Sociedade

Racismo institucional nos EUA: o caso Raven Baxter e a persistência da discriminação racial

(Arquivo) ‘A real pandemia é racismo’, diz cartaz de manifestante durante protesto do Black Lives Matter perto da Casa Branca, em Washington, D.C., em 31 de maio de 2020 (Crédito: Miki Jourdan/Flickr)

Por Leonardo Martins de Assis e Ana Eliza Tsunashima Rodrigues* [Informe OPEU]

Raven Baxter, Ph.D. on LinkedIn: I've spent much of my life facing  adversities in the workplace, and in… | 38 commentsEm uma tarde aparentemente comum, Raven Baxter, bióloga renomada, estava prestes a adquirir seu tão sonhado apartamento à beira-mar. Conforme reportado pela imprensa americana e brasileira, o imóvel de luxo custaria a Baxter a quantia de US$ 749 mil. Ela fez a oferta e enviou o primeiro pagamento. Esperava-se, então, a confirmação de que tudo havia corrido bem e que ela poderia desfrutar de sua nova residência. A realidade se mostrou, porém, diferente.

No dia 17 de maio de 2024, Bill Loftis, corretor de Baxter, trouxe a notícia inesperada. Jane Walker, a proprietária branca de 84 anos, havia desistido do negócio. A razão? Walker não queria vender sua propriedade para uma pessoa negra.

Baxter decidiu expor o preconceito sofrido em uma postagem na rede social X (antigo Twitter). Graças a essa publicação, recebeu orientações de várias pessoas sobre como lidar com a situação e garantir seus direitos civis. Após ampla repercussão, os filhos de Walker convenceram-na a reconsiderar sua decisão. Segundo a reportagem, a venda do imóvel continua prevista para ser concluída durante o verão do hemisfério norte. No entanto, apesar do sucesso da transação, os direitos de Baxter foram violados.

O racismo cultural e institucional, evidenciado no caso de Baxter, não é uma novidade nos Estados Unidos. Nos últimos anos, a questão racial se tornou central na política norte-americana. Movimentos como o Black Lives Matter tomaram as ruas para protestar contra a violência policial e a persistência de políticas excludentes e racistas. A Lei de Direitos Civis, assinada em 2 de julho de 1964, representa o fim da segregação promovida pelas leis Jim Crow e é um marco para a igualdade de direitos. Contudo, os 100 anos de segregação racial legalizada deram origem a culturas e sistemas fundamentados no racismo e na discriminação.

O que é o racismo institucional e como se aplica aos EUA?

Os colonizadores estabeleceram o conceito de raça com base em fenótipos e cor da pele para classificar os seres humanos. Eles se autodenominaram brancos e consideraram aqueles que não eram brancos como pertencentes a raças inferiores, passíveis, portanto, de serem subjugados, escravizados e/ou explorados. Os Estados Unidos da América foram construídos sobre a divisão racial, com quase 250 anos de nação sustentados pela hierarquia racial.

Ao analisar o caso de Raven Baxter, pode-se supor que o racismo foi praticado de maneira individual, atribuindo-se uma certa irracionalidade ou imoralidade a Jane Walker. De fato, o racismo é crime, e a proprietária deve ser penalizada adequadamente. Porém, limitar a análise do preconceito sofrido por Baxter a uma perspectiva individualista pode restringir nosso entendimento e a gravidade de situações afins.

Black Power: a Política de Libertação nos Estados Unidos | Amazon.com.brComo afirmam Charles Hamilton e Kwame Ture em sua obra Black Power: A Política de Libertação nos Estados Unidos (Editora Jandaíra, 2021), o racismo individual “consiste em atos explícitos de indivíduos, que causam a morte, ferimentos ou a destruição violenta de propriedades”. Já o racismo institucional “é menos explícito, muito mais sutil, menos identificável em termos de indivíduos específicos cometendo atos. Mas não é menos destrutivo para a vida humana”.

Segundo os autores, o racismo individual limita a experiência de vida das pessoas negras, retira seus direitos e as coloca em situação de vulnerabilidade. Entretanto, é uma forma mais explícita de preconceito que, muitas vezes, pode ser condenada de alguma maneira. No caso de Baxter, sua história ganhou repercussão na Internet e contribuiu para que ela recebesse o apoio adequado. Diariamente, o racismo institucional faz vítimas de maneira silenciosa, permitindo que a sociedade ignore essas ações ou até mesmo desconheça sua existência.

Hamilton e Ture veem ambas as práticas – individual e institucional – como inter-relacionadas, contribuindo para a prevalência de um “senso de posição superior de um grupo: os brancos são ‘melhores’ que os negros; portanto, os negros devem ser subordinados aos brancos”. A violência sofrida por Raven Baxter não é um caso isolado, ou uma exceção. É, de fato, parte de um sistema construído com base na discriminação e na supremacia branca.

Qual a origem do racismo nos EUA?

O racismo nos Estados Unidos tem origem na visão dos europeus sobre os povos africanos, considerados como não civilizados. Essa percepção parte das diferenças culturais, morais, religiosas, da maneira como se vestiam e de sua organização política. Como outros europeus, os ingleses viram no continente africano pessoas selvagens, usaram isso para relativizar a escravização e desumanizaram os povos africanos, reduzindo-os à condição de mercadoria.

