Eleições

Impacto da saída de RFK Jr. é pequeno, mas pode ser chave em eleição apertada

Robert F. Kennedy, Jr. e o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump no comício “Arizona for Trump”, na Desert Diamond Arena em Glendale, Arizona, em 23 ago. 2024 (Crédito: Gage Skidmore/Flickr)

Por Tatiana Teixeira* [Informe OPEU]

No último dia 23, o candidato independente Robert F. Kennedy Jr. anunciou, em Phoenix, no Arizona, sua retirada da corrida presidencial dos Estados Unidos e declarou seu apoio ao republicano Donald Trump. No discurso de saída, criticou o Partido Democrata por não ser mais um “defensor da Constituição” e por ter-se afastado “dramaticamente” dos “valores fundamentais”, com os quais ele foi criado – uma onipresente referência à sua família. Como “causas baseadas em princípios” compartilhadas com o novo aliado, citou “liberdade de expressão, guerra na Ucrânia e guerra contra nossos filhos”.

Horas mais tarde, subiu ao palco no comício do ex-presidente, em Glendale (AZ). Calorosamente recebido aos gritos de “Bobby”, ouviu pelo menos duas promessas: a entrega de todos os documentos residuais do assassinato de John F. Kennedy, tio de RFK Jr., no âmbito de uma comissão a ser formada para investigar tentativas de homicídio de presidentes – incluindo a do próprio Trump nesta campanha; e a criação de um painel de especialistas, que trabalhariam com Kennedy, um negacionista de vacinas, para investigar problemas de saúde infantil. Trump “fará a saúde da América grande de novo”, declarou RFK, em lacônico discurso. Os pesados ataques pessoais mútuos ao longo da atual campanha ficaram para trás.

A resposta de membros do clã Kennedy, um dos ícones mais tradicionais e respeitados da cultura política americana, foi dura. “Queremos uma América cheia de esperança e unida por uma visão compartilhada de um futuro mais brilhante, um futuro definido pela liberdade individual, pela promessa econômica e pelo orgulho nacional”, afirmam, em uma declaração conjunta divulgada antes do comício, cinco irmãos de Kennedy – Kathleen Kennedy Townsend, Courtney Kennedy, Kerry Kennedy, Chris Kennedy e Rory Kennedy. “Acreditamos em Harris e Walz”, continua a nota, que encerra: “A decisão do nosso irmão Bobby de apoiar Trump hoje é uma traição aos valores que nosso pai e nossa família mais prezam. É um final triste para uma história triste”.

Kennedy Family Takes St. Patrick's Photo With Biden Minus RFK, Jr.(Arquivo) Família Kennedy com Biden, à exceção de RFK Jr., em mar. 2024 (Crédito: Kerry Kennedy)

Em que pese a amplitude das reações, na família e no mundo da política, o anúncio de RFK Jr. não foi uma surpresa, especialmente após o vídeo de uma ligação entre os dois candidatos vazado nas redes por Bobby Kennedy III, seu filho mais velho. Na conversa, ocorrida após a tentativa de assassinato de Trump em 13 de julho durante um comício a céu aberto, o ex-presidente faz uma clara aproximação, manifestando sua preocupação com a segurança das vacinas aplicadas em bebês – um tema caro a seu interlocutor e relacionado com a tal “guerra contra nossos filhos”. “Gostaria muito que você fizesse alguma coisa. E acho que vai ser tão bom para você e tão grande para você. E nós vamos ganhar”, declara Trump.

Dois dias depois (15), os dois se encontraram na Convenção Nacional Republicana, realizada em Milwaukee, Wisconsin. Mediada pelo ex-apresentador da Fox News Tucker Carlson, próximo de Kennedy, e pelo empresário Omeed Malik, doador da campanha de ambos, a reunião levantou rumores sobre o possível endosso, inicialmente negado. “Sim, o sr. Kennedy se encontrou hoje com o presidente Trump para discutir a unidade nacional e também espera se encontrar com os líderes do Partido Democrata”, disse Stefanie Spear, porta-voz da campanha de Kennedy. “E, não, ele não está desistindo da corrida”, ressaltou, acrescentando: “Ele é o único candidato pró-ambiente, pró-escolha e antiguerra que vence Donald Trump nas sondagens”. Dessa declaração, o que se viu foi todo o contrário: um RFK ignorado pela cúpula de seu partido e o apoio a Trump, que já o incluiu em sua equipe de transição.

