América Latina

USAID e a falácia da generosidade

Fonte: site da Embaixada dos EUA no Brasil

Primeiro da série “Atuação e sombras da USAID na América Latina” 

Por Camila Feix Vidal* [Informe OPEU] [USAID] 

O segundo governo Donald Trump não perdeu tempo em suspender, já nas suas primeiras ordens executivas, a ajuda financeira ao exterior (à exceção da assistência militar para Egito e Israel). Boa parte, para não dizer a totalidade, da ajuda financeira desse país para o exterior se organiza a partir de uma agência governamental vinculada ao Departamento de Estado com aprovação orçamentária pelo Congresso: a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, na sigla em inglês). Críticos à instituição por conta de sua suposta corrupção e gasto público contrário ao “interesse nacional” Trump e Elon Musk (liderando o novo Departamento de Eficiência Governamental, DOGE) não perderam tempo em encerrar as atividades da mesma. Já no último sábado, 1º de fevereiro, inviabilizaram seu website e, na segunda-feira, 3 de fevereiro, seus servidores foram dispensados, e seus contratados terceirizados, demitidos. Tal ação não causaria surpresa não fosse a magnitude dessa agência. Congressistas (inclusive republicanos) e juristas já debatem a constitucionalidade de seu encerramento a partir de ordem executiva.  

USAID Logo | Image Courtesy: United States Agency for Intern… | FlickrO imbróglio jurídico e constitucional levou a USAID a ocupar papel de destaque na mídia estadunidense, que veicula a preocupação com um possível caos humanitário em diversos países do globo. Uma leitura mais aprofundada, entretanto, nos evidencia que, para além do véu humanitário de “desenvolvimento” internacional, as ações da agência repousam na difusão de um modelo político, econômico e social subserviente aos interesses materiais e estratégicos dos Estados Unidos. Junto com a entrega de alimentos e das mãos entrelaçadas – símbolo da agência (imagem ao lado) –, entrega-se também armamentos, recursos financeiros para lideranças políticas subservientes, desorganiza-se comunidades nativas e se projeta, a partir das escolas e com a ajuda da iniciativa privada, os benefícios do capitalismo e do empreendedorismo mundo afora. 

Historiografia e atuação na América Latina 

Estabelecida pelo governo John F. Kennedy, a USAID buscava incorporar em uma única agência uma série de instituições e programas de ajuda externa que se organizavam nos EUA desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Com um orçamento de mais de US$ 31 bilhões apenas em 2024, é a maior instituição governamental de assistência externa do mundo em números absolutos. Com recursos públicos (98%) aprovados anualmente pelo Congresso dos EUA, atuava, até a semana passada, em quase 160 países. Com o lema “Do povo dos Estados Unidos”, a USAID tem como objetivos “apoiar os parceiros a se tornarem autossuficientes e capazes de liderar suas próprias jornadas de desenvolvimento” e promover “a prosperidade Americana por meio de investimentos que expandem os mercados para as exportações dos EUA; criam condições equitativas para as empresas dos EUA; e apoiam sociedades mais estáveis, resilientes e democráticas” (USAID, 2018). 

A América Latina sempre desempenhou um papel importante no radar da instituição. Foi por meio dela que recursos da Aliança para o Progresso foram enviados aos países da região, direcionando-os, no caso do Brasil, para candidaturas oposicionistas ao governo João Goulart. A tríade conservadora representada pelos governadores da Guanabara, Carlos Lacerda; de Minas Gerais, Magalhaes Pinto; e, de São Paulo, Ademar de Barros, foram os maiores beneficiários1. Foi também por seu intermédio que programas para a “modernização” das nossas forças armadas e policiais foram (e ainda são) executados. Foi ainda por meio dela que a reestruturação acadêmica brasileira se operacionalizou dentro do acordo MEC-USAID, firmado em pleno regime ditatorial em 1968.  

