A candidatura de Kamala Harris e o contraponto da demanda dos eleitores negros
Vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, em um comício de campanha na Desert Diamond Arena, no Arizona, em 9 ago. 2024 (Crédito: Gage Skidmore/ Flickr)
Por Stéfani Pires e Silva* [Informe OPEU] [Eleições 2024] [Eleitores negros] [Encarceramento em Massa] [Racismo]
Há dois meses, Kamala Harris conseguiu um impulso importante em sua candidatura com seu discurso na Convenção Democrata. Na ocasião, ela destacou sua trajetória pessoal, resgatando suas origens como filha de imigrantes – seu pai, de origem jamaicana, e sua mãe, da Índia –, o que ajudou a aproximá-la mais de seus potenciais eleitores. Em um país em que o racismo está presente de forma significativa, expresso pela violência e pela discriminação direcionada à população preta e também à população migrante, a fala de Harris foi importante e representativa para uma parcela significativa da população.
O primeiro (e único) debate entre Harris e Donald Trump, ocorrido há um mês, também serviu como um momento crucial de exposição para os eleitores, em uma disputa que continua apertada, prestes a ser decidida nas urnas. Nele, foi possível notar uma performance positiva de Harris em comparação a seu oponente. Trump esteve em posição defensiva durante boa parte da discussão, sendo questionado por Harris a respeito do afastamento de muitos de seus apoiadores no governo anterior, que agora criticam-no, além de sua posição em relação ao ataque ao Capitólio dos EUA em 6 de janeiro de 2021.
(Arquivo) Multidão de apoiadores de Trump invade o Capitólio dos EUA, em Washington, D.C., em 6 jan. 2021 (Crédito: TapTheForwardAssist/ Wikimedia Commons)
Trump chegou a ser desmentido durante o debate, quando trouxe a informação falsa de que imigrantes em Springfield, em Ohio, estariam comendo animais de estimação que roubavam da vizinhança. E pautas, como os entraves em torno da legalização do aborto nos EUA em alguns estados e a elaboração do Projeto 2025, foram levantadas por Harris. Trump não se saiu muito bem, respondendo de maneira pouco clara e entrando em um estado de defesa. Contudo, ainda que a performance de Harris neste debate tenha sido promissora, a análise quanto à intenção de votos demonstra que há grande incerteza quanto ao resultado destas eleições.
Conforme pesquisa divulgada pelo The New York Times, a disputa segue acirrada, dentro da margem de erro: Harris está à frente, com 49% das intenções de voto, e Trump, com 48%. Até o momento da presente análise, entre os swing states, estados importantes para a decisão final, Harris se encontra na frente em Wisconsin, Pensilvânia e Michigan e em empate em Nevada.
As escolhas do eleitorado negro
Em sua fala na convenção, Harris acenou para a classe média do país, ao prometer “ser uma presidente para todos os americanos”, discurso que ela proferiu, também, no debate do dia 10 de setembro. Ainda que mantenha este posicionamento mais aberto para atrair o eleitorado indeciso, Harris tem demonstrado sua disposição para lutar por maior liberdade de acesso a direitos fundamentais. Tal posicionamento tem atraído a população jovem, negra e hispânica.
De acordo com o Pew Research Center, ao traçar o perfil da população propensa a votar em Harris, nota-se que os eleitores negros têm apoiado a candidata por uma margem ampla em comparação a Trump. Harris obtêm 77% da vantagem entre os eleitores negros no país, ao passo que Trump tem apenas 13%. Ao nos aprofundarmos nas diferenças entre estes eleitores negros, a mesma sondagem revela que aqueles com 50 anos ou mais que apoiam a candidata são 86% e que, entre os eleitores entre 18 a 49 anos, essa fatia cai para 68%.
O que também chama a atenção entre os eleitores negros é a diferença quando posto o recorte de gênero. Do total de eleitores negros propensos a votar na democrata, entre as mulheres, esta porcentagem está em 79%. Já entre os homens recua para 73%, ainda de acordo com o Pew Research Center.
