Internacional

A lisergia material de Trump 2.0 

Captura de tela do vídeo da reunião Trump-Zelensky no Salão Oval da Casa Branca, em Washington, D.C., em 28 fev. 2025, aberta à imprensa (Crédito: página da Casa Branca no YouTube)

Por João Gaspar e Morgana Trintin* [Informe OPEU] [Trump 2.0] 

Have you said ‘thank you’ once, this entire meeting? 

J. D. Vance, 2025 

Always say yes to the President! Always say yes to the President! 

Howard W. Lutnick, 2025 

Conforme já comentamos em outro Informe OPEU, jamais a simbiose público-privada nos EUA esteve tão à vista como neste segundo mandato de Donald Trump. Sua aura lisérgica, note-se, deve-se precisamente a isso. Afinal, de princípios gerais de Direito e tradições diplomáticas, à Norma positivada nacional e/ou internacionalmente, passando por construtos retórico-ideológicos diversos, nada subsiste aos anseios do capital (e aos interesses políticos associados). Eis a materialidade do dito “furacão Trump”. 

Nos últimos dias, pois, acompanhamos – bastante atônitos, admitimos – episódios que, diretamente derivados do fato de o interesse nacional estadunidense contemporâneo explicitamente resumir-se à obtenção de lucro, revolveram confusamente as relações internacionais. Primeiro, testemunhamos a tentativa dos EUA de verdadeira extorsão contra a Ucrânia, visando à concessão, por parte desta, dos direitos de exploração das suas reservas minerais a companhias daquele país. Então, assistimos a um vídeo postado por Donald Trump em seu perfil pessoal no Instagram, que retrata, via Inteligência Artificial (IA), sem quaisquer escrúpulos, uma Gaza transformada em riviera trumpista. Finalmente, para coroar tal quadro, tivemos o lançamento do Gold Card, novo tipo de visto permanente que estará disponível para compra no valor de cinco milhões de dólares. 

Buscaremos entender, a seguir, esse complexo cenário, analisando o que significam tais eventos, e mostrando como, ou melhor, em que sentido, relacionam-se eles todos, em essência, formando um mosaico bastante coeso para além do caos da aparência. 

O assalto a Volodymyr Zelensky 

Desde antes do início da administração Trump 2.0 havia a expectativa de que se desse um giro isolacionista na política externa estadunidense, devido aos seus dois principais lemas, America First e Make America Great Again (MAGA, na sigla em inglês).  Todavia, com a nomeação de Marco Rubio para o cargo de secretário de Estado ― republicano desde há muito partidário de uma inserção global dos EUA de modus ofensivo ―, começou-se a discutir como se resolveria a dialética que se colocava, então, entre ambas essas formas de se lidar com a política internacional. De nossa parte, indicamos que isso dependeria de quem, no limite, cedesse mais, se Trump ou se Rubio – chamando a atenção para que a opção de ter esse último no gabinete não poderia ser fruto de mero acaso. 

O caráter da investida estadunidense contra o governo ucraniano, nesse sentido, parece derivar exatamente de tal interação entre opostos. Levada a cabo segundo uma estratégia pautada na deslegitimação pública de Zelensky – visível na deselegante coletiva de imprensa concedida por ambas as partes no Salão Oval da Casa Branca, no último dia 28 –, tem-se aí um quase perfeito meio-termo entre agressão (positiva e negativa) e distanciamento. O fato de o alvo de tal assalto – que tem no cultivo público de um bom relacionamento com Vladimir Putin uma das suas armas – ser o aliado dos EUA no conflito é mero detalhe, tendo-se em mente a que visam os atuais dirigentes desse país, assim como uma eventual paz não passaria de subproduto. Afinal, com tal movimentação, Trump 2.0 consegue, de um lado, mostrar ao povo estadunidense sua verve em não mais desviar dinheiro público para fora, em fazer os EUA serem respeitados mundialmente outra vez etc., gerindo, assim, o consenso interno; bem como, de outro, obter acesso a minerais que muitíssimo interessam à burguesia high-tech que informa – e até mesmo compõe – a presente administração. Que querem mais? 

Medo e delírio em ‘Trump Gaza’ 

Muçulmanos como belly-dancers, Elon Musk como degustador de comidas árabes, Donald Trump e Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, a gozarem de sol, piscina, drinks, prostitutas etc., e, para coroar a montagem em IA, uma enorme estátua dourada (e réplicas pequenas, à venda como souvenir) do atual presidente dos EUA: com tudo isso (e algo mais…) fomos acossados na última quarta-feira (26) por Trump, via vídeo (conteúdo abaixo), compartilhado em seu Instagram pessoal. 

Nele, não se encontra nada que não houvesse sido dito abertamente pelo atual presidente, em conferência concedida junto de Netanyahu, no início do mês, como parte do seu plano “humanitário” para a região, ou que não se pudesse depreender de quanto fora dito. “Ao vivo” e em cores, porém, o discurso trumpista sobre a Palestina passa a estar envolto de uma grave aura distópica, tornando-se ainda mais perigoso em potencial do que simples bravata de mau gosto (entre tantas outras). 