Já em 2019, a agência apresentava sua Estratégia Regional Conjunta, com o Departamento de Estado (USAID/DoS), para a América Latina. Nela, depreende-se a preocupação com as atuações chinesa e russa na região, consideradas ameaças à hegemonia estadunidense; e a inquietação com relação a países latino-americanos tratados como “autoritários”, como Venezuela, Nicarágua e Cuba. Assim, apresentam quatro frentes para operação regional a partir de: a) segurança (enfraquecendo ameaças chinesas, russas, terroristas, entre outras); b) prosperidade (assistência ao desenvolvimento econômico da América Latina mediante o estabelecimento de “… condições de comércio justas e recíprocas para as empresas e as exportações dos EUA” c) fortalecimento de instituições democráticas (priorizando Cuba, Venezuela e Nicaragua); e d) maior “receptividade à liderança dos EUA”. 

Entre 2000 e 2021, foram desembolsados mais de US$ 19 bilhões na região. Haiti é o principal receptador (25% do total), seguido de Colômbia (13,8%), Guatemala (9,7%), Peru (8,6%), Honduras (7,5%), El Salvador (6,4%), Bolívia (5,0%) e México (4,4%). Juntos, estes oito países correspondem a 80% de todo o desembolso realizado pela USAID no século XXI em direção à América Latina, de acordo com dados de 2022 do site Foreign Assistance. Assim como no caso da Aliança para o Progresso e de outros programas e instituições, os recursos destinados pela USAID quase sempre são enviados a partir de instituições e parceiros locais, organizações não governamentais e mesmo empresas ou entidades estadunidenses (governamental e privada), como se observa com a National Endowment for Democracy (NED) e o Center for International Private Enterprise (CIPE).  

Promovendo a ‘democracia’ por meio do livre-mercado: o papel do CIPE na América Latina

Saiba mais sobre o CIPE neste Estudos e Análises de Conjuntura, de Camila Vidal, Jahde Lopez e Luan Brum  

USAID no Brasil e o foco na Amazônia  

A USAID está presente no país desde a década de 1960, possuindo escritório próprio em Brasília. Segundo informação disponível em sua página institucional em 2024, quando ainda estava no ar,  

Por mais de 50 anos, a USAID tem apoiado o Brasil. Hoje, a USAID trabalha em estreita colaboração com o governo brasileiro e a sociedade civil para construir soluções sustentáveis de desenvolvimento socioeconômico, bem como promover o engajamento do setor privado em direção a soluções inovadoras para a conservação da biodiversidade na Amazônia.  

De fato, desde a década de 1980, o foco da agência no país passou a ser a Amazônia. Recentemente, o escritório da USAID no Brasil aprovou um Development Objective Grant Agreement (DOAG) – um acordo bilateral com agências-chave no governo brasileiro para, supostamente, apoiar a conservação da biodiversidade e atividades de desenvolvimento sustentável.  

Nesse sentido, foi criado o projeto Parceria para a Conservação da Biodiversidade na Amazônia (PCAB) com vistas a “garantir a integridade e a conservação do ecossistema da Amazônia brasileira” e “melhorar o bem-estar e o status socioeconômico das comunidades rurais e tradicionais que vivem na região amazônica”. Somente em 2021, foram impactados 45 milhões de hectares de floresta, conforme o Relatório Anual de 2021, ainda que esse “impacto” não seja suficientemente bem esclarecido. 

Como descreve o relatório supracitado, a Parceria trabalha com base nas seguintes diretrizes:  

– Expansão de cadeias de valor: Comunidades remotas se beneficiam de campanha para tornar peixe amazônico popular em restaurantes de grandes cidades; 

– Engajamento do setor privado: PPA expande o apoio a programas de aceleração para negócios amazônicos; ManejeBem leva tecnologia ao pequeno produtor e quadruplica sua produtividade; e 

– Inovação e tecnologia: Evidências do impacto do setor privado na conservação da biodiversidade. 

