China e Rússia

Novo sistema de pagamento do BRICS e a hegemonia do dólar no comércio mundial

A hegemonia do dólar (Crédito: geralt/pixabay/conteúdo gratuito)

Por Fernanda Frochtengarten e Mariana Valdisserra* [Informe OPEU] [BRICS] [Dólar]

Em outubro de 2024, em uma reunião das autoridades financeiras dos países do BRICS em Moscou, o ministro russo das Finanças, Anton Siluanov, solicitou aos seus parceiros a criação de uma alternativa financeira para o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Em suas palavras: “O FMI e o Banco Mundial não estão desempenhando seus papéis. Eles não estão trabalhando nos interesses dos países BRICS. É necessário formar novas condições ou mesmo novas instituições, semelhantes às instituições de Bretton Woods, mas dentro da estrutura da nossa comunidade, dentro da estrutura do BRICS”. 

Esse apelo se fez baseado em um contexto no qual a Rússia permanece como alvo de sanções dos países ocidentais, após o início da Guerra da Ucrânia, e se vê cercada pela influência do dólar, com poucas alternativas de resposta. Além disso, a fala reforça um desejo antigo do bloco do BRICS e de muitos países do Sul Global de se desvincularem da dependência completa da utilização do dólar. Principalmente após a atual experiência russa, esse cenário gera apreensão diante do poder das potências ocidentais, com protagonismo dos EUA, de prejudicarem completamente a economia de seus países. 

16th BRICS Summit. Joint photo opportunities for BRICS heads of delegationDa esq. para a dir., primeira linha: presidente do Irã, Masoud Pezeshkian; presidente do Egito, Abdel Fattah el-Sisi; presidente da China, Xi Jinping; presidente da Rússia, Vladimir Putin; presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa; e presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, presentes na 16ª cúpula do BRICS em Kazan, Rússia, em 24 out. 2024 (Crédito: Sergey Bobylev)

A hegemonia do dólar

A partir do fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), firmou-se uma série de tratados, visando a facilitar o livre-comércio entre uma grande quantidade de países. Para tanto, as 44 principais nações aliadas, em maioria países do Norte Global, reuniram-se na Conferência de Bretton Woods, em 1944. Como resultado, foram criadas as chamadas instituições de Bretton Woods, como o FMI e o Banco Mundial. Em parte, o sistema de Bretton Woods conseguiu estabilizar o sistema monetário internacional via fixação do dólar em certa quantidade de ouro, atrelando o valor de todas as outras moedas ao dólar estadunidense. Dessa forma, o comércio e as transações internacionais, assim como a política cambial e as entidades internacionais de ação financeira, passaram a ser mediadas pelo dólar. 

Na década de 1970, devido aos altos gastos em guerras financiadas ao redor do mundo, como a Guerra do Vietnã, e à competitividade no mercado proveniente da Alemanha e Japão, os Estados Unidos se tornaram o principal devedor global. Incapazes de sustentar a paridade da moeda, o sistema monetário mundial eclodiu, e todo o sistema internacional foi atingido. Em adição a essa crise de Bretton Woods, houve o Primeiro Choque do Petróleo e a inflação que se seguiu a esse evento. Neste contexto, os EUA romperam o Acordo de Bretton Woods, em que o fim da convertibilidade do dólar em ouro tornou-o uma moeda plenamente fiduciária, gerando uma flutuação de moedas e especulação no mercado de divisas. A partir desse momento, as crises iminentes no sistema capitalista passam a se tornar recorrentes, escancarando a instabilidade causada pelo fim do padrão dólar-ouro.

Ao fim dos anos 1970, os EUA elevaram as taxas de juros, ao valorizar o preço do dólar. Em uma tentativa de recuperar a hegemonia econômica, deixam de ser exportadores de capital e se tornam importadores, consolidando-se como um país atraente para investimentos estrangeiros. A política ficou conhecida como dólar forte e um sistema global de reciclagem de excedentes, baseado na liquidez mundial. Em termos de inserção, os países à periferia do capitalismo foram afetados pelo endividamento gerado por tal sistema durante seu processo de desenvolvimento. 