Para uma análise profunda acerca dos porvires da Questão Palestina, especificamente sob Trump 2.0, consulte o Informe OPEU “Trump 2.0: ‘Riviera’ em Gaza e a ordem regional no Oriente Médio”, de autoria da professora Isabela Agostinelli. 

Buscamos aqui chamar a atenção, em particular, para a absoluta ausência de pudor por parte da atual administração estadunidense no sentido de dissimular a que e a quem serve. São representativos disso os cerca de 40 segundos de mídia que exibem todas as delícias que se terão à mão com a transformação da Faixa de Gaza, atualmente um “demolition site”, nas palavras de Trump, em uma verdadeira Las Vegas à beira-mar, com resorts, arranha-céus, carros de luxo, e, enfim, dólares e mais dólares, quase caindo do céu – o mesmo céu, vejamos só, que por tanto tempo trouxe tanta tristeza. 

Pouco importa, nesse ínterim, que os EUA incorram em verdadeiros crimes internacionais (afora todos os já cometidos indiretamente até aqui, ao armar e endossar Israel nos conflitos israelo-palestinos). Basta impor sanções, por exemplo, ao pessoal do Tribunal Penal Internacional (TPI) e, junto a isso, fazer um malabarismo hermenêutico-populista que sirva à gerência do consenso interno. Atam-se as mãos e calam-se as bocas: é lucro certo. 

Para um repasse da responsabilidade dos EUA na violência israelense na Palestina, consulte o Informe OPEU “A participação dos EUA na intensificação do genocídio da Palestina”, de autoria dos pesquisadores Ana Flávia Pires de Moraes, Débora Figueiredo Mendonça Prado, Júlia Camargo Assad de Souza e Maria Fernanda Montandon Lemos. E, para uma análise acerca dos embargos estadunidenses ao TPI, consulte o Informe OPEU “De volta à Casa Branca, Trump restabelece sanções ao Tribunal Penal Internacional”, de autoria dos pesquisadores Arthur Alcântara, Ana Clara Melo e Marrielle Maia. 

Passe-livre milionário 

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Howard W. Lutnick, na audiência de confirmação, realizada pelo Senado, para o cargo de secretário do Comércio, em 29 jan. 2025 (Fonte: Senado dos EUA/Wikimedia Commons)

Disponível, segundo o secretário de Comércio dos EUA, Howard W. Lutnick, a quaisquer “wonderful world-class global citizens” que se disponham à compra – inclusive aos magnatas russos que sustentam, vejamos, Vladimir Putin –, o novo tipo de visto permanente dos EUA, por fim, tanto dá mostra do caráter internacional do grande capital como do empenho da atual administração em servi-lo, uma vez informado pelo segmento estadunidense desse mesmo grande capital. Substituindo o tradicional Green Card EB-5, voltado para investidores, o Gold Card requer “apenas” o pagamento de cinco milhões de dólares ao Tesouro dos EUA para ser obtido e garantirá aos seus portadores direito de livre-residência e trabalho, além de facilitar um futuro processo de obtenção da cidadania estadunidense. 

Como vem acontecendo com várias outras ordens executivas (OEs) assinadas até aqui pelo presidente Donald Trump em seu segundo mandato, anteveem-se imbróglios jurídicos advindos da assinatura da OE que oficializará tais Gold Cards, na medida em que, constitucionalmente, cabe ao Congresso, e apenas a ele, a gerência do regime migratório estadunidense, pelo que não teria o Executivo poderes para alterar os tipos de visto por si. A ver como isso se desenvolverá nas Cortes Federais. Não obstante, o que importa antes, para este Informe, é a trama que se depreende estar por trás do anúncio do novo visto, e que o faz estar em linha com a pressão exercida pelos EUA contra Zelensky e com o vídeo que retrata a Gaza dos sonhos trumpistas. 

Aparecem, pois, a ânsia capitalista, nos três episódios, em primeiro plano, seguida de interesses políticos diversos associados a ela – materializados na administração do consenso interno a favor dos republicanos –, a fazerem com que sejam levadas a cabo todas essas ações. Para sustentá-las enquanto movimento governamental, uma série de construtos retóricos são lançados no debate público, tais como quitação da dívida pública, fim do desvio para o exterior da contribuição do povo estadunidense, reempoderamento internacional dos EUA, estímulo à indústria interna, incompetência do TPI etc. E, ademais, visando à criação de obstáculos para esforços críticos por parte de grupos da sociedade civil, destacadamente academia e imprensa, uma imensa cortina de fumaça é diuturnamente produzida, em Washington, D.C., por meio de uma atividade executiva frívola e industrial-marqueteira. 

Como podemos ver, formas gregas já não nos servem mais: confundem-se, no regime estadunidense, a oligarquia plutocrática, a democracia e a tirania, em uma justa medida. Para além de tipos ideais, fiquemos com o movimento – seus fluxos e refluxos, materialmente apreendidos, dizem o bastante.

 

* João Gaspar é graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina, bolsista do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA-UFSC) e colaborador do projeto Coerção e Consenso: a Política Externa dos EUA para a América Latina. Contato: joaogkg@hotmail.com. 

Morgana Trintin é graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina. Contato: morgana.trintin@gmail.com. 

** Primeira revisão: Simone Gondim. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em: 4 mar. 2025. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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