O engajamento com o setor privado recebe espaço importante nessa estratégia. Para priorizá-lo, foi criada, em 2017, a Plataforma Parceiros para a Amazonia (PPA) com os objetivos de: “a) catalisar a economia da Amazônia, b) fomentar a emancipação e a sustentabilidade de comunidades nativas; e c) conservar a biodiversidade, as florestas e os recursos naturais”. Nesse sentido, a missão da PPA se circunscreve à realização de parcerias com o setor privado para o desenvolvimento e a identificação de “soluções inovadoras para o desenvolvimento sustentável e para a conservação da biodiversidade na Amazônia”.  

Dentre os parceiros da iniciativa privada, estão os gigantes Google e Mineração Rio do Norte. Enquanto o Google trabalharia no apoio para a “capacitação” de comunidades indígenas – em outras palavras, a exposição da Internet e de computadores para os povos originários; e a Mineração Rio do Norte, responsável pela extração de bauxita e tendo como acionistas Rio Tinto, South32 e Glencore (todas empresas anglo-saxãs), no apoio ao desenvolvimento sustentável. Em relatório de 2023, a USAID informa que foram desenvolvidos 15 projetos na Amazônia brasileira com 287 parceiros do setor privado e US$ 12 milhões investidos. Ou seja, estamos tratando de um projeto financiado por uma agência governamental estadunidense que prioriza a iniciativa privada – também estadunidense – que não só atua na Amazônia do Brasil, como encontra respaldo do próprio governo brasileiro para fazê-lo.  

Com a roupagem humanitária do desenvolvimento, fazem parcerias com uma das maiores e mais poderosas corporações multinacionais no mundo, interferindo nas tradições e no modo de vida das comunidades nativas, assim como com empresas mineradoras para, alegadamente, preservar as florestas e o meio ambiente. Seria irônico, se não fosse trágico. Para que não reste dúvida acerca do caráter duvidoso das ações humanitárias da agência, o relatório de 2023 da USAID é bastante transparente: “Promovemos a prosperidade americana por meio de investimentos que expandem os mercados para as exportações dos EUA; criam condições equitativas para as empresas dos EUA; e apoiam sociedades mais estáveis, resilientes e democráticas (grifos meus)”. Como ficaria complicado justificar a atuação em países soberanos a partir da busca por maiores lucros para empresas e da expansão de mercados dos Estados Unidos, coloca-se a roupagem virtuosa do apoio à democracia e à estabilidade locais. Assim é a maior agência “humanitária” de ajuda externa estadunidense. 

De acordo com o website da agência, no que se refere ao ano fiscal de 2023, a USAID trabalhou em 48 milhões de hectares de floresta amazônica e implementou atividades em 116 terras indígenas e 54 áreas de conservação. Além disso, desenvolveu treinamento para 13.600 pessoas (52% deles quilombolas ou indígenas), permitiu acesso a tecnologia para 8.000 pessoas, apoiou a comercialização de 230 produtos “sustentáveis” da Amazônia e facilitou 108 contratos comerciais.  

Esse último ponto merece uma rápida observação: o Brasil é o país com maior variedade genética do mundo – cerca de 1/5 da biodiversidade mundial está localizada na Amazônia. Somado a isso, nossas inúmeras comunidades nativas têm denso conhecimento acerca do uso dessa biodiversidade2. Na década de 1960, por exemplo, o fármaco captopril foi desenvolvido pelo brasileiro Sergio Ferreira, após exposição a comunidades nativas amazônicas e posterior testes em laboratório que evidenciaram que o veneno da jararaca inibe os agentes do organismo responsáveis pela elevação da pressão arterial. Até hoje, esse é um dos remédios mais receitados para indivíduos com histórico de pressão alta. Apesar da gigantesca biodiversidade brasileira e das inúmeras possibilidades de seu uso a partir de tecnologia própria, o Brasil parece ter relegado esse papel aos EUA via USAID.  