Impacto nos swing states

Kennedy Jr., de 70 anos, entrou na corrida presidencial em abril de 2023 para disputar as primárias do Partido Democrata. Em outubro, desistiu e anunciou candidatura independente, colocando-se como alternativa para os eleitores insatisfeitos com Joe Biden, de 81, e com Trump, de 78 – um voto de protesto, irritação, ou indiferença, não necessariamente de adesão a uma agenda. Conforme pesquisa de julho do Pew Research Center, cerca de metade dos eleitores que disseram apoiá-lo afirmou tê-lo escolhido por, justamente, não ser nem um nem outro, enquanto apenas três em cada dez mencionaram suas características, ou políticas. Ele passou, então, por um demorado processo para incluir seu nome nas cédulas de voto. Nos Estados Unidos, cada estado tem suas regras, mas, em geral, candidatos independentes precisam coletar milhares de assinaturas, ou serem acolhidos por um partido menor para então poderem solicitar a inclusão.

Ao apoiar Trump oficialmente, RFK Jr. disse que retiraria seu nome das cédulas dos battleground states, deixando-o apenas nos estados que não são decisivos. Ele alega que seu objetivo é evitar favorecer Kamala Harris. Há meses, inclusive, o Partido Democrata denuncia sua candidatura como uma manobra: o independente funcionaria como um “efeito spoiler” para Trump, ou seja, um candidato sem chances de ganhar, cuja presença na cédula eleitoral dispersa os votos e afeta quem será o vencedor.

Foi o que aconteceu, por exemplo, na eleição presidencial de 1992. Naquele ano, o candidato independente Ross Perot obteve cerca de 19% dos votos populares, o que teria impulsionado o democrata Bill Clinton a derrotar o candidato republicano George H.W. Bush, que buscava a reeleição. Foi o mais bem-sucedido da política moderna americana. Historicamente, lembra-se, nenhum candidato independente jamais foi eleito nos EUA desde que o sistema bipartidário se consolidou no país, oferecendo poucos incentivos para a participação de figuras estranhas às estruturas das duas legendas predominantes – Democrata e Republicana.

Businessman Ross Perot with Republican freshmen Congress members speaking at a press conference in the U.S. Capitol] | Library of Congress(Arquivo) Ross Perot em entrevista coletiva no Capitólio, em Washington, D.C., em maio de 1993 (Crédito: Maureen Keating/ Library of Congress)

Voltando a Kennedy, a alteração das cédulas de voto não depende, contudo, do voluntarismo, nem do cálculo estratégico do Camelot. As autoridades de Michigan, Carolina do Norte e Wisconsin – três dos pelo menos sete estados cruciais em 2024 – já informaram que nenhuma mudança pode ser feita a essa altura. A respeito de Wisconsin, a única possibilidade prevista pela legislação estadual para a retirada do nome é o óbito do candidato. Até o momento, sua ausência está confirmada nas cédulas do Arizona e da Geórgia, também estados-chave.

Para entender o que esse imbróglio pode representar, tomemos Michigan como caso ilustrativo. Pesquisa divulgada pela CBS News alguns dias antes do anúncio de RFK Jr. mostrava Kamala e Trump tecnicamente empatados, e Kennedy, com cerca de 2% de apoio. Michigan tem em torno de 8,4 milhões de eleitores registrados. Como observaram Caitlin Yilek e Allison Novelo em reportagem da CBS News, “se Kennedy realmente obtivesse 2% dos votos, seriam cerca de 167.820 votos. Trump venceu por pouco a ex-secretária de Estado Hillary Clinton, por menos de 1 ponto, ou cerca de 10.700 votos, em 2016. O presidente Biden ganhou o estado em 2020 por mais de 150.000 votos, terminando menos de 3 pontos à frente de Trump”.

BBC A map of the United States with Arizona, Georgia, Michigan, Nevada, North Carolina, Pennsylvania and Wisconsin marked

Swing States em 2024 (Crédito: BBC)

O impacto de Kennedy, se houver – explica o professor Matthew Foster, da American University –, vai-se dar não pelo número de estados, ou por qualquer estado, mas pelo que acontecerá nos swing states. E por que isso importa tanto para o independente? Porque, em caso de vitória de Trump, quanto maior a evidência de que seu nome afetou o resultado em benefício do ex-presidente, maior seu poder de barganha para escolher a posição que mais lhe convier no gabinete. Este, sim, o motivo da retirada de cena de uma candidatura anódina, inconsistente e sem futuro, conforme antecipado por sua vice, a advogada e empresária Nicole Shanahan, em entrevista ao podcast Impact Theory, com Tom Bilyeu, em 20 de agosto.

