Internacional

O fim da guerra e o futuro do sistema internacional

(Arquivo) Presidente ucraniano, Volodimir Zelensky, na Assembleia Nacional da Coreia do Sul, em 2022 (Fonte e crédito: Lowy Institute/Presidência da Ucrânia/Flickr)

Um fim na guerra da Ucrânia obrigará os europeus a reler Maquiavel: órfãos do apoio dos EUA, serão obrigados a encontrar um caminho próprio e soberano

Por Héctor Luis Saint-Pierre, para Opera Mundi* [Republicação] [Ucrânia] [sistema internacional]
– Henry Kissinger

Passaram-se mais de três anos do início da guerra na Ucrânia e o seu fim, aparentemente próximo, ainda é nebuloso: enturva a visibilidade do fim da guerra um Zelensky aferrado ao poder, que depende da continuidade da guerra; um Trump interessado no fim dos combates para poder explorar os recursos naturais ucranianos e lucrar financiando a reconstrução da sua infraestrutura; uma empobrecida Europa, desconsolada e perdida ante o abandono do seu tutor americano e rancorosa ante a inevitável vitória da Rússia nos campos de batalha, seu inimigo imposto; e um Putin desconfiado dos acordos lavrados com um Ocidente que o enganou reiteradamente.

Raymond Aron[1] classificava a guerra pela caracterização política dos beligerantes e pelas formas de retorno à paz. A forma desse retorno, para Aron, pode ser a paz negociada ou a paz imposta. A paz imposta é a capitulação, o reconhecimento da derrota no campo de batalha. O que me parece que está em questão na Guerra na Ucrânia é se essa paz será imposta pela força das tropas russas nos campos de batalha ucranianos ou pela força argumentativa de Trump sobre Zelensky (a força do argumento ou o argumento da força). Em última instância, o que está se discutindo entre Trump e Putin (e não poderia ser entre outros) diz respeito à capitulação da Ucrânia e o amargo reconhecimento da impotência europeia sem o apoio dos Estados Unidos. O cacarejo do galinheiro europeu não chega até esse salão onde os grandes negociam o futuro que desejam para o mundo. O que esperamos, como reconhece o experiente ex-diplomata indiano Bhadrakumar, é que “neste cenário sombrio, a melhor esperança é que a deposição de Zelensky, que parece provável, não seja um evento violento e sangrento, considerando as rivalidades de poder dentro do regime em Kiev”.

Se, depois da Segunda Guerra Mundial, a Europa tivesse conseguido coroar a sua recuperação econômica com autonomia política e estratégica, talvez houvesse podido fundar uma União Europeia em condições de estabelecer uma defesa autônoma e uma diplomacia coerente e coesa. Com uma defesa e uma diplomacia independentes, hoje contaria com as gramáticas necessárias para a lógica de uma Política Externa soberana. Mas por ideologia, erro estratégico-político ou adocicada pelo plano Marshall, a Europa sucumbiu à dependência econômica, política e estratégica dos Estados Unidos esquecendo da máxima de Carl Schmitt “o protego ergo obrigo é o cogito ergo sum do Estado”[2]. Por isso, agora a União Europeia pode espernear, conspirar, gritar que o duro realismo de Trump colocará numa redoma de silêncio a sua participação na definição do fim da guerra na Ucrânia e, possivelmente, do futuro das relações internacionais. Sem as lentes coloridas com que a União Europeia acostumou-se a amortecer a realidade e sem a manipulação da percepção com que a mídia global e globalista narcotizou as sociedades, essa é a realidade nua e crua, óbvia para quem acostumou-se a ver a contemporaneidade à luz da história, especialmente de média e longa duração, com o “saber de experiência” que Max Weber reconhecia como necessário para imaginar o que “cabe esperar”[3].

O que está em jogo é a estrutura que o sistema internacional assumirá daqui para o futuro e o que será discutido e desenhado pelos pilares de um novo mundo de grandes potências. Se a Europa conseguir recuperar o bom senso e se manter coesa na busca por estabilidade internacional, poderia ser um desses pilares, mas por enquanto, e com relação à negociação para pôr fim à guerra na Ucrânia, ela está fora. Atrevo-me a pensar que a Rússia não aceitará nas negociações a presença da Europa ocidental (que em vários tratados traiu a confiança de Putin) por considerá-la parte beligerante e, pelo mesmo motivo, não aceitaria a sua participação em uma eventual Força de Paz. Parece-me que tampouco aceitará uma trégua ou cessar-fogo que serviriam para recompor as forças ucranianas. Aliás, considero que não será negociada uma trégua, nem cessar-fogo, mas a rendição da Ucrânia e o fim do regime de Zelensky.

