Energia e Meio Ambiente

Injustiça Climática e Capitalismo do Desastre: um olhar de Nova Orleans pós-Katrina, Parte III

Vista aérea do alagamento causado pelo furacão Katrina na cidade de Nova Orleans, Louisiana, em 11 set. 2005 (Crédito: NOAA/Wikimedia)

Série sobre Racismo e Injustiça Ambientais

Por Lucas Silva Amorim e Haylana Burite* [Informe EUA] [Racismo Ambiental]

A terra corrompia-se diante de Deus e enchia-se de violência. Deus olhou para a terra e viu que ela estava corrompida: toda a criatura seguia na ter­ra o caminho da corrupção. Então Deus disse a Noé: “Eis chegado o fim de toda a criatura diante de mim, pois eles encheram a terra de violência. Vou exterminá-los juntamente com a terra.”

Gênesis 6: 11-13

Choque e Pavor [Shock and Awe] são ações que criam medo, perigo e destruição que sãoincompreensíveis para as pessoas em geral, elementos/setores da sociedade ameaçada, ou sua liderança. A natureza na forma de tornados, furacões, terremotos, inundações, incêndios descontrolados, fome e doenças pode gerar Choque e Pavor.

Shock and Awe: Achieving Rapid Dominance,

a doutrina militar dos EUA para a Guerra do Iraque (tradução nossa)

As citações à Bíblia e à doutrina militar americana que servem como epígrafe a este texto parecem não ter relação direta, mas é com elas que a premiada pesquisadora canadense Naomi Klein inicia seu livro A Doutrina do Choque: A Ascensão do Capitalismo do Desastre (Nova Fronteira, 2008). O nexo entre as duas frases se encontra no capítulo inicial da obra de Klein. Ao chegar à cidade de Nova Orleans, no estado de Louisiana, a autora se deparou com um cenário de catástrofe, gerado pela inundação causada pelo furacão Katrina. Ao contrário do que se poderia esperar, a reação dos políticos e empresários da região não foi de pura consternação.

New Orleans flood demographics

Mapa de Nova Orleans mostra inundações e dados demográficos raciais em setembro de 2005, após o furacão Katrina. A população negra representava 67% da população total de Nova Orleans, mas 75% da população atingida (Crédito: Earth Data NASA/CIESIN)

“Finalmente nos livramos dos conjuntos habitacionais populares em Nova Orleans. Não poderíamos fazer isso, mas Deus fez” — disse o representante (deputado) republicano Richard Baker (R-LA). Um dos empreiteiros mais ricos de Nova Orleans, Joseph Canizaro, afirmou, por sua vez: “Acho que temos uma página em branco para começar do zero. E com essa página em branco teremos grandes oportunidades”. Lobistas entusiasmados circulavam planos na Assembleia Estadual “para uma cidade menor e mais segura”, com menos impostos e regulações, o que, na prática, significava a demolição dos conjuntos habitacionais e a construção de condomínios de luxo, expulsão da população negra e de baixa renda da região central e salários mais baixos para os trabalhadores.

Um dos que se apressaram para apresentar propostas para a cidade pós-inundação foi o guru do capitalismo desenfreado, Milton Friedman. Mesmo aos 93 anos de idade e com a saúde fragilizada, Friedman arranjou tempo para publicar um editorial no The Wall Street Journal, clamando pela reforma educacional na cidade. Meros três meses após a falha nos diques que causaram a catástrofe, o economista escreveu: “A maioria das escolas de Nova Orleans está em ruínas, assim como as casas das crianças que as frequentaram. As crianças estão agora espalhadas por todo o país. Isto é uma tragédia. É também uma oportunidade para reformar radicalmente o sistema educacional”.

A proposta de reforma de Friedman não propunha adaptação das escolas à mudança climática, aumento de orçamento para regiões menos favorecidas ou estabelecimento de metas de qualidade de educação, mas a privatização por completo do sistema educacional municipal. O presidente George W. Bush apressou-se para apoiar a proposta de Friedman, baseado na desconfiança em sistemas educacionais públicos geridos de forma centralizada.

