Política Doméstica

O raio cai duas vezes no mesmo lugar: a indicação de RFK Jr. para Saúde no governo Trump 2.0

O ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump e Robert F. Kennedy Jr. no comício ‘Arizona for Trump’, na Desert Diamond Arena, em Glendale, Arizona, em 23 ago. 2024 (Crédito: Gage Skidmore/Flickr)

Por Henrique Menezes* [Informe OPEU] [Trump 2.0] [RFK Jr.] [Saúde]

Donald Trump declarou recentemente pelo Twitter a indicação de Robert F. Kennedy Jr. para o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, com uma postagem forte e polêmica, que fez soar sinais de alerta, especialmente para a indústria norte-americana. Robert F. Kennedy Jr, filho do ex-procurador-geral dos Estados Unidos e senador por Nova York, Bobby Kennedy, assassinado em 1968, e sobrinho do ex-presidente John F. Kennedy, carrega um dos sobrenomes mais icônicos da política americana. No entanto, o advogado de 70 anos construiu sua notoriedade não pelo legado político de sua família, mas por sua controversa atuação na disseminação de desinformação e fake news sobre vacinas e outras questões relacionadas à saúde pública. Entre suas declarações mais polêmicas e amplamente desmentidas, está a alegação de que vacinas causariam autismo e a afirmação de que não existem imunizantes verdadeiramente eficazes e seguros. Kennedy Jr. também se posiciona como um crítico ferrenho das políticas de vacinação infantil. 

Durante a pandemia da covid-19, RFK Jr. chegou a declarar que as vacinas contra o coronavírus seriam “as mais mortais da história” — uma alegação sem qualquer embasamento científico. Kennedy Jr. é fundador da organização não-governamental Children’s Health Defense, conhecida por promover desinformação sobre vacinas. A atuação da organização tem sido amplamente criticada por especialistas em saúde pública, devido ao impacto negativo na confiança da população em relação à vacinação.

Além de sua postura antivacina, Kennedy Jr. tem uma agenda que confronta grandes corporações da indústria alimentícia norte-americana, referidas por Donald Trump como o “ complexo industrial alimentar”, em uma analogia ao complexo industrial-militar. Ele critica, especialmente, a produção e o consumo de alimentos ultraprocessados, que seriam os principais responsáveis pela baixa qualidade alimentar e pelos altos índices de obesidade nos Estados Unidos (os Estados Unidos têm taxas de obesidade entre adultos ascendentes e significativamente maiores que os demais países do G7, por exemplo). Outro foco de suas críticas é o uso intensivo de agrotóxicos na agricultura, prática comum no ciclo de produção de alimentos no país.

Durante a atual campanha, Trump declarou que daria carta branca para Kennedy Jr. avançar em mudanças na estrutura do sistema de saúde norte-americano, inclusive sobre agências centrais dessa estrutura, como o Centro para Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), órgão que foi essencial no controle e combate à covid-19; a Administração Federal de Alimentos e Medicamentos ((FDA, na sigla em inglês), responsável por regulações sobre alimentos, medicamentos, vacinas e outros produtos associados à proteção e promoção da saúde; e o Instituto Nacional de Saúde (NIH, sigla em inglês), principal rede de pesquisa e inovação em saúde do mundo. 

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Trump 1.0: a degradação do sistema de saúde e seus efeitos sobre a pandemia da covid-19

O primeiro mandato de Donald Trump (2017-2021), mesmo antes da pandemia da covid-19, foi caracterizado por um enfraquecimento significativo do sistema de saúde norte-americano. Este cenário incluiu cortes orçamentários, a descontinuidade de políticas e programas de saúde pública e a redução da cobertura do Affordable Care Act, mais conhecido como Obamacare. Essa retração nos investimentos e a consequente fragilização do sistema, somadas à retórica anticiência e antivacina promovida por Trump, comprometeram a capacidade do país de responder de forma eficiente à crise sanitária global desencadeada pela covid-19.

Durante a pandemia, Trump frequentemente minimizou a gravidade do vírus em declarações públicas, transmitindo equivocadamente uma falsa sensação de segurança e de controle da situação. Essa postura desencorajou medidas preventivas, como o uso de máscaras, e expôs a população, sobretudo os grupos mais vulneráveis, a maiores riscos. Além disso, a elaboração de um plano nacional de combate ao vírus foi adiada, e questões como a reabertura de escolas e o uso de equipamentos de proteção individual tornaram-se altamente politizadas.

Como consequência, a pandemia teve um impacto desproporcional nos Estados Unidos. Até o final de julho de 2021 (já governo de Joe Biden), momento crítico da crise, o país havia registrado mais de 600.000 mortes confirmadas, equivalente a aproximadamente 1.800 óbitos por milhão de habitantes – um número consideravelmente superior à média de 1.300 óbitos por milhão de habitantes em países de alta renda (HICs). De acordo com um relatório da revista The Lancet, os Estados Unidos enfrentaram uma taxa de mortalidade 40% maior do que a média dos países do G7, evidenciando a gravidade do impacto causado pela resposta insuficiente e descoordenada à pandemia.