Com esse pano de fundo, inaugura-se no século XXI a “era da incerteza”, em que a instabilidade sistêmica se torna marca da economia global e da desregulamentação do setor financeiro. A chamada globalização financeira é inerente ao crescimento econômico dos Estados Unidos, uma vez que se baseia em um regime de acumulação, pautado por um acirramento da concorrência, pela concentração de capitais e pela centralização de capital no plano mundial. Como afirma a economista Maria da Conceição Tavares: “A concentração de poder político e financeiro existente no mundo contemporâneo não é o resultado espontâneo do aumento da competição e da eficiência dos ‘mercados globalizados’, mas de uma política deliberada de retomada da hegemonia mundial” (Tavares, 1997, p. 235-259).

Maria da Conceição Tavares: Eu não desisto deste país | Entrevista Margem Esquerda | Blog da BoitempoEconomista Maria da Conceição Tavares, falecida este ano (Crédito: Antonio Cruz/Agência Brasil/ WikimediaCommons)

Além disso, dispondo do maior mercado consumidor do planeta e utilizando-se dele como financiamento da reconstrução de países europeus no pós-Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos geraram uma dependência no mercado global nunca antes vista. Nesse sentido, a hegemonia econômica estadunidense se estende em uma teia que possibilita os Estados Unidos se manterem no domínio da moeda, mesmo quando uma grande potência comercial a desafia, como é, atualmente, o caso da China

Diante disso, enquanto a maioria dos Estados tem dívidas externas em dólar, ou seja, não em sua própria moeda, e sofre influências cambiais, os Estados Unidos têm suas dívidas na sua própria moeda (dólar). Isso possibilita ao país manipular a liquidez no mercado internacional, ao colocar ou tirar seus próprios dólares do mercado internacional sempre que lhe convenha. Fica claro, então, não apenas o poder econômico do país, mas a vulnerabilidade do mercado global diante dessa potência. 

Bai Gao | John Hope Franklin Center

Gao Bai (Fonte: John Hope Franklin Center)

No contexto da guerra entre Rússia e Ucrânia, por exemplo, esse poder estadunidense se evidencia. De acordo com Gao Bai, professor da Duke University e pesquisador especialista em Economia Internacional, as sanções econômicas impostas sobre a Rússia, tanto pelos Estados Unidos quanto pela Europa, tiveram diversos impactos nas economias do Sul Global. As sanções financeiras, especificamente, congelaram as reservas cambiais russas e geraram uma crescente preocupação em vários países sobre a vulnerabilidade de manter ativos denominados em dólar. Essa movimentação, por sua vez, tornou-se impulsionadora do crescente desejo de desdolarização do mercado global. 

Apesar disso, “ao defender a desdolarização, esses países pretendem mitigar os vários riscos apresentados pelo dólar estadunidense, e não confrontá-lo” (Gao Bai, 2024, p. 14, tradução nossa). Nesse sentido, o BRICS assume um papel de destaque, tanto como uma saída para a economia russa, quanto para um crescimento da economia do Sul Global. Ao reunir países com economias emergentes que estabelecem cooperações entre si, cada vez mais os membros do BRICS buscam uma autonomia do sistema hegemônico vigente, um objetivo evidenciado, sobretudo, pela ação da China no bloco e por sua recente expansão.

BRICS+ e o novo sistema de pagamentos 

Em 23 de agosto de 2023, a XV Cúpula do BRICS, sediada em Joanesburgo, África do Sul, marcou uma nova fase para a aliança geopolítica dos países-membros. Com a entrada de seis novos integrantes no bloco – Egito, Etiópia, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Irã –, o BRICS se tornou um ponto incontornável de referência dentro do sistema internacional, afirma o mestre em economia e doutor em Ciência Política José Luís Fiori, em entrevista para a Tutaméia TV (vídeo abaixo).

Além disso, de acordo com Fiori, essa expansão significa uma explosão sistêmica do Norte Global, e sua influência se demonstrará não de imediato, porém, em ondas cada vez mais frequentes e fortes com o passar do tempo. Isso pode ser visto com o anúncio dos líderes do bloco sobre o interesse da criação de uma alternativa ao uso do dólar em transações comerciais e o fortalecimento das redes bancárias de seus países. 