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Das 123 escolas públicas de Nova Orleans, apenas quatro se mantiveram sob gestão municipal. A reforma deu espaço para um sistema fortemente baseado em escolas concedidas à iniciativa privada (charter schools), financiadas por repasses públicos oferecidos diretamente aos pais, chamados vouchers, sob a insígnia da liberdade de escolha. Os quase cinco mil professores municipais, anteriormente protegidos por um contrato negociado por um sindicato forte, foram demitidos. Apenas alguns dentre os mais jovens foram recontratados pelo novo sistema, com salários reduzidos. Todo esse processo aconteceu antes mesmo que os diques e o sistema de distribuição elétrica fossem restabelecidos, ainda com a maioria dos cidadãos mais pobres da cidade deslocados.

Essa forma de atuação, a que Naomi Klein denomina Capitalismo do Desastre, é uma tática idealizada por Friedman que acreditava que apenas crises poderiam gerar mudanças verdadeiras. O posicionamento dos ultraliberais era, portanto, manterem-se ocupados, elaborando soluções e propostas durante os períodos de calmaria, para tentar implementá-las quando uma crise, real ou percebida, tornasse as circunstâncias mais “favoráveis”. Incapaz de reagir, em meio ao choque e ao pavor causado pela catástrofe natural, resta à população aceitar a imposição de políticas que jamais seriam toleradas normalmente. Se, para a população orleanense, o Katrina representou uma tragédia sem comparação, para os engenheiros sociais neoliberais o fenômeno foi entendido como uma ação da Providência Divina para promover a renovação, como o Dilúvio bíblico.

Escravidão, segregação e a perene questão do racismo estrutural

Nova Orleans foi originalmente estabelecida como capital da colônia francesa de Louisiana, que à época incluía uma vasta área que abrangia quase toda a bacia dos rios Mississippi e Missouri. Perdas territoriais causadas por sucessivos conflitos e vendas aos espanhóis, britânicos e americanos garantiram que a cidade e o território centrado na foz do rio Mississippi – e atualmente delimitado pelo Texas, a oeste; por Arkansas, ao norte; e pelo estado do Mississippi, ao leste – tivesse múltiplas influências culturais e sociais. Durante as diversas administrações coloniais, a única instituição que permaneceu intacta foi a escravidão de pessoas negras procedentes da África.

Sua incorporação aos Estados Unidos foi feita como Território de Orleans em 1804. Em 1811, a maior rebelião de escravos da história dos Estados Unidos ocorreu a aproximadamente 30 milhas da então capital Nova Orleans, impulsionada pelo regime de trabalho brutal a que as pessoas escravizadas eram submetidas nas plantações de cana-de-açúcar. Em 1812, Louisiana foi admitido, com as fronteiras atuais, como estado escravocrata, por se encontrar ao sul da linha Mason-Dixon, que separava o Sul dos estados livres do Norte. Estima-se que 120 mil pessoas africanas e afrodescendentes tenham sido escravizadas no estado.

Tendo em vista a eleição do abolicionista Abraham Lincoln, em 26 de janeiro de 1861, Louisiana se tornou um dos estados a se rebelar contra o governo federal e aderiu à Confederação escravocrata, em 4 de fevereiro do mesmo ano. Nova Orleans teve um papel de destaque durante a Guerra Civil, tendo sido um alvo prioritário das tropas da União, haja vista a capacidade de controle do fluxo de comércio que envolvia o domínio do delta do rio Mississippi. Em 25 de abril de 1862, tropas unionistas conquistaram a cidade, um prenúncio da derrota inevitável da Confederação.

A rendição completa das tropas confederadas foi um longo e complexo processo iniciado pela capitulação das tropas comandadas pelo general Robert. E. Lee, em 9 de abril de 1865, recebida pelo general da União Ulysses S. Grant. O fim da guerra deu início a um período histórico denominado Era da Reconstrução. Nesse período, três importantes emendas constitucionais aboliram a escravidão (13ª emenda); garantiram proteção igualitária pela lei e o acesso ao devido processo legal aos cidadãos (14ª emenda); e proibiram que os estados discriminassem cidadãos no processo eleitoral por motivo de raça, cor ou condição de ex-escravo (15ª emenda). Empoderado a legislar pelas emendas, o Congresso também aprovou diversas leis, garantindo os direitos civis da população.

A progressiva reconstituição dos governos estaduais no Sul e a eleição de Rutherford B. Hayes à Presidência dos EUA implicaram o fim da ocupação do Sul pelas tropas federais e do período da Reconstrução. Deu-se, então, início a um novo período na história americana marcado por leis discriminatórias, coletivamente conhecidas como Jim Crow laws, que estabeleceram um sistema de segregação racial legalizada.

