América Latina

Atuação da USAID em matéria de Segurança Pública no Brasil (1950-1970) 

Crédito: Embaixada dos EUA no Uzbequistão

Terceiro da série “Atuação e sombras da USAID na América Latina”  

Por João Gaspar*  [Informe OPEU] [USAID] [Brasil] [América Latina]

Historicamente, a violência imperial exercida pelos Estados Unidos sobre a América Latina se expressou, de um lado, pela coerção, e de outro, pelo consenso. Na primeira modalidade, encontram-se as intervenções militares visando à deposição de presidentes, por exemplo; na segunda, mais difícil de ser materialmente desvelada, encontram-se os diversos programas de “cooperação técnica” e de “assistência humanitária”, por exemplo, oferecidos – e na maioria das vezes integralmente custeados – pelos EUA. 

Em tais programas, mais ou menos institucionalizados, que envolveram desde o simples envio de remessas de equipamentos (encomendados, veja-se, da indústria dos próprios EUA, pelo que já aqui se tem uma pista das suas reais intenções) até o treinamento dos efetivos, para uma suposta “modernização” das forças de Segurança Pública e de defesa latino-americanas, não é um acaso o fato de que sempre os EUA apareceram como aquele portador das soluções para os nossos problemas. Pelo contrário, o fato de tais programas se caracterizarem não por uma troca, mas por uma transferência, do centro para a periferia, de ideários, técnicas e tecnologias, é chave para se compreender como os EUA se utilizaram (e utilizam) de tal “ajuda” – de que supostamente precisamos – como real instrumento de manutenção hegemônica e, pois, de domínio imperial sobre nossa região. 

(Arquivo) A escola começa (Crédito: Louis Dalrymple) 

O mais grave nisso tudo, no entanto, advém da própria estrutura imperial que sustenta o relacionamento entre a América Latina e os EUA: são as nossas próprias elites dirigentes, informadas cada qual pelas suas burguesias nacionais, que desde há muito veem nos estadunidenses verdadeiros professores, aos quais vale a pena se humilhar para com eles aprender. Eis a dimensão inicial do consenso. Este é continuamente manipulado pelo hegêmona – o qual sabe como operam nossas classes “dominantes-dominadas” – para, remodelando-o, mantê-lo em vigência e expandi-lo para as demais frações das nossas sociedades, de modo a ser-lhe possível a livre espoliação de nosso trabalho, sem ter de arcar com todo o ônus de uma ação direta. 

Nesse contexto, dois dos mais importantes meios estadunidenses de construção e gerência do consenso foram a Administração Internacional de Cooperação (ICA, na sigla em inglês), criada em 1955, e sua sucessora, a recém-desmontada Agência Internacional dos Estados Unidos para Cooperação Internacional (USAID, na sigla em inglês), criada em 1961. Um estudo crítico bastante profundo e abrangente sobre tais agências vem sendo conduzido pela professora Camila Vidal e seus orientandos, cujos resultados gerais podem ser já consultados nos dois primeiros Informes OPEU da série “Atuação e sombras da USAID na América Latina” por eles publicados: “USAID e a falácia da generosidade” e “Atuação da USAID na América Latina (2001-2021)”. 

Dos anos 1950 em diante, com o desenvolvimento, nos EUA, da chamada Doutrina de Segurança Nacional (DSG), como produto da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria, pela qual as Forças Armadas e as polícias passam a, juntas, terem de combater o dito “inimigo interno” – materializado primeiro no nazista e, então, no comunista, no traficante de drogas, no terrorista etc. –, tem-se o lançamento, no âmbito de ambas as ICA e USAID, dos programas ora analisados, que visavam à modernização de forças de defesa e de segurança latino-americanas. 

Tal movimento tinha os objetivos tanto de incutir em nossas instituições os modos e as formas estadunidenses, socializando-as na DSG, como de efetivamente fazê-las trabalhar para os EUA, como verdadeiras “forças complementares” – dominando-as pelo consenso securitário, de um lado, e transferindo os custos de suas sujas empreitadas por lucro e poder para as nossas sociedades, de outro. Afora, por óbvio, de, nesse ínterim, favorecer interessadamente a reprodução de regimes autoritários América Latina afora, alinhados aos EUA, sobremaneira entre as décadas de 1960 e 1980, pelo reforço dos seus instrumentos repressivos. 

Faz-se importante, aqui, compreender que, a suportar e a impulsionar todas essas ações por parte dos EUA (e dos nossos dirigentes mesmos), não se encontra nenhuma persona malévola. É a pura ânsia por lucro, das burguesias central e periféricas, que informa os dirigentes, lá e cá, no sentido da submissão, mais ou menos sofisticada que seja, das nossas gentes, para nos subtrair o produto do nosso trabalho. São materiais, pois, os interesses imperial e dependente. Negá-lo, recorrendo a noções morais vulgares, é produzir ideologia. 