Estes eleitores homens, segundo entrevistas realizadas pela BBC News, justificam seu voto em Trump pela economia do país, que tem enfrentado questões como o aumento da inflação e do custo de vida. Mas também por não se identificarem com determinadas agendas sociais de “aceitação” e compreenderem isso como um ataque a sua “masculinidade”. O que revela como o machismo também tem atravessado esta campanha.
As demandas do eleitorado negro democrata
Diante dessa parcela importante de votantes negros para a candidata democrata e do pouco direcionamento de sua campanha às especificidades das demandas desse grupo, cabe descrever quais são elas. A preocupação deste eleitorado se concentra, em primeiro lugar, na economia (82%), seguido pela assistência médica (82%) e, em terceiro, pela desigualdade racial e étnica (75%), segundo o levantamento realizado pelo Pew Research Center. Se realizado um recorte de gênero, nota-se que a preocupação com a desigualdade racial entre as mulheres negras é ainda maior (79%, contra 70%, no caso dos homens negros).
E é, justamente, a questão da desigualdade racial que mais nos interessa neste breve artigo, pensando, sobretudo, em como ela é reproduzida nas instituições e, em especial, no sistema carcerário estadunidense. Como mostra outro levantamento, também realizado pelo Pew Research Center, os negros norte-americanos, em sua maioria, entendem que as instituições nos EUA funcionam de maneira a impedir que estes progridam, reforçando a desigualdade.
O racismo no país não representa, portanto, somente um entrave que ocorre de forma passiva. No entendimento e na vivência dos grupos afetados, até mesmo as instituições do país atuam de maneira a contribuir para deixar para trás, ou mesmo impedir, seu desenvolvimento e melhoria na qualidade de vida.
Assim, ao se elencar as principais instituições que, segundo a população negra, têm contribuído para retê-los com base no preconceito racial, em primeiro lugar se encontra a prisão, com 74% dos votos; depois, as cortes e os processos judiciais, com 70%; e o policiamento, com 68%. Também podem ser mencionados os sistemas político, com 67%; econômico, com 65%; e de saúde, com 51%.
Deste modo, as três primeiras instituições que, de acordo com a população negra norte-americana, mais têm influenciado negativamente seu desenvolvimento, envolvem o sistema carcerário do país (gráfico abaixo).
Fonte: Site institucional
O sistema carcerário, o judiciário e também as forças de segurança têm atuado de forma que a população negra dos EUA se sinta oprimida de alguma maneira. O que revela, como destaca o levantamento do Pew Research Center, uma faceta central para compreender o problema carcerário no país: o racismo.
O sistema carcerário dos EUA: o problema do encarceramento em massa
Hoje, os EUA são o país que mais encarcera pessoas no mundo, estando à frente de China e Brasil no ranking do World Prision Brief. São aproximadamente 1.767.200 pessoas que se encontram reclusas no país, o que revela um sistema altamente punitivo, se comparado com qualquer outra nação.
De acordo com o Brennan Center for Justice, o que poderia explicar o encarceramento em massa no país, de forma simplificada, seria o fato de as prisões serem utilizadas como única alternativa para solucionar a criminalidade. De um universo de mais de um milhão de sentenças analisadas pelo instituto, foi possível observar que 39% destas poderiam ter sido solucionadas de outra maneira que não a reclusão, visto que não se tratava de crimes que feriam a segurança pública. Ainda assim, mesmo que estes fossem libertos, os EUA continuariam liderando o ranking de prisões no mundo.
Este é um problema complexo, que envolve um aprisionamento sem precedentes, em um sistema no qual o racismo é institucionalizado, com intensificação das políticas punitivas. O marco do início deste encarceramento maciço se deu no governo de Richard Nixon, que iniciou a “Guerra às drogas”. Esse processo se converteu em uma guerra à população, na medida em que houve um crescimento exorbitante na população carcerária do país a partir desse momento.
Assim como Michelle Alexander denuncia em seu livro A Nova Segregação: Racismo e Encarceramento em Massa (Editora Boitempo, 2010), entre outros fatores, a política de Guerra às drogas foi uma das maneiras de tornar as prisões estadunidenses, compostas em maioria pela população negra, uma nova forma de segregação. Estigmatizada pelo preconceito racial, a população preta estadunidense sofre com a violência policial e com a propensão muito maior de ir para prisão, devido a esta discriminação enraizada. Ou seja, formas mais sutis, porém não menos violentas e penosas, têm sido utilizadas para marginalizar esta parcela da população.