É a partir dessa visão que o novo Sistema de Pagamentos independente do BRICS toma forma, baseado na tecnologia digital do blockchain, um banco de dados potente e descentralizado. Assim, de acordo com Yury Ushakov, um assessor da Presidência da Rússia, “o principal é garantir que o sistema seja conveniente para os governos, as pessoas comuns e as empresas, bem como que seja rentável e livre de política”. 

Com o uso de criptomoedas, ainda não selecionadas, esse novo plano é o pontapé inicial do Novo Banco de Desenvolvimento (Banco dos BRICS), com Presidência da brasileira Dilma Rousseff, para colocar em ação um desejo antigo e crescente de seus países-membros, e muitos outros, de fechar operações financeiras sem usar o dólar. Logo, embora não venha para, de fato, substituir a moeda, o novo sistema de pagamentos do BRICS pode ser facilmente visto como o maior golpe ao dólar desde Bretton Woods. 

16th BRICS Summit. Russian President Vladimir Putin meets with BRICS New Development Bank President Dilma RousseffPresidente da Rússia, Vladimir Putin, em encontro com a presidenta do Novo Banco de Desenvolvimento, durante a 16ª cúpula do BRICS, em Kazan, na Rússia, em 24 out. 2024 (Crédito: Kristina Kormilitsyna)

Fim da hegemonia estadunidense? 

Em matéria de relações internacionais, a disputa hegemônica entre Estados Unidos e China não é assunto recente. Enquanto segunda maior economia mundial, a China ocupa um papel fundamental para o crescimento econômico e político do BRICS, uma vez que tem voltado seus investimentos para projetos de infraestrutura, inovação e tecnologia e desenvolvimento sustentável, promovendo, assim, uma cooperação Sul-Sul. 

Dessa forma, cabe questionar se o bloco, encabeçado pela China, está conquistando o vácuo soviético, no que diz respeito à principal potência antagônica ao poder estadunidense, ou se, de fato, está sobrepondo o domínio dos Estados Unidos. Nessa reflexão, destaca-se uma diferença essencial: o fato de a URSS nunca ter estado inserida no capitalismo ocidental e, por esse motivo, ter crescido independente das dinâmicas econômicas globais referentes a esse sistema econômico. A China, por sua vez, está intrinsecamente ligada a ele, o que sugere, nesse prisma, que uma perda de hegemonia econômica estadunidense é, a longo prazo, possível. 

Como anteriormente citado, o mercado consumidor dos EUA é o maior e mais influente do mundo, sendo base das exportações de grande maioria das potências, incluindo a China. É esse aspecto da economia internacional que dificulta o declínio do dólar, pois o BRICS precisa encontrar outros blocos consumidores que absorvam a capacidade industrial de seus membros para que a moeda estadunidense realmente perca importância. 

Enquanto uma iniciativa política, porém, a adoção por parte do BRICS+ de um sistema de compensações internas e de um novo sistema de pagamentos leva a uma perda relativa da influência do dólar nos mercados. A formação e a ampliação recente do BRICS são, por si só, uma história nova. Cabe a nós acompanhar sua evolução.

 

* Fernanda Frochtengarten é graduanda em Relações Internacionais na PUC-SP e integrante do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI) da PUC-SP. Contato: fefrochtengarten@gmail.com.

Mariana Valdisserra é graduanda em Relações Internacionais na PUC-SP e integrante do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI) da PUC-SP. Contato: marivaldisserra@gmail.com.

** Revisão de conteúdo realizada por Isabela Agostinelli (pesquisadora de pós-doutorado no INCT-INEU/CNPq). Revisão de texto: Simone Gondim. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Revisão e edição final: Tatiana Teixeira.

*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora do OPEU, Tatiana Teixeira, no e-mailtatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mailtcarlotti@gmail.com.

 

Siga o OPEU no InstagramTwitterLinkedin e Facebook

e acompanhe nossas postagens diárias.

Comente, compartilhe, envie sugestões, faça parte da nossa comunidade.

Somos um observatório de pesquisa sobre os EUA,

com conteúdo semanal e gratuito, sem fins lucrativos.

Realização:
Apoio:

Conheça o projeto OPEU

O OPEU é um portal de notícias e um banco de dados dedicado ao acompanhamento da política doméstica e internacional dos EUA.

Ler mais