Ao serem trazidos para os Estados Unidos, os africanos escravizados viviam em condições sub-humanas de exploração. Brancos e negros não tinham quase nenhum convívio, e isso apenas contribuiu para o imaginário racista que crescia na América. Estereótipos sobre o comportamento das pessoas pretas eram disseminados e naturalizados, colocando-os como dependentes, mentirosos e ladrões.

Esse cenário de preconceito não se restringiu, porém, apenas aos africanos. A expansão do país para o Oeste, justificada pelo conceito de Destino Manifesto – uma crença do século XIX de que os Estados Unidos tinham o direito e a missão divina de expandir seus territórios e ideais democráticos por todo o continente norte-americano – resultou no extermínio de populações nativas. Assim, a construção da grande nação norte-americana foi baseada no extermínio e violência contra minorias não-brancas e isso permanece estabelecido até o presente.

Notes on the State of Virginia: An Annotated EditionA diferenciação e a inferiorização da pessoa negra pode ser observada em Notes on the State of Virginia (Penguin Classics, 1998), de Thomas Jefferson, que diz “Apresento, portanto, apenas como uma suspeita, que os negros, sejam originalmente uma raça distinta, ou tornados distintos pelo tempo e pelas circunstâncias, são inferiores aos brancos nos dotes tanto do corpo como da mente.”. Nesse mesmo livro, Jefferson afirma que a separação racial é a melhor alternativa para os negros que estavam na América. Embora publicamente condenasse a escravidão, Jefferson defendia interesses que perpetuavam essa prática, especialmente em meio à rivalidade entre o Norte industrializado e o Sul agrário dos Estados Unidos.

Persistindo até os dias atuais, a divisão racial proposta por Thomas Jefferson se manifesta de forma subconsciente na vida cotidiana dos Estados Unidos. O racismo evidenciado no caso de Baxter tem suas raízes na época da escravização da população negra nos EUA.

Panorama atual

A segregação racial nos EUA é muito presente, sobretudo, nos grandes centros urbanos, onde pessoas brancas vivem em áreas de população majoritariamente brancas, e pessoas negras, em áreas com concentração de pessoas não brancas. As regiões predominantemente habitadas por pessoas não brancas têm maiores índices de poluição, o que implica maiores riscos de desenvolverem problemas de saúde. Pessoas não brancas também enfrentam desigualdades na mobilidade urbana, no acesso à saúde e na desvalorização mobiliária, além de serem alvo mais recorrentes de processos de gentrificação, devido às zonas nas quais estão concentradas.

O racismo praticado por Walker não é um caso isolado. Ainda é possível identificar diversos tipos de ocorrências racistas nos EUA. Diferentemente da prática individual da dona do imóvel, o racismo institucional acontece, muitas vezes, de forma velada, e arruína a vida de muitas pessoas. Um exemplo é o encarceramento em massa da população negra dos Estados Unidos, país em que a taxa de aprisionamento de pessoas negras é três vezes maior que a de pessoas brancas, de acordo com um relatório de 2022 elaborado pela ONG Human Rights Watch.

Diversas medidas foram tomadas ao longo do tempo, em meio a muitos protestos, para que a população negra dos Estados Unidos tivesse garantias de igualdade, como a Lei de Direitos Civis, de 1964. Entre outras leis federais, a Lei de Moradia Justa, de 1968, proíbe a discriminação por raça, religião, sexo e outras características, por parte de fornecedores de habitação.

Conforme a National Fair Housing Alliance, porém, os agentes imobiliários, em sua maioria, fazem direcionamento racial segundo o cliente. É comum que agentes imobiliários apresentem menos imóveis para seus clientes negros e latinos e que as residências mostradas sejam em regiões que a maioria da vizinhança é coétnica.

Baxter foi vítima de um racismo explícito que violou seus direitos. Todavia, como dito acima, o racismo não se manifesta apenas por meio de ações diretas. É provável que Baxter tenha enfrentado barreiras impostas pelo racismo institucional em outras ocasiões. O momento que deveria ser de celebração por sua nova conquista foi manchado pelo preconceito que sofreu. Embora Baxter ainda vá adquirir o imóvel no final, é importante refletir sobre como tudo aconteceu e como as imobiliárias e os agentes lidaram com a situação. Se Baxter não tivesse tornado o incidente público, o desfecho poderia ter sido diferente.

 

* Leonardo Martins de Assis é graduando do curso de Relações Internacionais da Unesp e pesquisador do Latino Observatory, sob coordenação e orientação de Marcos Cordeiro Pires e Thaís Lacerda. Contato: lm.assis@unesp.br.

Ana Eliza Tsunashima Rodrigues é graduanda do curso de Relações Internacionais da Unesp e membro do Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Conflitos Militares (GEPCI), sob orientação de Sérgio Luiz Cruz Aguilar. Contato: tsunashima.rodrigues@unesp.br.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Recebido em 8 jun. 2024. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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