Como o novo pacote de leis anti-China reflete a competição geopolítica e tecnológica
Congresso dos EUA, Washington, D.C. (Crédito: Daniel Mennerich/Flickr)
Por Ailton Manoel Pereira Junior* [Informe OPEU]
Na segunda semana de setembro de 2024, a Câmara dos Representantes do Congresso dos Estados Unidos aprovou 28 projetos de lei, cujo conteúdo tem o objetivo de regular diversos temas com relação à China. As medidas foram submetidas à votação em um único pacote por suspensão de regras, um mecanismo utilizado para passar propostas que não apresentam muita resistência, pois requer apenas o voto de dois terços dos membros presentes e votantes. Os projetos foram acatados com anuência de democratas e republicanos e aguardam tramitação no Senado. Atualmente, os senadores se deparam com um calendário apertado, com poucos dias legislativos restantes e muitos projetos a serem votados que, em tese, seriam mais importantes. Entretanto, o presidente da Câmara, Mike Johnson, republicano de Louisiana (R-LA), já deixou evidente seu objetivo de ter “um significativo pacote legislativo relativo à China transformado em lei até o fim deste ano”.
(Arquivo) Presidente da Câmara de Representantes, Mike Johnson, em discurso na Casa, em 25 out. 2023 (Crédito: Gabinete Johnson/Wikimedia Commons)
Embora não haja certeza acerca da ratificação dessas medidas, a “Semana da China”, como ficou conhecida, explicita a agenda de Washington no que diz respeito ao futuro de suas relações com o país asiático. O consenso bipartidário apresentado pode indicar que o resultado das eleições estadunidenses de novembro não altere a posição dos EUA na relação bilateral. Por sua vez, a natureza das medidas – focadas na restrição das relações econômicas dos países, na contenção do desenvolvimento tecnológico chinês e na limitação da influência chinesa dentro dos EUA e no cenário geopolítico global – parece ser a diretriz da atuação de quem estiver no controle da Casa Branca nos próximos anos.
Nesse contexto, as propostas de lei foram recebidas com insatisfação por Pequim. O porta-voz da Embaixada chinesa em Washington, Liu Pengyu, afirmou que, se aprovados, os projetos “causarão sérias interferências na relação China-EUA e na cooperação mútua e vão, inevitavelmente, causar danos aos próprios interesses estadunidenses, sua imagem e credibilidade”. O porta-voz também ressaltou que o pensamento que sustenta essas posições está “repleto de uma lógica da Guerra Fria e de conceitos de jogos de soma zero”. Ele menciona, ainda, que há um “novo macartismo no Congresso dos EUA (…) manipulando as relações sino-estadunidenses em ano eleitoral”, em referência ao movimento político de perseguição aos comunistas nos EUA, entre 1940 e 1950, cuja maior expressão se deu pelas posições do senador Joseph McCarthy (R-WI).
Em um editorial, a agência estatal chinesa de notícias, Xinhua, criticou a “hipocrisia” do governo dos EUA, que “espera estabilizar as relações enquanto o corpo legislativo se fixa em desmantelar os laços” entre os países, referindo-se ao contraste entre a fala do conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Jake Sullivan, em visita a Pequim, em agosto, e os projetos de lei em questão. Também destacou o interesse puramente eleitoral das medidas e sua lógica de curto prazo, que caracterizam a China como bode expiatório de todos os problemas pelos quais os EUA passam, como, por exemplo, a falta de emprego, caracterizada como roubo, ou a baixa competitividade comercial, definida como comércio desleal. Essas críticas têm o aval de acadêmicos do país, como Lu Xiang, que é membro da Academia Chinesa de Ciências Sociais (CASS, na sigla em inglês, um importante think tank chinês), e Li Haidong, um dos professores da Universidade de Assuntos Exteriores da China. Ambos afirmaram, em entrevista ao jornal Global Times, que a Câmara dos EUA visa a armar a legislação, no sentido de torná-la conflituosa, com o objetivo de assegurar ganhos políticos.
A estratégia estadunidense de contenção da China: disputa tecnológica, comercial e ideológica
Uma análise mais detida dos temas específicos sobre os quais os projetos de lei aprovados na Câmara tratam consegue delinear a estratégia dos EUA em sua relação com a China. No âmbito tecnológico, leis como a ROUTERS Act e a Securing Global Telecommunications Act têm o objetivo de limitar a aquisição de dispositivos produzidos em países considerados adversários, como China, Rússia, Irã e Coreia Popular. Outras iniciativas buscam regulamentar a cooperação científica com a China, como é o caso da Science and Technology Agreement Enhanced Congressional Notification Act, que impõe restrições a acordos científicos, exigindo justificativas e revisões de segurança antes de qualquer colaboração. Ao mesmo tempo, a Research and Development Competition and Innovation Act visa a impedir a participação de talentos estrangeiros em programas de pesquisa estratégica.
Em relação ao comércio e aos investimentos, a Economic Espionage Prevention Act foca em proteger segredos comerciais estadunidenses e sancionar entidades estrangeiras envolvidas em espionagem econômica. Já a End Chinese Dominance of Electric Vehicles in America Act é um exemplo de como Washington busca enfraquecer a competitividade da China em setores emergentes, como veículos elétricos e baterias. Há também, com a Chinese Currency Accountability Act, a proposta de restrição do uso do yuan chinês nas cestas de moedas da reserva dos Estados Unidos e do Fundo Monetário Internacional (FMI), enquanto a China não atender certas condições de transparência propostas pelos EUA.
