Internacional

De volta à Casa Branca, Trump restabelece sanções ao Tribunal Penal Internacional 

Sede do TPI, em Haia (Crédito: Greger Ravik/Flickr)

Por Arthur Alcântara, Ana Clara Melo e Marrielle Maia* [Informe OPEU] [Trump 2.0] [TPI] 

Em meio à visita do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, a Washington e à série de declarações em apoio ao fim do cessar-fogo e ao plano de reocupação da Faixa de Gaza, Trump assinou, no último dia 6, a ordem executiva Imposição de Sanções ao Tribunal Penal Internacional, restabelecendo sanções contra os funcionários e o aparelho institucional do TPI. 

O decreto presidencial chega como uma retaliação direta à decisão do Tribunal que determinou, em novembro do ano passado, a prisão de Netanyahu e de seu ex-ministro da Defesa Yoav Gallant, acusados de cometerem crimes de guerra e crimes contra a humanidade contra a população de Gaza a partir dos ataques iniciados em 7 de outubro de 2023. Entre as acusações, alega-se que, além de terem ordenado ataques que resultaram na morte de civis, os líderes israelenses deveriam ser julgados por perseguição e “outras ações inumanas”, incluindo o uso da fome como estratégia de guerra, resultado da obstrução posta à chegada de ajuda humanitária internacional ao território. 

(Arquivo) O então ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, em coletiva de imprensa em Tel Aviv, Israel, em 18 dez. 2023 (Crédito: Departamento da Defesa dos EUA/Chad J. McNeeley. Fonte: Wikimedia Commons)

As novas sanções repetem as medidas adotadas por Trump em seu primeiro mandato (2017-2020), quando se valeu da mesma estratégia para impedir o avanço de investigações do TPI acerca de violações humanitárias e crimes de guerra cometidos no Afeganistão nos anos de ocupação norte-americana (Bloqueio de Bens de Determinadas Pessoas Associadas ao Tribunal Penal Internacional – 11/6/2020). Restabelece-se em 2025 o congelamento de ativos, a proibição de transações e a restrição de entrada (revogação de vistos) de funcionários do Tribunal e “quaisquer pessoas que auxiliem o Tribunal em investigações contra cidadãos americanos ou aliados dos Estados Unidos”. Em uma ampliação do escopo das sanções, incluiu-se, nesta versão, familiares de funcionários do Tribunal à lista de sancionados. No documento, o presidente caracteriza essas pessoas como uma “ameaça” à segurança nacional do país. 

A princípio, a pressão política sobre o Tribunal impediu que as investigações sobre o caso afegão progredissem. Em decisão nas instâncias preliminares, rejeitou-se o pedido da Promotoria, alegando que as condições locais impediriam seu progresso – ou seja, que não haveria cooperação suficiente para dar continuidade ao processo. A decisão foi celebrada pelo governo Trump como um triunfo. De volta ao poder, e com um aliado próximo em situação semelhante àquela vivenciada no primeiro mandato, Trump prontamente reinstituiu as restrições que haviam sido suspensas durante o Governo Biden, com o objetivo de que resultados semelhantes sejam obtidos em torno da investigação da situação em Gaza. 

O hiato na Presidência republicana permitiu fôlego para que se procurasse na política externa uma reaproximação das organizações internacionais e de mecanismos de Justiça Internacional. Na direção contrária de Trump, a política de Biden se concentrou na reafirmação do compromisso do país com os princípios de justiça e com a cooperação multilateral. No entanto, internamente, as posições anti-TPI se mantiveram influentes e retornaram com maior projeção após o indiciamento dos líderes israelenses. Com apenas dois meses restantes no enfraquecido mandato de Biden e com o horizonte de Trump de volta à Presidência, o Legislativo buscou, já em 2024, antecipar o restabelecimento das restrições. 

Entre novembro e dezembro, o Congresso tentou tramitar uma legislação que impusesse medidas semelhantes ao Tribunal. Sem obter a maioria necessária, essa primeira tentativa parou no Senado. Novamente em janeiro, republicanos e democratas trabalharam juntos para aprovar (243 a 140) no Congresso um novo projeto de lei, o Lei de Contração a Tribunais Ilegítimos, direcionado a “revogar os vistos e a bloquear transações de qualquer oficial do TPI ou entidades que o apoiem e que realizem qualquer esforço para investigar, prender, deter ou processar qualquer pessoa protegida dos Estados Unidos e seus aliados. 

