América Latina

Atuação da USAID na América Latina (2001-2021)

(Arquivo) Guarda Costeira dos Estados Unidos entrega pacotes da USAID, em 4 nov. 2007 (Crédito: Guarda Costeira dos EUA/Wikimedia Commons) 

Segundo da série “Atuação e sombras da USAID na América Latina” 

Por Camila Feix Vidal e Larissa Gheller* [Informe OPEU] [USAID] [América Latina] 

A Agência dos Estados Unidos para Desenvolvimento Internacional (USAID, na sigla em inglês) é a instituição governamental estadunidense, vinculada ao Departamento de Estado, que opera internacionalmente em 160 países e a partir de um corpo de funcionários que engloba cerca de 10 mil colaboradores. Desse total, 36% se encontram em Washington, D.C., e 64% estão localizados no exterior, conforme informação referente a 2019, disponível no site institucional antes de a página ser retirada do ar pelo atual governo de Donald Trump. Como captadora de recursos financeiros (98% são recursos públicos aprovados anualmente pelo Congresso), a USAID trabalha a partir de uma rede capilarizada nos Estados Unidos e fora do país por meio de projetos próprios, com funcionários da agência alocados no exterior, por exemplo; e de “parceiros”, ou seja, instituições privadas e organizações não governamentais estadunidenses e estrangeiras.  

Entre 2001 e 2021, a USAID desembolsou quase US$ 20 bilhões apenas na América Latina, trabalhando com mais de 680 “parceiros” – 60% deles sediados nos EUA. Durante esse mesmo período, a instituição atuou, sobretudo, nos setores de governança, saúde, assistência humanitária e agricultura, abarcando 70% do total de projetos desenvolvidos na América Latina. Desse modo, buscamos aqui apresentar uma breve radiografia da atuação da agência estadunidense na América Latina nas duas primeiras décadas do século XXI, a partir de dados retirados de seu website e de documentos divulgados pelo Departamento de Estado nos EUA.  

“Ajudando” os latino-americanos 

In Their Own Best Interest: A History of the U.S. Effort to Improve Latin Americans: Schoultz, Lars: 9780674984141: Amazon.com: BooksUm dos melhores livros escritos sobre a tradição virtuosa da política externa estadunidense em “ajudar” os países menos desenvolvidos, é o de Lars Schoultz, In their own best interest (Editora, 2018). Nele, o autor afirma que os EUA vêm tentando “melhorar” a América Latina há mais de 100 anos por meio de instituições construídas sobre uma sólida base fundamentada na cultura do uplifting desenvolvida por Washington ainda no início do século XIX. Para Shoultz (2018, p. 4), a intrincada burocracia institucionalizada para intervenção assistencialista “serve como base de apoio a instituições com dezenas de milhares de funcionários do governo e contratados privados que pregam e ensinam tudo, desde higiene bucal à democracia representativa, e não mostram sinais de desaceleração”. Nesse sentido, o autor argumenta que essa mesma “ajuda” pode ser lida como “um mecanismo de conquista, um álibi para o poder, uma subjugação suave” (p. 6).  

A USAID foi criada a partir da estratégia estadunidense de combate ao comunismo em que previa desenvolvimento econômico na periferia. A ideia de “desenvolver” países na periferia global se deu, sobretudo, pela preocupação com a América Latina. Não à toa, as primeiras tratativas para a criação da agência têm início após a visita do vice-presidente Richard Nixon, em 1958, à América do Sul. Diferentemente de sua visita em 1955 ao Caribe e à América Central, quando apoiou ditadores sob a justificativa de que “a democracia não era uma opção na América Latina” (apud Schoultz, 2000, p. 389), as cerimônias oficiais do final da década de 1950 foram acompanhadas de multidões enfurecidas em Lima (Peru) e em Caracas (Venezuela). Entendendo que “a geração mais jovem de líderes latino-americanos […] era ingênua em relação à ameaça comunista” (Nixon apud Schoultz, 2000, p. 390), a experiência serviu como um gatilho para dar início a um projeto amplo e bipartidário de assistência externa estadunidense, por meio da criação de uma agência específica para esse fim.  

