Política Doméstica

Reflexões sobre Trump, Musk e a simbiose público-privada nos EUA

Trump e Elon Musk (Crédito: Gabinete do presidente da Câmara Mike Johnson, domínio público, via Wikimedia Commons. Fonte: Teslarati)

Por João Gaspar* [Informe OPEU] [Trump 2.0] [Elon Musk 

Historicamente, as fronteiras entre poder público e grande capital nos EUA sempre foram porosas, especialmente no concernente ao emprego de violência para persecução de interesses comuns. 

São exemplares disso as ofensivas paramilitar e jurídica orquestradas e executadas, ambas, pelo Departamento de Estado (DoS, na sigla em inglês), informado pela United Fruit Company, contra o governo de Jacobo Árbenz na Guatemala, em 1954, no primeiro caso, e pela burguesia estadunidense, ciosa de sua hegemonia multidimensional, contra duas das maiores empresas brasileiras, em 2013, quais sejam, Petrobras e Odebrecht, no segundo. De um lado, para restituir à multinacional das bananas suas possessões territoriais e lhe permitir restabelecer o regime de trabalho análogo à escravidão sobre os camponeses guatemaltecos, bem como para instalar um governo alinhado aos EUA, em um contexto de Guerra Fria, na Guatemala. De outro, para levar aquelas companhias nacionais à bancarrota, findando com a concorrência oferecida pelo Brasil, e para estancar nossa socialdemocracia, que ensaiava, então, certa altivez. 

Não obstante, jamais se viu o que ora se vê: o homem mais rico do mundo continuamente sendo empoderado, com ferramentas do Estado, pelo presidente dos EUA, que o tem abertamente como membro especial do seu governo. E mais: sendo designado para chefiar o pseudo-Departamento de Eficiência Governamental (DOGE, na sigla em inglês), criado especialmente para tal bilionário, pelo que todos os fluxos financeiros e todo o fluxograma burocrático estadunidenses vêm a restar em suas mãos, inconstitucionalmente que o seja. Isso para se citar apenas um episódio… 

A título de comparação, em 1954, a material instrumentalização do poder público pelo grande capital, nos EUA, mostrava-se bem mais dissimulada. O então assistente do secretário de Estado para a América Latina, John Cabot, era irmão do presidente da United Fruit Company, Thomas Cabot, e a secretária pessoal do presidente Eisenhower, Ann Whitman, era casada com o diretor de Relações Públicas daquela empresa, Edmund Whitman. Além disso, os irmãos John Foster Dulles e Allen Dulles, secretário de Estado e diretor da CIA do governo Eisenhower, respectivamente, eram sócios do escritório de advocacia Sullivan and Cromwell, que representava a United Fruit Company – ou seja, tinha-se, então, que ao menos ligar os pontos para que se compreendesse o esquema em voga. Em 2013, mais difícil ainda era descortinar a trama, uma vez a burguesia envolvida, lá e cá, não dava as caras, nem podia ser identificada por suas relações com funcionários públicos, outra vez, de lá e de cá, sem que, primeiro, fosse interrompida a operação de lawfare, para então se procedesse a investigações mais profundas sobre remessas de dinheiro, compra de influência, projetos políticos etc. 

Hoje? Basta assistir às caras e bocas do quarteto bilionário presente na posse de Trump – Elon Musk (Tesla, SpaceX, X/Twitter etc), a que se fez referência acima, Jeff Bezos (Amazon), Mark Zuckerberg (Meta – WhatsApp, Facebook, Instagram etc.) e Tim Cook (Apple), honoráveis bandidos que somam cerca de US$ 887,3 bilhões, ou R$ 5,3 trilhões – para se aperceba o que ora se passa. Dentre outros nomes que lá também estiveram, não por acaso quase todos do setor das Big Techs, destacam-se Sundar Pichai (Google) e Sam Altman (OpenAI/ChatGPT). Todos eles vêm a ser peças-chave para a preservação do frágil monopólio estadunidense sobre tecnologias sensíveis, como ferramentas de busca e Inteligência Artificial – algo objetivado pela administração republicana, em uma lógica securitária –, assim como parecem se interessar, sobremaneira, por se vincularem ao poder público para receberem incentivos produtivos e poderem operar mais livremente, no que tange à coleta de dados dos usuários, por exemplo (afinal, tal material pode ser vendido, direta ou indiretamente, a agências federais de law enforcement, como CIA, DEA e FBI). 

Protesters stand with signs that say "STOP MUSK." ‘Parem Musk’: protestos tomam contam das principais capitais dos EUA (Fonte: The 51st. Crédito: Ezra Deutsch-Feldman)

É interessante, pois, ver que, ao contrário do imperialismo, por exemplo, que mais refinado se torna com o passar do tempo, cada vez mais prescindindo da violência direta para perpetuar a espoliação que engendra, o caráter classista do Estado parece fazer-se mais escancarado de tempos em tempos, talvez não continuamente, é verdade, mas antes acompanhando a ascensão de tais ou quais figurões, de tal ou qual partido, às cúpulas das elites dirigentes nacionais, informados todos pelas respectivas burguesias. 

