Internacional

O discurso belicista de Macron 

(Arquivo) Presidente Emmanuel Macron (Fonte: Embaixada da França nos EUA/Flickr)

Por Williams Gonçalves* [Informe OPEU] [OTAN] [Rússia] [Trump 2.0] [Ucrânia] 

Quando a União Soviética se dissolveu, em dezembro de 1991, imediatamente surgiu diante dos estrategistas dos Estados Unidos uma inquietante interrogação: o que seria da OTAN? Uma interrogação muito pertinente, pois a OTAN fora criada, em 1949, logo a seguir ao Bloqueio de Berlim, em 1948. Sua função seria proteger a Europa Ocidental de presumidas ações agressivas da URSS. Dada a correlação de forças de então, havendo os Estados Unidos se consagrado como a grande potência do mundo ocidental, e estando a Europa muito enfraquecida, dependente da ajuda econômica norte-americana para se recuperar da destruição provocada pela Segunda Guerra Mundial, a liderança militar dos Estados Unidos emergiu como absolutamente natural. Todos os europeus signatários do Tratado do Atlântico Norte se sentiam protegidos pelo artigo 5º, segundo o qual o ataque a um Estado é considerado um ataque a todos. Em vista disso, o desaparecimento da União Soviética criava a seguinte situação: para que a proteção militar, se a razão de sua criação não existia mais? 

A preocupação dos formuladores de política dos Estados Unidos não durou, no entanto, muito tempo. Os próprios europeus, que se supunha quererem se ver livres da tutela militar norte-americana, foram os primeiros a demonstrar o desejo de manter a estrutura da organização militar. E o motivo era muito simples: temiam a volta dos nacionalismos que os havia levado a duas grandes guerras. E o efeito demonstração fora dado pelo então chanceler alemão, Helmut Kohl. Sem dar muita oportunidade para questionamentos, Kohl agilizou a reunificação da Alemanha. Ainda em setembro de 1990, a República Federal Alemã anexou a República Democrática Alemã e transferiu a capital de Bonn para Berlim. 

Em vista disso, os europeus marcaram a posição de manter a OTAN. Os Estados Unidos cumpriam a importante missão de estabilizador do Velho Continente. Como o fim do comunismo tornava o conceito estratégico obsoleto, a partir daí promoveu-se novo conceito estratégico. Sua base era o que então denominava-se novos temas: defesa dos direitos humanos, combate ao terrorismo, combate ao tráfico de drogas e de pessoas, defesa dos valores democráticos. A implosão da Iugoslávia e a luta armada entre os sérvios e os demais povos da federação atraíram as forças da OTAN, que assim encontrou nova razão de existir. 

O Quadrilátero da crise. A Guerra na Ucrânia e o governo Biden

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Reorientação da Aliança Atlântica 

Testado com sucesso o novo conceito estratégico, a política da OTAN passou a ser a de se ampliar em direção à parte leste da Europa, incorporando Estados antes pertencentes ao Pacto de Varsóvia. O objetivo era cobrir todo o continente sob a autoridade militar dos Estados Unidos, incluindo a própria Rússia, ao mesmo tempo em que se criava um estatuto de país associado para países situados fora do perímetro do Atlântico Norte. Ao longo do governo de Dilma Rousseff, o Brasil foi bastante pressionado a ingressar na organização como associado. Usando o prestígio acadêmico da Fundação Konrad Adenauer, por meio de uma sucessão de Congressos do “Forte de Copacabana”, os europeus tentaram atrair acadêmicos e militares para a ideia, porém sem sucesso. 

Essa política forjada nos escritórios de Washington foi dando resultados até o desentendimento entre George W. Bush e Vladimir Putin. Ao substituir Boris Ieltsin, o governante russo levou a efeito uma política nacionalista de recuperação da dignidade do Estado, comprometida pelo antecessor com ações políticas e pessoais. Nesse contexto, Putin interpretou que o avanço da OTAN em direção às fronteiras da Rússia manifestava intenções hostis. Por isso, considerou que a incorporação da Ucrânia à estrutura militar liderada pelos Estados Unidos era intolerável. 

Desde então, a Ucrânia se tornou foco de tensão nas relações dos Estados Unidos com a Rússia. A política doméstica desse país foi dilacerada pela divisão entre pró-ocidentais e pró-russos. A tensão aumentou consideravelmente em 2014, quando o presidente Barack Obama assumiu explicitamente a vontade de influir nesse quadro em favor dos ucranianos pró-ocidentais, seduzidos pela ideia de ingressar na União Europeia e de serem protegidos pela OTAN. 

Esse desenvolvimento do processo político correspondia exatamente aos planos dos Estados Unidos. Desagradava aos norte-americanos a política de aproximação junto à Rússia promovida pela chanceler alemã Angela Merkel. Era necessário interceptar aquela relação, que proporcionaria grande independência à Alemanha. A interceptação acabou por acontecer, graças ao acirramento das tensões entre Rússia e Ucrânia. A invasão militar russa, violando a soberania ucraniana, serviu prontamente aos interesses dos Estados Unidos. Imediatamente teve início uma campanha de exclusão e punição internacional da Rússia. O argumento dos norte-americanos era que o autocrata russo Vladimir Putin havia mostrado suas armas contra Volodymyr Zelenski, a partir de então apresentado como exemplo de político democrata. 