A Suprema Corte deu sua chancela oficial à segregação no caso Plessy vs. Ferguson. O processo foi iniciado, tendo em vista uma lei de Louisiana que exigia vagões de trens racialmente segregados. A decisão da Corte oficializou a doutrina ‘separate but equal’ (‘separados, mas iguais’), segundo a qual os estados estavam autorizados a manter serviços públicos racialmente separados desde que os serviços destinados aos negros fossem “equivalentes” aos destinados aos brancos. Nos muitos estados, principalmente os do Sul, que mantinham serviços segregados, os oferecidos aos negros eram, em geral, de pior qualidade e subfinanciados.

Apenas nas décadas de 1950 e 1960, no contexto histórico do movimento dos direitos civis, uma nova leva de decisões judiciais e leis adotadas pelo Congresso deu fôlego ao esforço em direção à maior igualdade racial nos EUA. A Suprema Corte sob a presidência de Earl Warren derrubou a doutrina “separate but equal” em decisões como Heart of Atlanta Motel, Inc. vs. United States, que deu poder de polícia ao governo federal para dessegregar negócios privados e Loving vs. Virginia, que declarou inconstitucionais leis estaduais que proibiam o casamento interracial. A decisão mais significativa desse período foi, contudo, a Brown vs. Board of Education, que proibiu a segregação no ensino público.

US Marshals with Young Ruby Bridges on School StepsA menina negra Ruby Bridges (6) é escoltada por agentes federais (U.S. Marshals) para comparecer à escola de brancos William Frantz Elementary School, em Nova Orleans, 1960, após ordem judicial favorável à dessegregação (Crédito: U.S. Department of Justice)

Após séculos de escravidão e mais quase um século de segregação, os cidadãos de Nova Orleans, especialmente a maioria negra, tinham no sistema público igualitário de educação uma questão de direitos civis. Defensores do novo sistema privatizado de educação apresentam como resultado positivo o aumento de notas em provas padronizadas. Críticos  da reforma afirmam, no entanto, que as charter schools, pressionadas pelas metas de aprovação em testes, recusam matrícula de alunos de minorias étnicas, de baixa renda e com deficiências intelectuais e de desenvolvimento. O perfil dos professores também mudou, com a proporção de negros tendo caído de 73% para 54% no corpo docente.

Outra ação realizada no bojo das políticas do capitalismo de desastre – apresentada como racialmente neutra, porém com efeitos desproporcionais sobre a comunidade negra orleanense no pós-Katrina – foi a demolição de diversos conjuntos habitacionais em áreas centrais da cidade. O governo da cidade tinha a proposta de substituir os projects, que concentravam a população pobre da cidade, por novos bairros de “renda mista”, onde classes média e baixa conviveriam.

Apesar de protestos, que degringolaram para um conflito violento entre policiais e manifestantes, a Câmara Municipal aprovou por unanimidade o plano de demolição. Apesar de vistosas, as novas casinhas pintadas em cor pastel não parecem ter beneficiado a população de baixa renda, mas sim gentrificado áreas antes ocupadas pelos “indesejáveis”. Antes do furacão Katrina, mais de cinco mil famílias moravam em projetos de habitação públicos; hoje, existe apenas 1,9 mil. As demais famílias de baixa renda, das quais 95% eram compostas por negros, foram obrigadas a se mudarem para lugares como Houston e Atlanta, ou se deslocaram internamente em Nova Orleans e região metropolitana.

1 Map of Orleans Parish, LA, showing neighborhoods and the locations of major public housing developments as they were before Hurricane Katrina. (Data retrieved from City Planning Commission of New Orleans and Google Maps. Base map courtesy of Esri, DeLorme, HERE, MapmyIndia, © OpenStreetMap contributors, & the GIS community)

Vista aérea da inundação causada pelo furacão Katrina e da localização dos conjuntos habitacionais populares na cidade de Nova Orleans, Louisiana (Crédito: Anna Livia Brand & Vern Baxter/ OpenStreetMap contributors & the GIS community)

Mudança climática e aumento dos eventos climáticos extremos

O sexto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) afirma que atividades humanas, em especial a emissão de gases de efeito estufa, foram responsáveis pelo aumento médio de temperatura em 1,1ºC acima dos níveis pré-industriais. O consenso na ciência climática atribui o aumento de eventos climáticos extremos à mudança climática causada pela ação humana.  Comunidades em situação de vulnerabilidade, especialmente aquelas compostas por minorias étnicas, que historicamente contribuíram significativamente menos para as emissões, serão desproporcionalmente afetadas pelos impactos das mudanças climáticas.