Os reflexos dessa problemática na candidatura de Harris
Apesar de ter construído um histórico de apoio à reforma do sistema de justiça criminal em seu mandato, Harris – ao não dar a devida atenção a questões fundamentais, como o encarceramento em massa e a maneira como ele atinge, especialmente, a população negra dos EUA em sua presente campanha – acaba deixando de lado a pauta de interesse de uma significativa parcela de seu eleitorado. Por isso, é possível observar um movimento recente de sua campanha de se aproximar do eleitorado negro no país com foco nos homens.
Ainda que se trate de uma parcela pequena de eleitores negros (homens) que tem-se aproximado de Trump, é algo que tem refletido na campanha da candidata nestes momentos finais, tendo em vista que a margem entre ela e seu oponente nas pesquisas é muito estreita.
Harris se encontrou com empreendedores negros de swing states, além de ter participado de entrevistas em programas de apresentadores da mídia negra, como no Podcast de Charlamagne Tha God. Além disso, a vice-presidente vem promovendo o que chamou de “Agenda de oportunidades para homens negros”. A pauta visa a trazer incentivos econômicos para esses eleitores, com a criação de estágios para estes jovens e empréstimos para empreendedores negros.
Este plano envolve, principalmente, oportunidades econômicas, mas também inclui a demanda por um melhor acesso à saúde, pensando em doenças que afetam de forma desproporcional esta parcela da população, como a anemia falciforme. A proposta prevê, ainda, uma discussão relacionada com a indústria nacional de cannabis, de maneira a flexibilizar o acesso para homens negros e a população norte-americana.
De acordo com a campanha da candidata democrata, o objetivo é impedir barreiras injustas quanto ao acesso à substância, as quais levam, muitas vezes, à criminalização em excesso destes homens negros. Como afirma Michele Alexander no livro supracitado, o inimigo da Guerra às Drogas nos EUA é definido racialmente, e métodos de segurança pública injustos têm sido aplicados, principalmente, em comunidades não brancas, resultando no encarceramento excessivo de afro-americanos e de latinos.
Trump, ao contrário, não tem pautas específicas para a comunidade negra e tem um histórico de falas e posicionamentos racistas. Ainda assim, conforme observado acima, tem conseguido atrair este eleitorado, devido à insatisfação deste com a economia e em relação às políticas de imigração e fronteiras. Em entrevista para a BBC News, por exemplo, alguns eleitores negros argumentaram que essa área não foi bem articulada no Governo Biden. É o caso do sr. Jordan, um eleitor negro da Virgínia, que diz ter sentido que imigrantes teriam “roubado recursos que a comunidade negra vinha pedindo há décadas”.
Além disso, eleitores negros também entrevistados pela BBC News demonstram insatisfação com o que nomeiam como pautas de “aceitação” democratas, que tratam de agendas sociais levantadas não necessariamente pelo partido em si, mas pelos eleitores dentro dele, como debates que envolvem questão de gênero e sexualidade. Temáticas estas que não se aproximam da visão destes eleitores negros de posição mais conservadora, como é o caso de Clarence Pauling, da Carolina do Sul. Para ele, os democratas têm “criado a própria agenda”. A liderança de um país, acrescenta, deve ser feita da “maneira certa”.
Ainda que exista este movimento, por volta de 77% da população negra nos EUA, ou seja, a ampla maioria, diz estar propensa a votar em Harris por considerá-la a melhor escolha – comparativamente à alternativa possível – para satisfazer suas demandas, como revela o levantamento realizado pelo Pew Reseach Center.
* Stéfani Pires é mestranda pelo PPGRI-UFU com bolsa CAPES sob orientação da profª Débora Prado. Contato: stpires.silva@gmail.com.
** Primeira revisão realizada por Débora Prado (Professora Associada na UFU e docente do PPGRI-UFU). Revisão e edição finais: Tatiana Teixeira. Recebido em 28 out. 2024. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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