Com tudo isso em mente, buscamos, brevemente, explorar agora, em particular, a “ajuda” estadunidense à América Latina que, efetivada por meio da ICA/USAID, dizia respeito à Segurança Pública. Para tanto, tomaremos como modelo o Brasil, cujas relações “cooperativas” com os EUA remontam, de modo geral,  já à década de 1950, quando, na esteira do lançamento do Programa Ponto Quatro, sob administração de Harry Truman, é criada a ICA. 

O caminho da modernização? 

File:Estado-Maior da FEB.jpg

(Arquivo) Primeira reunião do Estado-Maior da FEB, no Rio de Janeiro, em 20 abr. 1944. Da esq. para a dir.: major Osmar Dutra; tenentes-coronéis Senna Campos, Thales Ribeiro da Costa, Humberto de Alencar Castelo Branco e Amaury Kruel; e coronel Lima Brayner (Crédito: FEB)

A pedra fundamental de tal relacionamento entre Brasil e EUA foi lançada em meados de 1957, por Amaury Kruel, então chefe do Departamento Federal de Segurança Pública (DFSP), futuro Departamento de Polícia Federal, quando este veio a travar contato com servidores da ICA no viso de receber equipamentos que servissem ao empoderamento do seu órgão frente às corporações policiais estaduais. O trânsito de Kruel junto das cúpulas dirigentes estadunidenses remontava à Segunda Guerra Mundial, quando, em 1943, passou por um treinamento de três meses no Forte Leavenworth, no Kansas, junto doutros dez oficiais – dentre eles, o futuro marechal Castelo Branco – destacados para comporem a Força Expedicionária Brasileira (FEB), que combateu no norte da Itália. 

A partir da solicitação de Kruel, diversos agentes estadunidenses, principalmente da Agência Central de Inteligência (CIA, na sigla em inglês) e do Escritório Federal de Investigação (FBI, na sigla em inglês), passaram a vir para o Brasil com o objetivo de fazer um diagnóstico da realidade da Segurança Pública nacional, de modo a elaborarem propostas de cooperação teoricamente mais ajustadas às nossas demandas. Na década de 1960, começam os “programas”, quando os estadunidenses logram dissuadir os dirigentes brasileiros a aceitarem treinamentos em território nacional mesmo (o que não raro significou a intromissão – em um primeiro momento velada e, então, escancarada – de agentes estrangeiros em nossas corporações policiais, que serviam tal quais espiões). 

A partir daí, as elites dirigentes brasileiras lograram de fato uma “modernização”, nos níveis federal e estadual, dos seus respectivos órgãos de policiamento ostensivo e de investigação que chefiavam, a partir, de um lado, do recebimento de remessas de equipamentos e insumos como rádios portáteis e radiopatrulhas, algemas, bombas de gás lacrimogêneo e cassetetes e, de outro, da montagem de centros de processamento de informação, centrais radiotelefônicas e laboratórios forenses, a partir da tecnologia e da técnica recebidas, muito por solicitação do agente do FBI Dan Mitrione. É nesse contexto, inclusive, que se começa a coleta e a análise de impressões digitais na persecução penal. 

Além disso, um número imenso de policiais brasileiros recebeu treinamento estadunidense, ou em território nacional (mais de 100 mil homens), ou nas academias criadas pelos EUA especificamente para cooperação em matéria de Segurança Pública. Duas delas se destacam: a Academia Interamericana de Polícia (Iapa, na sigla em inglês), localizada no complexo militar estadunidense na Zona do Canal do Panamá, e a Academia Internacional de Polícia (IPA, na sigla em inglês), sediada em Washington, D.C. 

A primeira de tais instituições oferecia cursos ministrados em espanhol e era administrada pela AIC, por meio da sua Divisão de Segurança Pública (PSD, na sigla em inglês). Já a segunda, voltada para oficiais de mais alta patente, ofertava treinamentos em inglês, sendo administrada pela USAID, por meio do seu Escritório de Segurança Pública (OPS, na sigla em inglês) – dirigido este, desde sua criação, em 1962, até a sua extinção, em 1974, pelo agente da CIA Byron Engle, o que já nos diz muito sobre a trama que restava por trás. 

Para frequentarem tais academias no exterior, os militares brasileiros eram selecionados pela Embaixada dos EUA no Brasil e tinham todas as suas despesas custeadas pela AIC/USAID. Entre 1960 e 1972, segundo Rodrigo Patto Sá Motta, menos de 100 oficiais brasileiros foram enviados para a Iapa; já para a IPA, destino preferencial dos nossos policiais, esse número passou de 800. 

