Eleições

Eleições nos Estados Unidos da América: uma perspectiva a partir do Colorado

Colorado, um dos 50 estados dos EUA (Fonte: Enciclopédia Britannica)

Por Roberto Moll Neto, direto de Denver, CO* [Informe OPEU] [Eleições 2024] [Colorado]

As eleições nos Estados Unidos da América (EUA) são um mistério tanto para a maioria dos brasileiros quanto para os próprios estadunidenses. O presidente do país não é escolhido pela soma dos votos individuais. Na prática, quem elege o presidente dos EUA são os estados, que funcionam como entidades autônomas em uma confederação. Cada estado tem um número determinado de votos, baseado na quantidade de representantes de que dispõe no Congresso americano. Todos os estados têm dois senadores e um número de deputados proporcional à sua população, conforme o Censo realizado a cada dez anos. Portanto, estados mais populosos têm mais deputados. Com exceção de Maine e Nebraska, os estados depositam todos os seus votos no candidato mais votado. Isso significa que os votos para o candidato menos votado são descartados. Esse modelo está alinhado com a tradição federalista e associativista do país, embora contrarie o mito de uma nação construída sobre o poder do indivíduo e sua relação direta com o Todo-Poderoso, Deus.

Para complicar ainda mais, os EUA, como todas as nações, são uma invenção intelectual, sustentada principalmente pelos meios de comunicação e pela mídia, com base em tradições inventadas e/ou reconfiguradas. Diferentemente do que é, com frequência, retratado nos filmes de Hollywood, os EUA não têm uma identidade única. Embora compartilhem características e interesses comuns, especialmente na política econômica nacional, os estados apresentam muitas diferenças, e, consequentemente, as eleições têm características muito distintas. Além disso, a organização do pleito ocorre de forma independente em cada estado, refletindo características próprias. Por isso, em alguns estados, é possível votar antecipadamente ou pelos correios, enquanto outros utilizam urnas eletrônicas ou manuais. Em muitos deles, a escolha do presidente é apenas uma entre várias opções, e nem sempre é a mais importante ou a que mobiliza mais eleitores. A corrida eleitoral para o cargo mais importante do país, com propaganda e campanhas nas ruas, realmente acontece apenas nos estados-pêndulo, aqueles onde a eleição não está decidida. Na maioria dos estados, no início da corrida presidencial, já é possível prever quem será o escolhido para ocupar a Casa Branca. Contudo, as tensões sociais e as correlações de forças sobre temas e questões de cada momento da história podem mudar a dinâmica nos estados. Assim, os estados-pêndulo nem sempre são os mesmos a cada eleição.

Colorado: o estado vermelho que ficou azul

O Colorado, um território invadido e colonizado pelos EUA durante a expansão sobre terras indígenas, tornou-se efetivamente um estado em 1876, cem anos após a independência do país, motivo pelo qual é apelidado de “estado do centenário”. Os colonos, majoritariamente agricultores e pecuaristas brancos, sobrepujaram as culturas e as organizações da vida material dos indígenas e hispânicos, herança da colonização espanhola na parte sudoeste do estado, que depois foi legada ao México. Essa colonização resultou em uma cultura política libertária, centrada na defesa da propriedade agrícola e na liberdade irrestrita, incluindo as relações sociais e de produção, em oposição à interferência do Estado. 

Durch die Rocky Mountains nach Denver - Eine Woche in Colorado |  #OTRAmerika22 | OnTheRoadAgain - Travel BlogColorado, o estado do centenário (Fonte: On the Road Again)

Como a maioria dos estados do Oeste, o Colorado historicamente entregou seus votos a candidatos conservadores, fossem eles democratas ou republicanos. No século XX, o Partido Democrata venceu a eleição no estado 13 vezes. Em 1900 e 1908, apoiaram William Jennings Bryan, um populista que defendia os agricultores desfavorecidos contra as elites econômicas e seus interesses corporativos predatórios. Seu projeto visava a pequenos proprietários de terra endividados, sujeitos ao monopólio de bancos e ferrovias. Também era, contudo, um projeto nativista que valorizava a cultura agrícola profunda dos EUA em detrimento dos imigrantes estrangeiros que chegavam ao país. Até 2008, os democratas progressistas venceram no estado com figuras nacionais como Woodrow Wilson e Franklin Delano Roosevelt, além de seu herdeiro, Harry Truman. Eles surpreenderam o país com a vitória de Lyndon Johnson em 1964. Os neoliberais democratas, já não tão progressistas, venceram com Bill Clinton em 1992. Já os republicanos venceram 18 vezes. A partir de 2008, no entanto, o estado do centenário se tornou um território seguro para os democratas com agenda progressista.

A mudança se deve a transformações na matriz econômica do estado, que inclui o desenvolvimento de setores tecnológicos, como a indústria aeroespacial, impulsionada pelas universidades e pelas bases da força aérea; ao processo de industrialização agrícola, caracterizado pelo uso de tecnologia e pela concentração de terras nas mãos de conglomerados agroindustriais ligados ao capital financeiro, os quais expulsaram trabalhadores agrícolas — muitos deles de origem indígena-mexicana — para as cidades; à ampliação da participação política de minorias, com destaque para trabalhadores indígenas-mexicanos e imigrantes latinos; e à migração de jovens da Califórnia em busca de oportunidades nos setores de tecnologia e serviços. 