Compondo a pasta da mais de uma dúzia de ordens executivas assinadas pelo presidente nas primeiras semanas do novo mandato, o ato executivo do dia 6/2 contorna os obstáculos políticos enfrentados no Capitólio, valendo-se de mecanismos normativos que permitem ao presidente a adoção de tais medidas em situações entendidas como de “emergência nacional”. Entre os mecanismos, estão a Lei sobre Poderes Econômicos em Situações de Emergência Internacional (IEEPA – 50 U.S.C.1701 et seq.), a Lei de Emergências Nacionais (NEA – 50 U.S.C. 1601 et seq.), a seção 212 (f) da Lei de Imigração e Nacionalidade (INA 1952 – 8 U.S.C. 1182 (f), assim como a seção 301 do título 3 do United States Code, todos citados no decreto do último dia seis.  

O Estatuto de Roma e a questão da jurisdição 

O governo americano sustenta que, com suas decisões recentes em relação a Gaza, o Tribunal agiu “sem fundamento ou base legítima”, ao assumir jurisdição e iniciar investigações contra cidadãos americanos e de países aliados, descrevendo o ato como um abuso de poder da Procuradoria contra Estados não-membros do Estatuto de Roma (documento que deu origem ao TPI). Esse alegado abuso é descrito por Washington como uma ameaça direta à segurança nacional e aos interesses internacionais dos Estados Unidos, que coloca membros do atual e de antigos governos estadunidenses, incluindo membros ativos das Forças Armadas, em perigo, ao expô-los a assédio, abuso e possível prisão. 

Nos termos do Estatuto, a jurisdição do Tribunal sobre um crime está condicionada à ratificação ou adesão ao Estatuto de Roma pelo Estado em cujo território o crime foi cometido, ou de nacionalidade do autor do delito ou, alternativamente, a concessão voluntária de jurisdição pelo Estado de nacionalidade do autor do delito ou onde o crime ocorreu. O principal fundamento para a imposição de sanções contra o TPI e seus colaboradores reside na alegação de que, uma vez que nem os Estados Unidos nem Israel são signatários do Estatuto, o Tribunal não teria competência para supervisionar tais casos. Contudo, a questão se tornou significativamente mais complexa após o TPI, em 2015, reconhecer jurisdição ao aceitar a adesão do “Estado da Palestina” como signatário do tratado. Tal decisão é foco de controvérsias, uma vez que a Palestina não é amplamente reconhecida como soberana pelos demais Estados, levantando questionamentos sobre a legitimidade da atuação do Tribunal nesses casos. 

Trump defende as sanções aos funcionários do Tribunal como um passo necessário para proteger membros do governo e militares de um “perigoso precedente” estabelecido pelas investigações do TPI. As sanções não apenas visam a indivíduos, mas também enviam um sinal mais amplo sobre a posição dos EUA em relação aos mecanismos judiciais internacionais, gerando preocupações sobre o potencial efeito intimidatório nas atuais iniciativas de justiça internacional.  

O alvo principal de Trump 

O principal alvo das sanções é o procurador-chefe do Tribunal, Karim Khan, que teve seu nome anexado diretamente ao decreto em um anexo publicado no último dia 11. O britânico é também um dos primeiros a sentir os efeitos das restrições, que interferem diretamente no funcionamento do Tribunal e da Organização das Nações Unidas (ONU). Como procurador, Khan deveria poder viajar regularmente a Nova York, cumprindo a função de participar das reuniões e informar o Conselho de Segurança da ONU sobre casos que o órgão encaminhou ao Tribunal, como os da Líbia e de Darfur.  

A decisão de impedir que Khan, na função de representante do Tribunal nas Nações Unidas, cumpra suas responsabilidades, desafia diretamente o Acordo da Sede da ONU, assinado entre os Estados Unidos e a Organização em 1947. Caso Washington mantenha a decisão e impeça sua entrada, pode-se configurar uma violação de compromisso internacional e criar um precedente preocupante, ao permitir que um Estado use sanções como forma de retaliação contra instituições jurídicas globais, minando o princípio da responsabilização por crimes internacionais e enfraquecendo os mecanismos de governança internacional baseados no direito. 

Essa pode muito bem ser compreendida como uma estratégia consciente inserida na política de Trump de desmantelamento de organizações e regimes internacionais da ordem global baseada no multilateralismo. Ao tentar minar a credibilidade do TPI, Trump se insere em uma linha de conduta que privilegia a subversão da cooperação internacional em nome de um isolacionismo pragmático, no qual os interesses nacionais, especialmente no tocante à segurança e à política externa, são priorizados em detrimento de compromissos com a justiça global. É fato que a postura adotada pelos Estados Unidos nesse contexto visa a enfraquecer os mecanismos jurídicos que buscam responsabilizar indivíduos por crimes internacionais, ao mesmo tempo que demonstra um desprezo pelas normativas e pelos acordos internacionais que regulam a cooperação global em questões de direitos humanos e justiça penal. 