Guinada estratégica 

Depois de três anos de guerra, aconteceu o inesperado: a mudança de orientação estratégica dos Estados Unidos. Com a eleição de Donald Trump, tudo o que era muito importante para a OTAN deixou de sê-lo. Rompendo com o consenso bipartidário que promovia a política externa dos Estados Unidos, Trump introduziu uma concepção estratégica nacionalista mercantilista, segundo a qual os Estados Unidos têm desperdiçado recursos promovendo a defesa dos europeus, enquanto esses, poupando seus gastos militares, elevaram seu desempenho econômico e passaram a obter superávits comerciais com os próprios Estados Unidos. A conclusão de Trump é a de que os Estados Unidos com sua política de defesa da Europa perderam competitividade e estão sendo ultrapassados pela China. 

Entenda a mudança na Grande Estratégia dos EUA, de Joe Biden para Trump, neste episódio do podcast Chutando a Escada, com Filipe Mendonça, Williams Gonçalves e Tatiana Teixeira

O diálogo televisionado de Trump com Zelensky foi muito esclarecedor sobre sua concepção estratégica: os Estados Unidos gastaram dinheiro demais com a Ucrânia e os ucranianos têm que pagar por isso. Considerou-se o diálogo escandaloso. Na verdade, não foi o diálogo que foi escandaloso, mas sim o fato de ter sido televisionado. Ou alguém acha que os dirigentes de Estado de países submetidos ao jugo de Washington foram tratados de maneira diferente sem a presença de público? A posição de Trump é clara. Ele não mudará de posição. Sua política é “America First”. 

E onde entra o presidente francês, Emmanuel Macron, nesse imbróglio? Ora, Macron sabe que a posição de Trump está tomada. Ele não irá recuar. Se depender de Trump, a OTAN irá definhar até desaparecer, pois ela não é importante para ele. Importante é a competição com a China. Importante é organizar uma área de influência para atuar em um mundo multipolarizado, se possível uma área que vá da Groelândia até a Patagônia. Justamente por saber disso, Macron está desejoso de ocupar imediatamente o lugar que era dos Estados Unidos na Europa. Aproveitando-se do enfraquecimento da Alemanha, decorrente da política de um anódino Olaf Scholz de seguir cegamente a liderança de Joe Biden, Macron pensa em colocar a França na liderança. 

A política anti-russa de Macron, tomando o bastão dos norte-americanos, constitui uma forma de impedir o fortalecimento da extrema direita europeia, sobretudo alemã, e uma forma de assumir a liderança. Com essa pretensão, Macron quer, a pretexto de salvar a Ucrânia de um acordo pelo alto, à moda do Concerto das Nações do século XIX, manter viva a chama da guerra, para se posicionar como o grande líder. Isto é, enfraquecida a OTAN, ressurge o nacionalismo francês. Talvez De Gaulle aprovasse!

 

Conheça os textos mais recentes do autor publicados no OPEU

Informe “Trump – edição atualizada de Reagan”, 15 jan. 2025

Informe “O futuro governo Trump e as Relações Internacionais”, 8 nov. 2024

Informe “Os Estados Unidos e a Cúpula do BRICS, em Kazan”, 1º nov. 2024

Informe “Congresso: Partido Comunista Chinês se infiltra e influencia os norte-americanos”, 29 out. 2024

Informe “O Partido da Guerra”, 11 out. 2024

Informe “Relatório sobre Estratégia de Defesa Nacional 2024 adverte sobre grandes ameaças aos EUA”, 25 set. 2024

Informe “A tensa relação de Estados Unidos e China no Mar da China Meridional”, 13 jun. 2024

Informe “Rotas de colisão”, 18 de maio de 2024

Informe “Encontro de Xi Jinping e Joe Biden na Apec”, 15 nov. 2023

Informe “Repensar a Estratégia dos Estados Unidos”, 2 ago. 2023

Informe “Desglobalização, guerra e a tentativa dos EUA de Biden de conter a China”, 4 jun. 2023

Informe “O G7 de Hiroshima”, 19 de maio de 2023

Informe “Grande Estratégia dos EUA: continuidade, ou mudança?”, 2 mar. 2023

Informe “O que o Brasil faz no Mar Negro aliado à OTAN?”, 27 jul. 2021

 

*  Williams Gonçalves é Professor Titular de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval (PPGEM-EGN). Doutor em Sociologia, também é pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU).

Entre outros livros, é autor de A China e a nova ordem internacional (Editora Ayran, 2023) e O realismo da fraternidade: as relações Brasil-Portugal no governo Kubitschek (Funag, 2024).

** Revisão e edição: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 5 mar. 2025. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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