A cultura política sui generis que emergiu desse amálgama entre libertários, indígenas-mexicanos, latinos e jovens progressistas californianos suscita mudanças políticas significativas e provoca piadas e debates nas redes sociais. O estado foi o primeiro a legalizar a maconha, em 2012, e a cidade de Denver redirecionou parte do orçamento do Departamento de Polícia para programas de saúde mental, serviços sociais e outras iniciativas comunitárias em 2020. No YouTube, o comediante Ron Funches viralizou com uma apresentação em Denver, onde define a cidade como um “paraíso celestial para homens brancos que não precisam decidir entre usar botas de cowboy e fumar maconha livremente”. Outro vídeo no Instagram faz piada das jovens mães do estado, que usam roupas de frio produzidas por marcas política e ambientalmente corretas e dirigem carros menos poluentes, além de se dedicarem a cuidados com a saúde e atividades ao ar livre. Esse vídeo provocou debates, em que mulheres mais velhas não se reconheceram na caricatura apresentada, chamando as figuras retratadas de “mães transplantadas”.

2024: ano de transição para um Colorado swing state?

Em 2024, a eleição presidencial é um detalhe na paisagem política do Colorado. Para um observador desatento, pode parecer que não há sequer eleição no estado. A maioria dos eleitores vota pelo correio, e a vitória dos democratas é considerada certa. Por isso, os partidos fazem pouco ou nenhum investimento em campanha no estado. Na época do Halloween, é mais fácil encontrar caveiras e monstros na frente das casas do que placas de apoio a Kamala Harris ou a Donald Trump. Na região metropolitana de Denver e Boulder, as placas que aparecem misturadas a caveiras e a outras criaturas míticas são quase exclusivamente de apoio à chapa do Partido Democrata. As poucas placas e adesivos de apoio a Donald Trump aparecem nos subúrbios, morada da classe média alta, e no interior agrícola e pecuarista. Mesmo em Colorado Springs, cidade que abriga a Base da Força Aérea de Peterson e a Academia da Força Aérea dos Estados Unidos e que, talvez por isso, tenha uma conhecida cultura conservadora, as placas de apoio a Trump são raras. 

Urna oficial de votação, em Boulder, Colorado (Crédito: John Herrick. Fonte: Boulder Reporting Lab)

Trump tentou colocar o estado no centro da disputa presidencial, ao alegar que gangues de imigrantes venezuelanos estavam aterrorizando a cidade de Aurora, na região metropolitana de Denver. Mike Coffman, empresário, veterano das Forças Armadas e prefeito da cidade, negou a notícia falsa e repreendeu o candidato à Presidência de seu próprio partido. Surpreendentemente, Trump chegou a realizar um comício na cidade, sem qualquer efeito. Como em 2020, o resultado da corrida presidencial deve evidenciar uma vitória folgada de Harris nas regiões metropolitanas e uma vitória apertada de Trump em alguns subúrbios e áreas rurais. No final, Harris deve vencer sem sustos. Contudo, a disputa será acirrada em alguns dos 14 referendos estaduais e outros tantos municipais. É mais fácil encontrar placas de apoio ou rejeição à Proposição 127, que propõe proibir a caça de linces, gatos-do-mato e pumas, ou à Emenda 80, que insere na constituição o direito à escolha escolar, abrangendo opções públicas, privadas e homeschooling. Embora possam indicar apoio a um ou outro candidato, as placas de apoio ou rejeição a essas propostas nem sempre, ou quase nunca, estão acompanhadas de placas de Harris ou Trump, indicando que a lógica da corrida presidencial não está atrelada às propostas.

O domínio do Partido Democrata pode, no entanto, estar com os dias contados.

Na corrida presidencial de 2024, a vantagem de Harris sobre Trump é de aproximadamente 12% dos votos, quase a mesma que garantiu a vitória de Biden sobre Trump quatro anos antes. Os dois senadores do estado, eleitos em 2020 e em 2022, são do Partido Democrata. Entretanto, as eleições para representantes do estado na Câmara Nacional são mais apertadas, com vantagem democrata variando entre 2% e 4%. Além disso, alguns processos em andamento, como o aumento da violência urbana, especialmente em relação ao roubo de veículos, e a migração de texanos, podem mudar o cenário eleitoral no futuro. No mesmo vídeo que faz paródia das mães do Colorado, a personagem jovem esnoba os texanos que estão chegando ao estado. Nos comentários, as tradicionais mães do Colorado defenderam as “mães transplantadas” do Texas, que, supostamente, trariam de volta uma cultura conservadora comum.

 

* Roberto Moll Neto é professor de História da América na Graduação em História do Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional e da Pós-Graduação de Estudos da Defesa e da Segurança, ambos na Universidade Federal Fluminense. Também é pesquisador do INCT/INEU. Atualmente está realizando pesquisa de Pós-doutorado como pesquisador visitante na Universidade de Denver e na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), com apoio do CNPq. Sua pesquisa se concentra na militância dos latinos nos Estados Unidos entre 1960 e 1990, além de explorar políticas imigratórias e a relação entre movimentos sociais latinos e a política americana no período.

** Revisão e edição: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 1º nov. 2024. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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