Conforme Liza Gross, no artigo “Confronting Climate Change in the Age of Denial, publicado em PLOS Biology, o aquecimento das temperaturas globais alcançou níveis críticos, que ultrapassam a temperatura de segurança prevista pelo Acordo de Paris para a manutenção da vida na Terra. Nas palavras do secretário-geral da ONU, António Guterres, “a era do aquecimento global acabou” e “a era da ebulição global chegou”. Nesse contexto, os eventos climáticos extremos, como o furacão Katrina, serão mais frequentes, e as desigualdades raciais não devem e não podem ser negligenciadas.

This graph aggregates temperature data from four institutions to show rapid warming in the past few decades, with the last decade the warmest on record Data sources: NASA's Goddard Institute for Space Studies, National Oceanic and Atmospheric Administration National Climatic Data Center, Met Office Hadley Centre/Climatic Research Unit, and the Japanese Meteorological Agency. Graph courtesy NASA.

O gráfico reúne dados de temperatura de quatro instituições renomadas e demonstra o rápido aumento nas últimas décadas, destacando que o intervalo dos últimos dez anos foi o mais quente já registrado (Crédito: Liza Gross, PLOS Biology)
Número de dias desde a década de 1990 em que a temperatura média globa ultrapassou a do período pré-industrial — Foto: Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESPNúmero de dias desde a década de 1990 em que a temperatura média global ultrapassou a do período pré-industrial (Crédito: Giovanna Adelle, G1)

 Os estudos sobre o racismo ambiental e a justiça climática surgem como respostas fundamentais a essas desigualdades. O racismo ambiental é um conceito que se designa a exposição desproporcional das comunidades afro-americanas e hispânicas às mudanças climáticas e eventos ambientais extremos. Tais comunidades, frequentemente situadas em proximidade com instalações industriais, aterros sanitários e outras fontes de degradação ambiental, sofrem os resultados de padrões históricos de segregação e políticas discriminatórias advindas da escravatura. No contexto contemporâneo, essas desigualdades estruturais continuam a se manifestar e, por isso, ativistas denominam o racismo ambiental como the new Jim Crow, uma vez que a segregação permanece marginalizando grupos racializados nos Estados Unidos.

Já a justiça climática é uma abordagem que reconhece as mudanças climáticas não apenas como uma questão ambiental, mas como um problema profundamente relacionado à desigualdade social, econômica e racial. Tal movimento político, social e acadêmico iniciou-se na década de 1980 a partir da publicação do relatório Toxic Waste and Race. Este movimento defende a redistribuição equitativa dos encargos e benefícios das ações climáticas, responsabilizando mais os países historicamente emissores e garantindo apoio às populações menos responsáveis pelos danos ambientais. Além disso, a luta pela justiça climática envolve a promoção da participação inclusiva dessas comunidades nas decisões, buscando um futuro sustentável para todos.

O impacto do furacão Katrina exemplifica de forma contundente o racismo ambiental e a urgência da justiça ambiental. As comunidades afro-americanas e de baixa renda de Nova Orleans, historicamente relegadas a áreas de risco, como regiões industriais e propensas a inundações, sofreram desproporcionalmente os efeitos devastadores da tempestade. O Gráfico 2, do estudo Environmental Justice Through environmental Justice Through the Eye of Hurricane Katrina, ilustra essas disparidades ao mostrar que as áreas mais impactadas tinham uma concentração significativamente maior de afro-americanos em comparação com as média nacional. A recuperação lenta dessas comunidades de baixa renda, em contraste com a reconstrução mais rápida de bairros mais ricos e majoritariamente brancos, evidencia como as desigualdades estruturais pré-existentes exacerbaram a vulnerabilidade dessas populações, reforçando a necessidade de políticas de mitigação e adaptação climática.

 

* Lucas Silva Amorim é pesquisador colaborador do INCT-INEU/OPEU, doutorando pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP) com período sanduíche (2024-2025) na Georgetown University financiado pela Fulbright. Contato: amorimlucas@usp.br.

Haylana Burite é pesquisadora bolsista de Iniciação Científica do OPEU (INCT-INEU/PIBIC-CNPq) e graduanda em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID/UFRJ). Contato: buritehaylana@gmail.com.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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