Desempenho nas pesquisas

O baque da troca de Biden por Kamala foi sentido na campanha de RFK Jr. Pesquisa divulgada em agosto pelo Pew Research Center sugere que a vice-presidente se beneficiou do apoio de mulheres e de eleitores não brancos que cogitavam votar no independente. Ainda de acordo com o Pew Center, entre os que mudaram de opção, uma maioria escolheu Harris (39%, contra 20% para Trump). A mesma sondagem mostra que, dos cerca de 15%, em julho, das intenções de voto de eleitores registrados, o candidato independente viu seu desempenho cair praticamente pela metade em agosto, até em torno de 7%. Na média de pesquisas do site RealClearPolitics, divulgada no mesmo período, estamos falando de 5% em nível nacional.

Há outros pontos importantes na pesquisa do Pew Center. O primeiro é que os apoiadores de Kennedy aparecem como os menos motivados a ir votar nesta eleição presidencial (23%, contra 72% para Trump, e 70%, para Kamala), o que pode levantar dúvidas sobre o peso da transferência de um voto que talvez não aconteça. O segundo é que a maioria de seus seguidores não se identifica como partidária. Apenas 14% se consideram republicanos, e 12%, democratas, o que pode reforçar o primeiro tópico, já que não haveria compromisso com partido, ideologia, pautas. Ao mesmo tempo, os 74% que se identificam como independentes (ou outros) podem significar uma oportunidade para o partido que conseguir se conectar com este grupo. Deste percentual, a maioria (40%) seria mais propensa ao Partido Republicano do que ao Democrata (26%).

Pesquisa AP-NORC de julho já havia trazido indicações nesse sentido. Nela, republicanos aparecem como marcadamente mais propensos do que democratas e independentes a ter uma opinião favorável de RFK Jr. Além disso, aqueles com uma impressão positiva de Kennedy também tendem a ter uma visão mais favorável de Trump (52%) do que de Kamala (37%). A equipe de campanha do candidato republicano está atenta a essa base e pretende cortejá-la.

Peso do nome de família

RFK Jr. é filho do ex-senador (D-NY) e ex-procurador-geral Robert F. Kennedy, morto em 1968, em Los Angeles, na noite de sua vitória nas primárias democratas da Califórnia, e sobrinho do ex-presidente John F. Kennedy, também assassinado, em Dallas, em 1963. Boa parte de seu capital político deriva do tradicional sobrenome e de suas conexões familiares, visto que muitos eleitores sequer conhecem, ou parecem interessados em suas propostas, como revela uma pesquisa da rede CNN divulgada em maio.

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De acordo com ranking de aprovação retrospectiva do Instituto Gallup, JFK se mantém como o ex-presidente mais bem avaliado, com apelo entre democratas, republicanos e independentes. Um prestígio do qual a campanha de RFK Jr. buscou se aproveitar, enviando aos eleitores mensagens do tipo “Ponha um Kennedy de volta na Casa Branca”. Afinal, essa é sua experiência política, vivida por observação e proximidade, mas sem nunca ter disputado um cargo eletivo sequer.

Nascido em 1954, Kennedy é o terceiro de 11 filhos do casal Ethel e Bobby sênior. RFK cresceu em uma família transformada em mito cristalizado no imaginário popular como a realeza americana, modelo de sucesso, elegância, esperança e credibilidade, marcada por seus dramas, tragédias e histórias de superação. Uma família que, geração após geração, epitomizou e personificou os sonhos e arquétipos de cada cidadão americano, ao longo de décadas do então Século Americano, termo cunhado pelo jornalista Henry Luce em 1941. Parte dessa vivência está no livro de memórias American Values, publicado em 2018 por RFK.

Como afirma Andrew Miller, em perfil-entrevista do então candidato escrito para a revista The Economist, da infância, foram os assassinatos do pai e do tio que deixaram as marcas mais profundas em Kennedy. A esses eventos, seguiram-se a piora no que já era um ruim desempenho nos estudos e inúmeras expulsões escolares, a juventude marcada por uma dependência química que durou pelo menos 14 anos e o levou a ser preso por posse de heroína, a fé católica que o salvou das drogas, a adesão ao conspiracionismo paranoico americano transmutado em negacionismo das vacinas na pandemia da covid-19 e sua própria cota de tragédias pessoais, como o suicídio de Mary Richardson, sua segunda mulher, em 2012. Kennedy também coleciona histórias “curiosas” (deixando claro aqui o eufemismo), entre elas, a de que teve parte de seu cérebro devorado por um verme, ou uma imagem sua comendo um churrasco de cachorro – o que ele nega –, ou ainda, a carcaça de um filhote de urso por ele deixada no Central Park, em Nova York, há uma década.