Nesse sentido, criava-se, a partir de 1961, a instituição que serviria, formalmente, para promover o desenvolvimento e a democracia no exterior e, assim, enfraquecer aspirações comunistas. A teoria, entretanto, ficou longe da prática. Já nos primeiros anos de sua atuação, a USAID forneceu apoio a candidaturas oposicionistas ao governo João Goulart no Brasil, conforme apresentado no primeiro informe dessa série, e, uma vez deposto, forneceu apoio financeiro durante os primeiros cinco anos do regime militar1. Da mesma forma, apoiou também o governo Augusto Pinochet no Chile quando, menos de um mês após o golpe militar de 1973, foi autorizado empréstimo, via USAID, para compra de trigo nos EUA em um montante equivalente a oito vezes mais que o crédito total para produtos primários oferecidos a esse mesmo país durante os três anos do governo Allende2 

USAID e a falácia da generosidade

Saiba mais sobre a USAID, neste Informe OPEU, de Camila Vidal 

Por fim, a “ajuda” parece ser perpétua. Mesmo na Costa Rica, considerada a democracia latino-americana mais consolidada, a USAID oficialmente finalizou suas atividades no país em 1996, mas nunca de fato saiu do país. Em 2011, o embaixador dos EUA se referiu à Costa Rica como um país “em desenvolvimento, mas ainda não desenvolvido”, posição reafirmada pelo Departamento de Estado (DoS, na sigla em inglês) também em 2016 (apud Schoultz, 2018, p. 298). A indústria da assistência, é bom lembrar, gera empregos nos EUA, benefícios para empresas e implementação de políticas favoráveis aos EUA nos países intervencionados. Fornecendo uma roupagem virtuosa para a manutenção hegemônica, a USAID parece ser a consolidação da luva de veludo envolta em um punho de ferro, conforme analogia de Petras e Veltmeyer, no livro Power and Resistance: US Imperialism in Latin America (Editora Brill, 2016). 

Atuação na América Latina 

A USAID atua na América Latina e a prioriza, desde os seus primeiros dias. Conforme exposto pelo Gráfico 1, há uma evolução do desembolso total realizado pela Agência na região de 2001 a 2021, ao passo que, na Figura 1, pode-se observar a assistência estrangeira da USAID desenvolvida neste mesmo período através de um mapa, a fim de tornar mais visível a distribuição geográfica. Percebe-se que, no início do século XXI, em meio à gestão de George W. Bush e aos atentados de 11 de setembro de 2001, o valor total investido pela USAID nos países latino-americanos decresceu por cinco anos seguidos, tendo uma queda de mais de 30% de 2002 a 2007. A partir de 2008, já sob o governo de Barack Obama, os desembolsos da agência de desenvolvimento estadunidense voltaram a subir significativamente, ultrapassando US$ 1,5 bilhão em 2010, período em que o auxílio financeiro foi especialmente alavancado pelos investimentos de caráter emergencial voltados para o terremoto no Haiti. Após este pico, entretanto, o desembolso total voltou a cair até 2014, retomando o crescimento em seguida (com leve queda em 2018) e atingindo um novo ápice a partir da pandemia de 2020. 

Gráfico 1 – Evolução do desembolso total da USAID na América Latina (2001-2021)  

Fonte: Elaboração própria com base em USAID (2022) 

Figura 1: Mapa da distribuição do desembolso total da USAID na América Latina (2001-2021) em US$ 

Fonte: Elaboração própria com base em USAID (2022) 

Tendo como foco os países mais representativos, o Gráfico 2 apresenta a evolução dos recursos financeiros gastos pela USAID durante as duas primeiras décadas do século XXI. Haiti e Colômbia são os principais receptadores, correspondendo – juntos – a mais de um terço do total da assistência financeira desembolsada pela instituição na América Latina.  

Gráfico 2 – Evolução do desembolso da USAID em países-foco na América Latina (2001-2021)  

 

Fonte: Elaboração própria com base em USAID (2022) 

Já os gráficos 3 e 4 mostram a participação e o número de parceiros na implementação de projetos da agência no continente latino-americano nesse mesmo período. Nesse sentido, é importante mencionar que a USAID apresenta oito categorias de parceiros – estadunidenses e nacionais nos países intervencionados. São elas: parcerias públicas e privadas; universidades e institutos de pesquisa; órgãos multilaterais; redes, igrejas e instituições baseadas na fé; governos; organizações não governamentais (ONGs); e empreendimentos.  