A repercussão internacional 

Em resposta às sanções, Estados, organizações internacionais e outros atores se manifestaram, refletindo sobre a gravidade e a polarização em torno da decisão. Em uma declaração oficial, a presidente do TPI, juíza Tomoki Akne, reafirmou o compromisso da instituição com a justiça internacional, destacando que os ataques ao tribunal e suas operações representam uma tentativa de “prejudicar seu trabalho independente e imparcial”. Em uma ação coordenada, 79 dos 125 Estados-membro do TPI, incluindo Brasil, Canadá, Grã-Bretanha, França e Alemanha, emitiram uma declaração conjunta que expressa preocupações sérias com os impactos dessas sanções, alertando para o risco de impunidade que elas poderiam gerar. O documento ressalta que as restrições podem não apenas obstruir investigações em andamento, mas também comprometer a segurança dos funcionários do TPI e das pessoas envolvidas nos casos, como as vítimas de crimes de guerra e crimes contra a humanidade.  

Judge Tomoko Akane | Judge Tomoko Akane | International Criminal Court /  Cour pénale internationale | FlickrJuíza Tomoki Akne (Fonte: TPI/Flickr)

Para os peritos da ONU, o ataque às operações do TPI contraria a memória e o legado de Nuremberg, que estabeleceu as bases do direito penal internacional após a Segunda Guerra Mundial. Ao impor sanções à Corte, os Estados Unidos não apenas questionam sua autoridade, mas também minam a legitimidade de uma instituição que, desde sua criação, busca garantir a responsabilização de atrocidades em larga escala. Destaca-se ainda que tal ação põe em risco a independência judicial, uma garantia fundamental do funcionamento do TPI e das demais instituições internacionais de justiça. A própria Organização indicou que espera que os Estados Unidos cumpram suas obrigações como país-sede, garantindo que restrições impostas a indivíduos não interfiram nas funções institucionais do Tribunal. 

Países historicamente aliados dos Estados Unidos, como Alemanha e França, manifestaram publicamente seu desagrado com a decisão. O chanceler alemão, Olaf Scholz, advertiu que as sanções comprometeriam uma instituição que, segundo ele, tem como missão garantir que ditadores não possam agir com impunidade, perseguindo pessoas ou iniciando guerras. A França, por sua vez, comprometeu-se a reforçar seu apoio ao TPI, prometendo mobilizar-se junto a seus parceiros para assegurar que a Corte continue seu trabalho de busca por justiça e responsabilização. A Comissão Europeia também se alinhou com a posição do TPI, destacando que o Tribunal oferece voz aos milhões de vítimas de atrocidades ao redor do mundo e que deve ser capaz de prosseguir sua missão sem interferências externas. Essas reações refletem uma crescente preocupação com o impacto de tais medidas sobre a estabilidade das instituições internacionais e sua capacidade de atuar de maneira imparcial e eficaz. Embora algumas nações, como Israel, tenham celebrado a medida, em grande parte, o movimento foi visto como um retrocesso na busca por justiça global. 

Essas reações sublinham a profundidade da divisão gerada pelas sanções, não apenas em termos de relações diplomáticas, mas também no que se refere à integridade do sistema internacional de justiça. Se, por um lado, os Estados Unidos buscam proteger seus interesses e evitar o que consideram uma interferência em sua soberania, por outro, as ações de Washington podem ter o efeito contrário, ao enfraquecer a confiança na justiça global. Até que ponto o uso de sanções como instrumento de política externa pode comprometer a credibilidade e a eficácia de instituições como o Tribunal Penal Internacional? Quais são os limites da soberania de um Estado, quando se trata de compromissos internacionais voltados para a proteção dos direitos humanos e à justiça global? E, talvez mais importante, como garantir que a luta contra a impunidade e pela responsabilização internacional não seja desmantelada por pressões políticas, especialmente de grandes potências? Essas questões não apenas desafiam as normas vigentes de governança global, mas também lançam um alerta sobre o risco de retrocessos em um sistema jurídico que foi arduamente construído para enfrentar as atrocidades cometidas por Estados e atores não estatais. O futuro da justiça internacional depende de uma reflexão cuidadosa sobre essas dinâmicas e de um compromisso renovado com os princípios que fundamentam a responsabilização global.

 

* Arthur Alcântara é mestrando no Programa de Pós-graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP) e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU). arthur.f.alcantara@gmail.com. 

Ana Clara Melo é pesquisadora do Núcleo de Pesquisas e Estudos em Direitos Humanos, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Contato: anaclaramelosilva00@gmail.com. 

Marrielle Maia é pós-doutoranda no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, doutora em Política Internacional pela mesma instituição, coordenadora do Grupo de Estudos em Direitos Humanos do INCT-INEU, no qual é pesquisadora, e da Cátedra Sérgio Vieira de Mello da Universidade Federal de Uberlândia, além de professora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UFU. Contato: Marrielle@ufu.br. 

** Revisão e edição: Tatiana TeixeiraRecebido em 13 fev. 2025. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU. 

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