões sobre Trump, Musk e a simbiose público-privada nos EUA”, em 11 fev. 2025   

Informe  “AIPAC x SQUAD: o ‘lobby’ israelense para impedir candidaturas progressistas nos Estados Unidos”, em coautoria com Camila Vidal, em 8 jan. 2025   

Informe  “O que significa Marco Rubio como secretário de Estado para a política externa dos EUA?”, em 15 nov. 2024   

Informe  “O evangelho d’O Sonho Americano, pela Rede Globo”, em 13 nov. 2024  

 

*  João Gaspar  é graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina, bolsista do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA-UFSC) e colaborador do projeto “O poder das ideias e a manutenção hegemônica através do consenso: Estados Unidos e América Latina”. Contato: joaogkg@hotmail.com.   

** Revisão e edição: Tatiana TeixeiraRecebido em 22 abr. 2025. Este e os próximos Informes desta série derivam de uma pesquisa que vem sendo conduzida no âmbito do projeto “O poder das ideias e a manutenção hegemônica através do consenso: Estados Unidos e América Latina”, sob orientação da professora Dra. Camila Feix Vidal. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU. 

*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mailtatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mailtcarlotti@gmail.com. 

 

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