O maior número de parceiros se enquadra nesses três últimos: governos, ONGs e empreendimentos. Juntos, eles representam mais de 80% do total de US$ 19 bilhões desembolsados pela USAID na América Latina entre 2001 e 2021. Nessa chave, os parceiros categorizados como “empreendimentos” são os mais expressivos. São 181 empresas (93 delas com sede nos EUA) que se somam a 42 estrangeiras, desempenhando projetos na região latino-americana e representando 39% do total desembolsado pela USAID nesse período. Já com relação às ONGs, a agência firmou parceria com 277 organizações não governamentais (120 sediadas nos EUA, 135 sediadas em outros países, e 22, de caráter “internacional”) implementando projetos que representam aproximadamente 31% dos recursos para a América Latina. No âmbito dos governos, essas parcerias incorporam pelo menos 13% dos recursos investidos na região e se organizam em torno de projetos implementados por parceiros “governamentais” que somam 21 na América Latina, e 30, nos EUA. Por fim, cabe ainda ressaltar que a agência realizou parceria com 67 universidades e institutos de pesquisa – 51 estadunidenses, e 16 deles, latino-americanos. No total, a USAID trabalhou com 684 parceiros na América Latina entre 2001 e 2021.  

Gráfico 3: Participação das categorias de parceiros de implementação da USAID no total desembolsado na América Latina (2001-2021)  

Fonte: Elaboração própria com base em USAID (2022) 

Gráfico 4: Número de parceiros de implementação dos projetos da USAID por categoria na América Latina (2001-2021) 

Fonte: Elaboração própria com base em USAID (2022) 

Tendo em vista o número expressivo de ONGs que implementaram projetos da USAID no século XXI, as quais representam mais de 40% do total de parceiros da agência na América Latina, cabe retomar a argumentação de Elizabeth Borelli, no artigo “Neoliberalismo e ONGs na América Latina”, de 2021, sobre o papel dessas organizações no continente. Com atuação significativa junto a estes canais de implementação, os Estados Unidos reforçam os princípios de sua política neoliberal nos países latino-americanos, diminuindo a responsabilidade estatal sobre o bem-estar da população, uma vez que os projetos desenvolvidos em conjunto com as ONGs diversas vezes assumem funções antes desempenhadas pelo Estado do país-alvo. As ONGs, sob uma roupagem humanitária, desenvolvimentista e de comprometimento com diversas problemáticas da atualidade, servem, portanto, como passagem dos fluxos financeiros do governo de Washington (através da USAID) para as nações que fazem parte do “quintal” dos Estados Unidos.  

O gráfico 5 ilustra, por sua vez, a participação dos setores de investimento no total desembolsado pela USAID entre 2001 e 2021 na América Latina. Projetos de governança se destacam ao representarem mais de um quarto do total, seguido pelas categorias de saúde (15,2%), assistência humanitária (14,2%) e agricultura (11,9%). Essas quatro categorias somam mais de US$ 13 bilhões e correspondem a quase 70% de toda a assistência financeira para a região nas duas primeiras décadas do século XXI. No campo da saúde, cabe citar o recurso enviado durante a pandemia da covid-19, ao passo que os projetos no âmbito da agricultura se sustentam pelo combate ao narcotráfico (em específico na Colômbia e no Peru). Projetos no âmbito da governança, ao fim, podem ser considerados dentro da lógica do uplifting (Schoultz, 2018) em que, sob a justificativa da boa governança, agentes da USAID continuam atuando nos países intervencionados mesmo após o término oficial de uma missão nesse país.  

Gráfico 5: Participação dos setores de investimento no total desembolsado pela USAID na América Latina (2001-2021): 

 Fonte: Elaboração própria com base em USAID (2022) 

Através da USAID, os EUA promovem determinados projetos apoiados em uma gama de parceiros. Apesar do caráter moral instituído às ações intervencionistas, os projetos implantados pela USAID se baseiam na formulação de interesses prioritários da política externa dos EUA e, assim, dirigidos para a manutenção da sua própria hegemonia no continente latino-americano. Dessa forma, a USAID substitui a intervenção dura, a partir da atuação terceirizada do Departamento de Estado por meio de uma série de parceiros capilarizados em vários projetos por toda a América Latina. Envoltos da roupagem virtuosa da assistência, o DoS, por meio da USAID, garante que os interesses geopolíticos e materiais desse país sejam assegurados na região. 

* Como o site da USAID está fora do ar, não foi possível incluir os links de todos os documentos mencionados no texto. 

 

* Camila Feix Vidal é professora no Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e faz parte do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Política Internacional Contemporânea (GEPPIC), do Instituto de Estudos para América Latina (IELA/UFSC) e do Instituto Memória e Direitos Humanos (IMDH/UFSC). Contato: camila.vidal@ufsc.br e camilafeixvidal@gmail.com.   

Larisa Gheller é graduada em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Contato: larigheller@gmail.com. 

** Revisão e edição final: Tatiana TeixeiraRecebido em 10 fev. 2025. Este Informe OPEU é fruto do trabalho de conclusão de curso de Larissa Gheller, com orientação da profa. Camila Vidal. Esse conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU. 

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