Por parte dos nossos oficiais, uma miríade de interesses materiais esteve por trás da nossa disposição em “cooperar” com os EUA – disposição essa que muitas vezes significou uma postura de humilhação perante os estrangeiros –, tanto em relação ao treinamento como em relação aos equipamentos recebidos. Nesse sentido, temos que, conforme explica o professor Enrique Serra Padrós: 

O treinamento ministrado pelos especialistas dos EUA tornou-se uma oportunidade de ascensão na carreira e de melhoria salarial para os quadros escolhidos. Os oficiais que passavam por tais cursos conseguiam promoções mais rápidas, tinham mais oportunidades de serem chamados para tarefas especiais ou atividades de assessoramento e podiam vir a assumir protagonismos futuros que constituíam expectativas concretas de vantagens pessoais (altos postos de comando, cargos ministeriais, direção de empresas públicas, representação em missões no exterior, etc.) …

Outrossim, um departamento de polícia mais bem equipado significava, particularmente no pós-1964, uma mais firme repressão, de um lado, e uma grande demonstração de trabalho (mais viaturas de radiopatrulha nas ruas, novas delegacias, uso de novas tecnologias etc.) perante a população “de bem”, de outro, pelo que era duplamente favorecida a manutenção do regime de exceção vigente, alinhado aos EUA, pela força e pelo consenso. Não por acaso, pois, funcionários do OPS participaram do lançamento da Operação Bandeirantes (Oban), em 1969, um esforço de integração das Forças Armadas e das polícias militares e civis brasileiras que culminaria nos DOI-CODIs, verdadeiros centros de tortura e Inteligência no país. Ademais, Kruel logrou seus objetivos: o DFSP se transforma, com a pseudoconstituição de 1967, em Departamento de Polícia Federal, aos moldes do FBI, quando é também criada a Academia Nacional de Polícia, seguindo o modelo, idem, da Academia Nacional do FBI.

(Arquivo) Radiopatrulha restaurada, usada pela Polícia Civil de Santa Catarina nos anos 1970 (Acervo pessoal)

 Jogando com essência e aparência 

Tais programas foram, enfim, encerrados na década de 1970 pelo Congresso dos EUA, por pressão de frações da elite dirigente e da opinião pública desse país, que parecem haver desaprovado, quanto ao Brasil, o Ato Institucional n. 5, e que vinham assistindo atônitas aos cada vez mais violentos atentados levados a cabo pela luta armada contra funcionários do governo estadunidense lotados junto a Embaixadas na América Latina – do que é exemplar o assassinato de Charles Chandler, em 1968, em São Paulo. Além disso, começavam a vir à tona na mídia internacional denúncias de tortura nas dependências das Forças Armadas e das polícias latino-americanas, com as quais os EUA cooperavam via USAID, agência diretamente subordinada ao Departamento de Estado, o que poderia levar a um desgaste ainda maior da imagem do país mundo afora. 

O fim da “ajuda” concedida pelos EUA via USAID, todavia, de forma alguma pôs termo à cooperação Brasil-EUA em matéria de Segurança Pública. Esta continua até nossos dias, com o mesmo caráter desigual e violento, porém em uma formatação bastante menos formal e institucionalizada. Seu fim, por parte dos EUA, é, também, o mesmo: gerir um consenso em Segurança Pública, por meio do qual logre nos manipular ao seu bel-prazer, fazendo-nos trabalhar, de diversas formas, em prol dos seus interesses. Há quem ganhe lá, e há quem ganhe cá. A dinâmica se mantém. 

 

Conheça outros textos do autor para o OPEU 

Informe “Reflexões sobre Trump, Musk e a simbiose público-privada nos EUA”, em 11 fev. 2025 

Informe “AIPAC x SQUAD: o ‘lobby’ israelense para impedir candidaturas progressistas nos Estados Unidos”, em coautoria com Camila Vidal, em 8 jan. 2025 

Informe “O que significa Marco Rubio como secretário de Estado para a política externa dos EUA?”, em 15 nov. 2024 

Informe “O evangelho d’O Sonho Americano, pela Rede Globo”, em 13 nov. 2024 

 

* João Gaspar é graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina, bolsista do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA-UFSC) e colaborador do projeto Coerção e Consenso: a Política Externa dos EUA para a América Latina. Contato: joaogkg@hotmail.com.  

** Revisão e edição final: Tatiana TeixeiraRecebido em 24 fev. 2025. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU. 

*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mailtatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mailtcarlotti@gmail.com. 

 

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