Política Doméstica

O desmonte de uma nação? 

Crédito: Jozef Micic/Dreamstime.com (Free Trial)

Por Flávio Limoncic* [Informe OPEU] [Trump 2.0] [Federalismo] [Ação afirmativa] [Unilateralismo] 

Os homens que escreveram a Constituição norte-americana, em 1787, não viviam imersos apenas no mundo das ideias políticas. Viviam imersos, também, no mundo dos interesses concretos. Alguns defendiam a escravidão, outros queriam promover o comércio, havia aqueles que queriam mais poder para os estados e os que desejavam centralizar o poder na União. A Constituição, um compromisso entre esses e outros interesses, criou um governo central forte o suficiente para proporcionar coesão e segurança ao novo país, e suficientemente fraco, para não ameaçar os interesses localizados nos estados, como os do Sul, ligados à escravidão. Institucionalmente falando, implementou-se um complexo sistema de freios e contrapesos de elementos majoritários e contramajoritários, baseado na representação política, na divisão de poderes entre Executivo, Judiciário e Legislativo bicameral e no federalismo.  

Tais freios e contrapesos nem sempre funcionaram, como a Secessão e a Guerra Civil (1861-1865) evidenciam. Depois da Guerra, vieram a industrialização, a urbanização, a Grande Imigração, os movimentos sociais de massas e suas pressões democratizantes… Em resposta a tantas mudanças, a Constituição foi emendada 27 vezes: ao longo da segunda metade do século XIX e no século XX, a União se fortaleceu em detrimento dos estados, assumindo poderes regulatórios mais amplos e expandindo direitos civis e políticos dos cidadãos. Em outras palavras, centralização e democratização se retroalimentaram.   

O que ninguém poderia prever é que, no século XXI, um presidente usaria os enormes recursos centralizados na União para fazer caminho inverso. Desprezando regras não escritas, mas amplamente consensuais, de comportamento político, Trump desafia o sistema de freios e contrapesos para reverter o processo de democratização e limitar direitos civis e políticos. 

Os sentidos de 1776

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Ironicamente, o contrapeso que pode atrapalhar seus planos é o federalismo, justamente aquele que permitiu a escravidão e a segregação, a repressão sexual e a imposição de valores religiosos a milhões de norte-americanos. Hoje, são os estados governados por democratas que, acionando recursos ainda existentes do federalismo, desafiam a política imigratória de Trump.   

Nos próximos anos, a Constituição e as instituições continuarão a ser tensionadas, mas é possível que a distopia que se anuncia seja enfrentada com soluções institucionais novas e criativas. 

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Não é isolacionista um presidente que ameaça tomar o Canal do Panamá e a Groenlândia, sugere a “limpeza” de Gaza como forma de selar sua aliança com a extrema direita israelense ou afirma ser a América novamente respeitada por ter vencido uma queda de braço com a Colômbia.  

Trump não é um isolacionista, é um unilateralista.  

No Pós-Segunda Guerra, os Estados Unidos tinham uma convicção: para se tornarem o centro do chamado “mundo livre”, precisavam criar uma rede de instituições e normas que estabelecessem as “regras do jogo” econômico e das relações internacionais (Banco Mundial, FMI, ONU etc.) e uma força militar dissuasória, tanto nuclear quanto convencional, que combinasse seus próprios arsenais com os de seus aliados (OTAN, bases militares em diversos países, tratados militares bilaterais etc.). Não menos importante, a política externa norte-americana de então buscou, também, construir uma liderança moral por meio da imagem do país como modelo de sociedade a ser emulado, por conciliar liberdade e abundância. Não à toa, suas universidades começaram a produzir teorias da modernização e, quando a imigração foi reaberta, em 1965, e as viagens internacionais se tornaram mais baratas, para os Estados Unidos acorreram milhões de pessoas do mundo inteiro, de forma legal e ilegal, em busca do chamado Sonho Americano. Graças à imigração, os mercados de trabalho e consumo foram ampliados, e as universidades e centros de pesquisa capturaram milhares de cérebros brilhantes. 

As “regras do jogo”, o poder dissuasório e a atração de mão-de-obra, de consumidores e cérebros se baseavam, todos, em algum nível de cooperação com outros países, inclusive adversários, dado que que os formuladores da política externa norte-americana tinham consciência de que seu país não reunia, sozinho, os recursos necessários para a construção de uma ordem internacional que o beneficiasse. Isso, claro, não impediu que os Estados Unidos patrocinassem golpes de Estado e ditaduras na América Latina ou escalassem a Guerra no Vietnã, sempre que julgavam estar o equilíbrio de poder internacional ameaçado.   