Em termos de contenção ideológica, leis como a Confucius Institute Act têm como objetivo diminuir a influência de entidades chinesas em instituições educacionais estadunidenses, por meio da retirada de financiamento daquelas que sediarem os institutos. Já WHO Pandemic Preparedness Treaty Act determina que qualquer recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) acerca de pandemias seja votada no Senado antes de uma aplicação na legislação interna dos EUA, dado que os legisladores estadunidenses interpretam essa instituição como sendo de influência chinesa. Além disso, iniciativas como a Hong Kong Economic and Trade Office Certification Act procuram reduzir a legitimidade de representações diplomáticas e comerciais de Hong Kong nos EUA, já que a região administrativa especial atuou historicamente como praça financeira da China.
(Arquivo) A então vice-primeira-ministra da China e presidente do Conselho da Sede do Instituto Confúcio, Liu Yandong, visita, em 22 nov. 2013, filial inaugurada na George Washington University (Crédito institucional)
No contexto geopolítico, o foco dos EUA se estende para o fortalecimento de parcerias estratégicas na Ásia, como demonstrado pelos atos de apoio à cooperação trilateral com Japão e Coreia do Sul (Trilateral Cooperation Act) e a promoção da segurança e estabilidade nas ilhas do Pacífico (Pacific Partnership Act). Essas ações reforçam o compromisso de Washington em estabelecer uma rede de alianças para contrapor a expansão da influência chinesa na região.
Nova Guerra Fria, desacoplamento e o futuro da Ordem Mundial
Dado o caráter de contenção da política estadunidense voltada para a China, visando a restringir o crescimento e a influência do país asiático no mundo, a caracterização da relação bilateral entre China e EUA como uma nova Guerra Fria é comumente evocada. Contudo, diferentemente do contexto histórico envolvendo a União Soviética, que operava em um sistema econômico separado e autônomo, a China está inserida na economia global e desempenha um papel fundamental na estrutura das cadeias de valor internacionais. Desde a adesão à Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001, o país consolidou sua posição como principal fornecedor de produtos manufaturados e intermediários.
A lógica do desacoplamento entre as economias chinesa e estadunidense também é utilizada pelos burocratas dos EUA. No entanto, a separação econômica desconsidera esse papel central da China na cadeia produtiva global, especialmente em áreas como eletrônicos, baterias e veículos elétricos. Mesmo diante das tensões comerciais e tecnológicas, a economia dos Estados Unidos depende fortemente dos produtos e investimento chineses para manter sua competitividade e estabilidade. Isso ocorre em consequência da exportação de capitais estadunidenses durante a expansão da globalização, que buscou menores custos de produção no Leste Asiático, e foi em si uma estratégia de contenção da União Soviética.
Dessa forma, o debate sobre um novo cenário de confrontação entre EUA e China deve considerar as determinações do funcionamento do sistema interestatal, no qual Estados atuam como promotores e defensores dos interesses econômicos de suas corporações em um contexto internacional. A competição entre as duas potências não se dá apenas no âmbito geopolítico, mas também em torno do controle das tecnologias emergentes e do acesso a mercados estratégicos. Em um cenário de alta interdependência econômica, a tentativa de reconfigurar as relações internacionais por meio de barreiras comerciais e controle de fluxos tecnológicos pode intensificar as tensões. No entanto, ao contrário do cenário bipolar da Guerra Fria, no qual blocos distintos competiam por influência global, a atual competição sino-estadunidense ocorre dentro de um sistema internacional que continua amplamente interconectado.
Em síntese, foi a expansão do poder estadunidense sobre o Leste Asiático durante a Guerra Fria e o fim do século XX que propiciou a transformação da China em uma grande potência industrial e tecnológica, ao efetivar sua incorporação à economia global. Esse processo determinou, contudo, a transferência do polo geográfico da inovação para o país asiático, dada a hegemonia da fração financeira do lado esquerdo do Atlântico. Dessa forma, uma vez que os ganhos competitivos em termos econômicos estão nas mãos dos chineses, os EUA passam a agir de modo contrário às políticas de livre-comércio que constituíram o Consenso de Washington e a globalização neoliberal. Também disso decorre a retórica de Pequim, que sempre enfatiza a busca por ganhos mútuos, a cooperação, o destino compartilhado para a humanidade e a integração. Nesse contexto, a atuação de Pequim não busca suplantar a ordem mundial atual propondo uma ideologia oposta, mas sim a transformação interna desses sistemas de governança, com vistas a alcançar seus objetivos estratégicos. Assim, o futuro da ordem mundial reside na relação complexa entre China e EUA, em sua relação dialética de conflito, integração, confronto e cooperação, que irá conformar as bases de estruturação futura do sistema internacional.
* Ailton Manoel Pereira Junior é bolsista de IC do INCT-INEU, auxiliar de pesquisa do Núcleo de Economia e Política Externa (NEPEX-UFSC), sob supervisão do prof. Dr. Jaime Cesar Coelho (professor titular do departamento de Economia e Relações Internacionais – UFSC). Contato: ailtonjunior726@gmail.com.
** Primeira revisão: Simone Gondim. Contato: simone.gondim.jornalista@gmail.com. Segunda revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 27 set. 2024. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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