Nos EUA, tem-se o exemplo perfeito disso: enquanto seu modus operandi imperialista é remodelado sem cessar, em direção a um abuso crescentemente estrutural, passando de intervenções diretas e de apoio político-logístico a golpes (coerção) à doutrinação e à chantagem para a cooptação de elites dirigentes e econômicas (consenso), cada qual sob modalidades várias, a simbiose público-privado, por sua vez, que desde há muito se aprofunda, vem fazendo-se, nos últimos anos, menos dissimulada. E isso acontece, em grande medida, devido às administrações verborrágicas de Donald Trump, que parece fazer da aliança com o grande capital verdadeira bandeira política, o que, favorecendo tanto a campanha republicana, como o segmento da burguesia envolvida, faz os adversários políticos terem de se valer do mesmo instrumento – caso queiram continuar, de fato, no jogo. 

É, pois, nesse sentido que se entende o fato de o interregno democrata não haver estancado ou revertido o processo de explicitação das relações entre poder público e grande capital nos EUA, mas apenas haver feito com que ele andasse mais devagar. É o que se apercebe, por exemplo, da lei sancionada pelo então presidente Joe Biden quanto à obrigatoriedade da venda das operações do aplicativo chinês TikTok nos EUA a uma empresa nacional, sob pena de ser banido do mercado estadunidense. 

Abrindo a ‘porteira’ 

A volta de Donald Trump à Casa Branca, nesse contexto, deu novo ensejo a que perdessem, de pronto, o pudor remanescente em seu relacionamento o grande empresariado e os dirigentes do país. Isso se depreende, afora doutros fatos recentes, de sua posse, do cargo ao qual investiu Elon Musk e, ainda, da sua disposição em fazer com que ao menos 50% do TikTok esteja em carteiras de estadunidenses – o que parece será fácil, do ponto de vista do comprador, já que, segundo o próprio Trump, todas as pessoas ricas ligaram para ele para falar sobre a compra do software, inclusive o próprio Musk. 

Saiba mais sobre o que pode representar a presença de Elon Musk em Trump 2.0, neste Diálogos INEU, com os professores Neusa Maria Bojikian e Roberto Moll

Parece difícil, destarte, que alguém do core político estadunidense disponha-se, a esta altura, a minimamente que seja lutar pela independência do poder público frente ao capital, nem que fosse apenas para manter as aparências institucionais republicanas. Pois, acostumados com as facilidades e o poder que têm, não o permitiriam os burgueses estadunidenses; e dependentes do financiamento e amparo discursivo dos mesmos, tampouco fariam-no os altos dirigentes nacionais – ambos os grupos contra os quais pouco resta senão a revolução. Aqueles que o intentaram modestamente, burocratas e políticos (como Bernie Sanders), falharam. 

David Lebryk, por exemplo, deixou sua carreira de 35 anos no Departamento do Tesouro depois que foi concedido, pelo atual secretário, Scott Bessent, acesso “somente-leitura” aos servidores do DOGE Marco Elez e Tom Krause aos arquivos do Escritório do Serviço Fiscal (BFS, na sigla em inglês), órgão do Tesouro que contém uma série de dados sensíveis de cidadãos e empresas americanos. Lebryk, junto de outros servidores, tentou impedir que os funcionários do DOGE acessassem os registros do BFS, por todos os riscos que isso poderia vir a significar, seja no que tange a conflito de interesses, seja relativo à privacidade mesma do contribuinte estadunidense. Não conseguiu. 

É importante, nesse ínterim, ter em mente que Elez – que renunciou ao cargo no DOGE na última sexta (7), após serem encontradas postagens racistas em um perfil vinculado a ele na Internet – foi por vários anos funcionário de Musk, havendo já trabalhado na SpaceX e no X/Twitter, e que Krause, atualmente, é o CEO do Cloud Software Group, holding de cinco empresas especializadas em ferramentas digitais de gestão empresarial. 

A ofensiva por parte do DOGE para obter acesso ao BFS tinha por objetivo o bloqueio de pagamentos federais feitos no escopo de atuação da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, na sigla em inglês), subordinada ao DoS, cujas discutíveis funções vão desde ajuda humanitária até puro instrumento de manutenção da hegemonia estadunidense. O site da agência já se encontra fora do ar, e seus funcionários dispersos mundo afora já estão retornando para os EUA. Ao que parece, eis o surpreendente fim da USAID. 

USAID e a falácia da generosidade

Saiba mais sobre a atuação da USAID, neste Informe OPEU, da professora Camila Vidal

Ainda que seja difícil ficar triste com o desmonte de tal agência, as circunstâncias abrem um precedente perigoso, ainda mais porque o acesso concedido ao BFS não se restringiu a informações acerca da USAID, nem expirará com sua extinção; ou seja, sabe-se lá qual será o próximo alvo de Musk e companhia, ou se não serão utilizados os dados ali disponíveis para que lucre a burguesia estadunidense ainda mais, ou para que se reprima o povo etc. Afinal, historicamente, como dito no início deste informe, a simbiose público-privada nos EUA serviu sobremaneira quando, para que se lograsse ao que se visava, fazia-se necessário empregar a violência. 

É escatológica a visão de sociedade “livre” que têm as classes dominantes estadunidenses, hoje em dia. E perturbadores os seus métodos.

 

* João Gaspar é graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina, bolsista do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA-UFSC) e colaborador do projeto Coerção e Consenso: a Política Externa dos EUA para a América Latina. Contato: joaogkg@hotmail.com. 

** Revisão e edição finais: Tatiana TeixeiraRecebido em 7 fev. 2025. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU. 

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