É importante ressaltar a importância da retórica negacionista nos resultados em saúde pública. Os eleitores de Donald Trump demonstram maior preocupação com as vacinas em comparação à média dos norte-americanos, e suas postagens antivacina nas redes sociais amplificam as apreensões desse grupo sobre a segurança dos imunizantes. A crescente disseminação de fake news sobre o tema, aliada à politização de uma questão essencialmente técnica – como a eficácia e a segurança das vacinas –, cria um ambiente propício para o aumento da hesitação vacinal. Esse cenário não apenas compromete a adesão às campanhas de imunização, como também eleva o risco de surtos de doenças preveníveis, com impactos diretos na saúde pública.

Se confirmada, a nomeação de RFK Jr. representa a possibilidade de uma radicalização ainda maior da retórica anticiência, antivacina e antissaúde nos Estados Unidos, considerando o poder que Trump terá, com maioria nas duas casas legislativas, para avançar com a agenda a ser conduzida por Kennedy Jr. Deve-se considerar, também, as implicações dessa nomeação para a histórica e estreita relação entre o governo norte-americano e a indústria farmacêutica. Esse setor tem sido amplamente beneficiado, sem grandes contrapartidas, com vultosos recursos públicos para pesquisa e desenvolvimento, e pelo apoio consistente dos governos dos EUA em fóruns multilaterais nos principais temas de seu interesse. Como informado pela mídia especializada, as ações das principais empresas farmacêuticas envolvidas no desenvolvimento e na produção das vacinas mais utilizadas na América do Norte e na Europa sofreram quedas expressivas desde que as especulações sobre a indicação de Kennedy Jr. começaram a ganhar força. Segundo uma matéria publicada pela rede CNN, no fechamento do mercado em 14 de novembro, pouco antes do anúncio oficial por Trump, as norte-americanas Moderna, Pfizer e Novavax, além da BioNTech e GSK, registraram perdas consideráveis em suas ações.

Retórica antivacina e anticiência

A escolha de Kennedy Jr. para liderar um dos departamentos mais importantes dos EUA gerou apreensão entre investidores do setor de biotecnologia, sinalizando possíveis mudanças profundas nas políticas de saúde do país. Apesar disso, no primeiro mandato, Trump conseguiu equilibrar sua retórica anticiência e antivacina com os interesses da indústria farmacêutica. Durante sua gestão, foi aprovada a Operação Warp Speed, a maior iniciativa global para acelerar o desenvolvimento de vacinas contra a covid-19. Essa parceria entre o Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS) e o Departamento de Defesa (DoD) financiou diversas vacinas, incluindo as da Moderna e da Pfizer/BioNTech, sendo esta última a mais amplamente aplicada no mundo. Até março de 2021, as duas empresas haviam recebido mais de US$ 5 bilhões cada para o desenvolvimento e a produção de vacinas, com contratos que previam a entrega de mais de 600 milhões de doses. Outras grandes empresas farmacêuticas também se comprometeram a fornecer centenas de milhões de doses adicionais como contrapartida para os bilhões de dólares investidos pelo governo norte-americano.

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Da mesma forma, as posições de Kennedy Jr. têm gerado tensões sobre associações de produtores rurais e sobre investidores da indústria alimentícia norte-americana. 

Os efeitos da nomeação de Robert F. Kennedy Jr. podem ir além da sociedade, saúde e economia norte-americanas, trazendo o risco de uma retomada de posturas nacionalistas e pouco colaborativas por parte dos Estados Unidos. A pandemia da covid-19 evidenciou a fragilidade do multilateralismo na coordenação de respostas globais, apesar dos esforços destinados ao desenvolvimento, acesso e compartilhamento de tecnologias de contenção e tratamento da covid-19, por parte da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de outras instituições internacionais.

A OMS, em particular, encontrou desafios significativos na promoção do acesso equitativo a testes diagnósticos, equipamentos de proteção e das vacinas e medicamentos aprovados. Trump ampliou essa crise, com os EUA intensificando críticas à OMS e adotando medidas que enfraqueceram sua atuação. Durante a pandemia, o governo Trump acusou a OMS de ineficiência e conivência com a China, suspendendo repasses financeiros e cortando laços com a organização. Os EUA retomaram seu papel na organização apenas na gestão Biden. A decisão dos EUA de cortar laços e interromper contribuições – que representavam em torno de 28% do orçamento da OMS – prejudicou severamente a capacidade da organização de apoiar países vulneráveis. 

O histórico recente da postura nacionalista norte-americana diante da pandemia da covid-19, aliada ao fortalecimento de uma visão anticiência e de oposição multilateralismo, potencializada com a nomeação de Kennedy Jr., demonstra os riscos à agenda global de saúde, ao combate à mudança climática e de garantia dos direitos humanos.

 

Leia mais do autor no OPEU

Informe OPEU, “Retorno norte-americano à OMS traz otimismo e algumas dúvidas”, 3 mar. 2021

Informe OPEU, “Menos profissionais, mais subordinação: Pompeo cobra esxplicações da OPAS sobre ‘Mais Médicos'”, com Daniela Prandi, em 13 jun. 2020

Panorama EUA, “Trump e a pandemia de covid-19: nacionalismo, evasão e ameaças ao multilateralismo”, 31 de maio de 2020

 

* Henrique Zeferino de Menezes é pesquisador INCT-INEU e professor do Departamento de Relações Internacionais e do Programa de Pós-graduação em Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Contato: hzmenezes@ccsa.ufpb.br.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 17 nov. 2024. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mailtatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mailtcarlotti@gmail.com.

 

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