An honor guard folds the flag of the United States at Arlington National Cemetery in preparation for flag presentation to Jacqueline Kennedy on November 25, 1963.(Arquivo) Guarda de Honra se prepara para dobrar a bandeira sobre o caixão de JFK no Cemitério Nacional de Arlington, em 25 nov. 1963 (Crédito: Abbie Rowie/Wikipedia Commons/Domínio Público)

Estudou em Harvard, na London School of Economics e na faculdade de Direito da Universidade da Virgínia. Teve uma longa carreira como advogado ambientalista, durante a qual “Kennedy ajudou a obter grandes indenizações de empresas químicas, incluindo DuPont e Monsanto, e representou grupos minoritários e indígenas na América”. Em 2015, relata Miller, Kennedy envolveu-se com o World Mercury Project, futuro Children’s Health Defence (CHD), uma organização da qual ainda é presidente e que insiste em disseminar desinformação, como a de que vacinas podem causar autismo, entre outros absurdos. Já foi denunciado por várias famílias por ajudar a “espalhar desinformação perigosa”.

Em março de 2021, o Centre for Countering Digital Hate incluiu Kennedy na sua lista de advertência sobre os 12 principais perfis nas redes sociais responsáveis por pelo menos dois terços do conteúdo antivacina publicado no Facebook e no Twitter. Em 2022, sua conta no Twitter foi classificada como “the top superspreader” (algo como “o principal superdisseminador”) de desinformação sobre covid-19 pelo artigo “One Year of COVID-19 Vaccine Misinformation on Twitter: Longitudinal Study”, publicado no periódico médico Journal of Medical Internet Research.

Parceria dos ressentidos

Para além dos aspectos burlescos, polêmicos, bizarros, ou preocupantes, na biografia de um e outro, o que se manifesta como uma convergência notável entre Robert F. Kennedy Jr. e Donald Trump é a carga de ressentimento e amargura em relação aos democratas e à política. No caso do primeiro, suas declarações revelam a indignação com o não reconhecimento de seu valor e de sua trajetória, assim como com o que ele vê como práticas de “censura” e cerceio de suas ambições políticas. Em relação ao segundo, a derrota para Biden na disputa por sua reeleição em 2020 ainda é uma pungente ferida narcísica, de difícil cicatrização.

Ambos saídos de um mundo de privilégios, RFK Jr. e Trump compartilham o conspiracionismo criminoso e a disseminação de desinformação e de fake news como modus operandi, a defesa de um distorcido conceito de liberdade de expressão e o fictício discurso de outsiders na política e são alvo de acusações de assédio sexual. Ambos prometem “consertar” a fronteira sul e o problema migratório, renegociar acordos comerciais, tirar os EUA da guerra da Ucrânia e deixar o país longe de conflitos mundiais. Apoiam o direito às armas, denunciam a “mídia mainstream” e defendem uma política externa mais “isolacionista”. Essas são algumas das semelhanças.

E há nuanças e/ou divergências que poderiam afastar um e outro, na questão ambiental, migratória, ou na política doméstica e econômica, ou em termos de orçamento, por exemplo. Como vimos, porém, as diferenças não falam tão alto quanto o inimigo comum e a ambição pessoal.

 

Conheça alguns dos textos da autora publicados no OPEU

Informe “Think tanks, lobbies e política nos EUA”, 6 jun. 2024

Informe “Colégio Eleitoral nos EUA: um sistema obsoleto que resiste à mudança dos tempos e da sociedade”, 28 de maio de 2024

Informe “Lula e Biden: uma relação com ganhos e (novos) limites para Brasil e EUA”, 11 fev. 2023

Informe “A carta de Biden”, 21 mar. 2021

Informe “O legado do senador republicano Mitch McConnell”, 30 out. 2020

Informe “Think tanks e política nas eleições de 2020 nos EUA”, 15 dez. 2019

Informe “A bilionária e feroz propaganda eleitoral nos EUA”, 17 nov. 2019

Informe “Think tanks americanos e a desigualdade de gênero”, 29 out. 2019

 

Tatiana Teixeira é pesquisadora de Pós-Doutorado (INCT-INEU/CNPq) e editora-chefe do Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU). Contato: professoratatianateixeira@outlook.com.

** Este conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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