Todavia, os gritos marciais de Ursula von der Leyen parecem indicar o desejo de ao menos parte da UE de permanecer belicamente no erro consumado. Se com o apoio bilionário de um Biden moralmente comprometido com essa guerra, o empobrecimento dos europeus e o endividamento do futuro da Europa não conseguiram derrotar, nem sequer desgastar econômica ou militarmente a Rússia, o que leva a pensar que sozinhos o conseguirão? Como assegura Wolfang Munchau, “sem a América, não há caminho para a vitória da Ucrânia. Isso não é principalmente sobre armas, munição e ajuda financeira, mas sobre suporte de satélite e Inteligência. Se os EUA desligassem os satélites e interrompessem o fluxo de informações, os europeus não teriam como tapar a lacuna. Sem os EUA, acabou para a Ucrânia”. Mas as burocracias diplomáticas da UE e militares da OTAN, confortavelmente alojadas em Bruxelas, completamente divorciadas das sociedades que as financiam, acreditarão que as sociedades europeias estão dispostas a imolar os seus filhos nos mineralmente ricos e ensanguentados campos de batalha da Ucrânia numa guerra perdida.

O primeiro-ministro da Inglaterra, Keir Rodney Starmer, defende enviar tropas para lutar na Ucrânia, o recém-empossado na Alemanha, Friedrich Merz, pede o aumento de orçamento para a guerra, a belicosa presidenta da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, convoca para o preparo para a guerra. Alguns falam de aumentar os gastos para a Defesa, outros o preparo para guerra, mas ninguém fala de paz. Ainda assim, sem o apoio de Trump, que até agora ignorou a Europa, enviar tropas para a carnificina ucraniana pode ser desastroso para os governos e fatal para a União Europeia. Ainda são poucos os que se opõem claramente à guerra e, enquanto a guerra for apenas uma figura retórica, continuarão sendo poucos. Mas, se houver uma decisão por parte de alguns países de enviar seus cidadãos a morrer em outras terras, a fissura da UE abrir-se-á num abismo intransponível — esse será o fim da UE.

A alternativa para a Europa é começar a pensar por conta própria, desenhar sua própria concepção estratégica e assumir a condução coesa e soberana da sua Política Externa, como recomendou Jeffrey Sachs na sua confêrencia no Parlamento Europeu. Reformular sua burocracia administrativa e diplomática e orientar a política do bloco para a paz e o desenvolvimento, tentando recuperar o Estado de Bem-Estar Social que nunca deveriam ter abandonado. De imediato, mudar seu posicionamento com relação às exigências do desacreditado Zelensky e pensar na paz e na reconciliação com a Rússia. Assim, poderão contar com energia e alimentos mais baratos que lhe permitam tentar recuperar a economia do bloco.

Mas qual é o papel reservado para a República Popular da China em tudo isto? Ela permanece num parcimonioso silêncio, contando com sua proverbial diplomacia elegantemente sóbria. Analisa em que medida os acontecimentos impactam sua estratégia de longo prazo para se posicionar na conjuntura. Desde a vitória eleitoral de Trump, a China tornou públicas importantes informações dos seus avanços tecnológicos e preparo estratégico. Uma notícia que impactou o mundo digital foi o lançamento do DeepSeek, com o qual a China no mínimo anulava a vantagem ocidental em IA; fontes do almirantado estadunidense reconheceram que a supremacia naval passou para os orientais; já estava claro que dominavam a hipersonia missilística, mostrando mísseis ar-ar com alcance de 1.000km; também apresentou super drones furtivos de grande capacidade e baixo custo e um drone capaz de voar a mais de 45 km de altura e dirigir com precisão esses mísseis ou comandar enxames de drones; também apresentaram duas surpreendentes aeronaves de sexta geração que podem deixar muito para trás o pouco confiável F35, e finalmente; deixaram vazar fotografias de um imenso prédio para alojar o comando das suas forças dez vezes maior que o Pentágono. Considero que essas mensagens são suficientemente claras para que um realista duro como Trump pense na China não como inimigo, mas como co-desenhador, junto com a Rússia, do futuro do Sistema Internacional.

Os europeus devem retomar a leitura de Maquiavel e entender politicamente alguns acontecimentos e mudanças no sistema internacional: que a Europa é econômica e estrategicamente dependente e agora, na sua orfandade, deverá encontrar o seu caminho de desenvolvimento soberano com realismo e modéstia; que a carnificina ucraniana está chegando a seu fim e os próximos passos para o futuro serão discutidos entre Trump e Putin; que o mundo está em mudança e que no tabuleiro de desenho em que o futuro se imagina só se sentarão os grandes, como disse Jeffrey Sachs ante o parlamento europeu: “não estou dizendo que estamos na nova era da paz, mas estamos em um tipo muito diferente de política agora, um retorno à política das grandes potências”.

Notas
[1]  ARON, Raymond. Paz e Guerra entre as Nações. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981
[2]  SCHMITT, Carl. El concepto de lo Político. Buenos Aires: Folio Ediciones, 1984.
[3]  WEBER, Max. Ensayos sobre metodología sociológica. Buenos Aires: Amorrortu, 1982.

 

* Héctor Luis Saint-Pierre é professor da Unesp, coordenador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e ex-diretor da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). É autor de Max Weber: entre a paixão e a razão (Editora Unicamp) e A política armada: fundamentos da guerra revolucionária (Editora Unesp).

** Publicação do site Opera Mundi, em 5 mar. 2025. Republicado no OPEU com autorização do autor. 

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