Com uma adequada tecnologia, os produtos oriundos da nossa diversidade biológica e do conhecimento dos nossos povos originários têm sido patenteados nos EUA para benefícios próprios e para riqueza da sua gigante indústria farmacêutica. Não à toa, é o país com maior número de patentes em biotecnologia e com maiores remessas cadastradas no Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado (SisGen). Esse tipo de atuação externa e de parcerias com a iniciativa privada na Amazônia, em que a USAID é a grande porta-voz, precisa ser mais bem compreendido. Afinal, com ou sem o fechamento da agência, outras delas – com a mesma roupagem virtuosa e humanitária – seguirão o seu caminho.  

Por fim, há que se perguntar: se a USAID trabalha em prol de interesses materiais e geopolíticos estadunidenses, qual o motivo do seu fechamento por um governo que defende, justamente, esses mesmos interesses? Aqui, não há uma única resposta, mas podemos conjecturar alguns pontos.  

Primeiro, faz parte de uma ampla reestruturação política, proposta desde a campanha para a Presidência, que visa a interromper o fluxo de recursos públicos para ajuda humanitária no exterior – seja a partir de agências multilaterais, seja a partir de agências governamentais –, ao mesmo tempo que busca enxugar o funcionalismo público3. A descrença e a desconfiança em relação às instituições multilaterais e às agências humanitárias, supostamente ineficientes, corruptas e alheias ao interesse do “povo” estadunidense, não são fenômeno recente. Desde a campanha de 2016, Trump critica a “indústria da ajuda externa”. Essa proposta faz parte da crítica mais ampla à corrupção e ao mau uso do dinheiro público, com vistas a angariar apoio do público doméstico. Não por acaso, o fechamento da USAID teve início com a ordem executiva “Realinhamento e Reavaliação da Ajuda Externa dos Estados Unidos”. Nela, prevê-se o congelamento por 90 dias de toda ajuda externa (inclusive militar, à exceção de Israel e Egito) para avaliação sobre o “alinhamento [dessa ajuda] com a política externa do presidente dos Estados Unidos”. 

Captura de tela da OE sobre ajuda externa dos EUA no site da Casa Branca

Ao que tudo indica, finda a avaliação desses programas e agências, determinadas atividades podem ser mantidas e/ou reorientadas, mas agora a partir do controle direto do Departamento de Estado, e direcionadas para determinadas ações em alguns países em específico. Assim, supostamente, seria possível controlar melhor o uso do recurso público e a orientação com a política externa vigente. Ao fim, talvez agora as atividades desenvolvidas pela USAID possam ser despidas de sua roupagem virtuosa e humanitária, e sua dimensão material e coercitiva, evidenciada e mantida. Afinal, essa já é uma tradição na política externa do país.

 

* Como o site da USAID está fora do ar, não foi possível incluir os links de todos documentos mencionados no texto.  

** Camila Feix Vidal é professora no Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e faz parte do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Política Internacional Contemporânea (GEPPIC), do Instituto de Estudos para América Latina (IELA/UFSC) e do Instituto Memória e Direitos Humanos (IMDH/UFSC). Contato: camila.vidal@ufsc.br e camilafeixvidal@gmail.com 

*** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em: 6 fev. 2025. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

**** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mailtatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mailtcarlotti@gmail.com.

 

Assine nossa Newsletter e receba o conteúdo do OPEU por e-mail.

Siga o OPEU no InstagramTwitterLinkedin e Facebook

e acompanhe nossas postagens diárias.

Comente, compartilhe, envie sugestões, faça parte da nossa comunidade.

Somos um observatório de pesquisa sobre os EUA,

com conteúdo semanal e gratuito, sem fins lucrativos.

Realização:
Apoio:

Conheça o projeto OPEU

O OPEU é um portal de notícias e um banco de dados dedicado ao acompanhamento da política doméstica e internacional dos EUA.

Ler mais