Trump é um unilateralista, porque entende ser qualquer cooperação ou compromisso com outros países – seja mediante organizações multilaterais, como a ONU, por tratados internacionais, como o de Paris, ou pela força coletiva, como a OTAN – uma diminuição da soberania nacional norte-americana. Além disso, afirma ele, cooperação e compromisso custam caro (de modo geral, os Estados Unidos, por serem o país mais rico do mundo, são, também, os maiores financiadores das instituições) e prejudicam a economia nacional.  

Uma parte expressiva dos norte-americanos parece concordar com ele, ao passo que outra, incluindo gente do Departamento de Estado e do Pentágono, está muito preocupada. Como os formuladores da política externa norte-americana do Pós-Guerra, esse pessoal tem consciência de que, abrindo mão de qualquer liderança moral, agindo sem levar em consideração os interesses, necessidades e possibilidades de seus aliados, desconsiderando desafios civilizacionais como epidemias e aquecimento global, os Estados Unidos não têm como assegurar seu papel de liderança no mundo. 

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Donald Trump não esperou a conclusão das investigações para acusar Barack Obama e Joe Biden pela colisão entre um avião da American Airlines e um helicóptero do Exército norte-americano, em 29 de janeiro. Pelo contrário. Sem apresentar evidências, usou o episódio para dizer que políticas de ação afirmativa dos democratas teriam erodido os padrões de excelência do serviço de controle aéreo dos Estados Unidos. Não há originalidade nisso. Por supostamente substituir mérito individual por privilégio indevido a grupos focais, e com isso prejudicar o conjunto da sociedade, ações afirmativas têm sido criticadas pelos conservadores há mais de meio século.  

Buy The Promise of American Life Book Online at Low Prices in India | The  Promise of American Life Reviews & Ratings - Amazon.inQue eu saiba, o primeiro intelectual de peso a defender ações afirmativas, que chamava de “discriminações construtivas”, foi Herbert Croly, em 1909. Croly defendia proteção estatal ao movimento sindical por ser este, segundo ele, o único ator social, cuja ação seria capaz, à época, de distribuir renda e riqueza de forma economicamente racional e moralmente justa. Resultado da luta de movimentos sociais como os de afroamericanos, mulheres e homossexuais nos anos 1960 e 1970, ações afirmativas se tornaram, a partir de então, comuns. Pode-se mesmo dizer que tais grupos foram historicamente alvos de “discriminações negativas”, para usar a terminologia de Croly.  

De fato, afroamericanos foram escravizados no Sul até 1865, segregados até meados do século XX e só tiveram pleno acesso ao voto na década de 1960, enquanto imigrantes europeus da segunda metade do século XIX recebiam terras no Oeste e tinham assegurados direitos civis e políticos. Mulheres só tiveram garantido o direito ao voto em 1920, e a Emenda dos Direitos Iguais, que tornaria inconstitucional a discriminação por sexo, até hoje não foi ratificada, embora tenha sido apresentada em 1923. Por fim, apenas em 2015 o casamento foi reconhecido como um direito civil de todos, inclusive dos que desejavam se casar com pessoas do mesmo sexo. Também o complexo industrial-militar e o complexo aeroespacial e políticas habitacionais e educacionais do Pós-Segunda Guerra privilegiaram classes médias brancas em detrimento dos afroamericanos. Diante de tal cenário, ações afirmativas para afroamericanos, mulheres e homossexuais deram respostas não apenas às “discriminações negativas” de que tais grupos foram alvo, mas, também, às “discriminações construtivas” que beneficiaram homens, brancos e heterossexuais. 

O objetivo das ações afirmativas – levando-se à sua eventual suspensão – é uma sociedade em que todos sejam sujeitos dos mesmos direitos, tanto no papel quanto na vida. Quando Trump se volta contra elas, está, na verdade, vocalizando o receio de dezenas de milhões de norte-americanos brancos, heterossexuais e de classe média de terem revogados seus privilégios centenários.

 

* Flávio Limoncic é professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e membro da Rede de Estudos dos Estados Unidos. Contato: limoncic@gmail.com. 

** Revisão e edição: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em: 3 fev. 2025. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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