Impactos da população latina nos EUA sobre a questão do aborto
Protestos em frente à Suprema Corte dos EUA, em Washington, D.C., em 24 jun. 2022, dia em que Roe vs Wade foi revogada (Crédito: Ted Eytan/Flickr)
Desde o fim da “Roe vs. Wade”, decisão histórica feita pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 1973 que garantia o acesso ao aborto em nível federal, os americanos estão testemunhando uma reformulação de sua dinâmica eleitoral, com essa pauta passando a ser inserida em diversos movimentos e eleições em todo o país desde então. As “midterms” de 2022 representam esse cenário em que o favoritismo do Partido Republicano naquele momento não se cumpriu numa “onda vermelha” como era esperado, pois a rejeição às posições dos republicanos sobre o direito ao aborto motivou milhares a irem às urnas naquela eleição, algo que pode se repetir em 2024, em especial, com os eleitores latinos.
Vários democratas enxergam uma possível mobilização no cenário político no qual, ao mesmo tempo que estados como Arizona e Flórida estão limitando o acesso ao aborto juridicamente, a maior parte da população latina, muito presente nesses locais, se mostra contrária a essa posição. Segundo uma pesquisa da Axios/Ipsos em parceria com o Telemundo, 68% dos adultos latinos se opõem a tornar qualquer prática de aborto ilegal, indicando uma grande oposição às decisões conservadoras e demandando maior atenção para essa questão.
Na última semana, a Suprema Corte do Arizona se utilizou de uma decisão de 1864 para restringir o acesso ao aborto no estado, uma semana após uma ação similar ter sido feita pela Suprema Corte da Flórida. Além de ter causado reações divididas da população, o Partido Republicano se mostrou favorável em manter a ordem da Corte e barrou duas tentativas de reverter a decisão, ambas democratas, que representaram a perplexidade frente a deliberação. De acordo com palavras da governadora democrata, a decisão representa um verdadeiro risco para as mulheres do estado pela sua essência conservadora: “Legisladores radicais protegeram uma visão da Guerra-Civil de banimento total do aborto que prende médicos, retira das mulheres a autonomia de nossos corpos e coloca nossas vidas em risco”. Até mesmo o ex-presidente e provável candidato republicano para a Presidência, Donald Trump, disse que a decisão da corte foi “longe demais”.
(Arquivo) Prédio da Suprema Corte do Arizona, em Phoenix, em 25 abr. 2010 (Crédito: Kevin Bondelli/Flickr)
Desta forma, as reações políticas denotam certa rejeição a essa medida jurídica feita no Arizona, o que pode mobilizar grandes bases eleitorais, exemplo dos latinos. Como já é sabido, desde 2022, diversos resultados eleitorais mostraram o poder da pauta do aborto no cenário nacional como o “Issue 1” feito em Ohio no ano passado, em que 56,8% dos eleitores do estado votaram em tornar o aborto um direito constitucional. Vale pontuar que Ohio vem se tornando um local cada vez mais “vermelho”, ou seja, apoiando o Partido Republicano. Em 2020, Donald Trump levou os 18 delegados eleitorais do estado com 53,3% dos votos. Ou seja, esse debate sobre o aborto perpassa as divisões partidárias, algo que impacta diretamente o eleitorado latino.
Recentemente, constatou-se que muitos eleitores latinos estão abandonando o espectro democrata e apoiando figuras do Partido Republicano. Para se ter ideia, na última eleição para o governo estadual da Flórida, em 2022, a cidade de Miami, com aproximadamente 70% de sua população sendo latina ou com origem hispânica, de acordo com o U.S. Census, garantiu 55% dos votos ao governador conservador Ron DeSantis. Ademais, a última pesquisa do jornal The New York Times/Siena College indicou que o ex-presidente Trump tem 46% das intenções de voto entre os eleitores hispânicos, contra 40% dos votos indo para Biden. De fato, essa situação representa um cenário dinâmico para os democratas, que antes tinham amplo apoio dos hispânicos, mas a situação pode mudar com as atuais restrições ao direito ao aborto.
De acordo com Raquel Terán, candidata para uma vaga no Congresso americano em uma área fortemente democrata em Phoenix, as reações da população sobre a decisão da corte foram de surpresa e choque: “Houve muito choque. É inacreditável”; “Muitas pessoas ficaram perturbadas. Muitas pessoas se sentiram atônitas. Muitos se sentiram preparados para se organizar”. Essa fala denota uma forte rejeição da população para com a decisão sobre o aborto, indicando uma situação diferente do que se é observado nas pesquisas de que algumas pautas podem transformar a disputa eleitoral. De acordo com a última pesquisa feita pelo grupo Tyson, Donald Trump teria no estado 39% dos votos, seis pontos à frente de Biden. Porém, como mencionado anteriormente, essa questão do aborto pode movimentar eleitores insatisfeitos com as atuais políticas conservadoras que controlam o estado, em especial quando se trata dos latinos.
Dos mais de sete milhões de habitantes, 31% da população do Arizona é de origem latina, segundo pesquisa do Pew Research. Além disso, considerando-se o eleitorado do estado, aproximadamente 20% dos votantes têm origem latina, sendo que é previsto que 150 mil jovens latinos estarão com a idade elegível para o voto nas eleições de novembro deste ano, de acordo com o Brennan Center. Retomando a eleição de Joe Biden em 2020, marcada pelo forte apoio da juventude americana, esse momento de restrição ao aborto no estado se mostra como uma grande oportunidade para os democratas de reconstruir essa mesma base, mais dividida atualmente em razão das atuais políticas da Casa Branca. Segundo uma pesquisa de Harvard, 53% dos jovens americanos pretendem votar nas eleições para presidente, mostrando-se preocupados com as questões reprodutivas, imigratórias e sociais, sinalizando uma grande participação jovem como ocorreu quatro anos atrás e que, provavelmente, ocorrerá no Arizona.
Paralelamente, a população latina se vê numa situação complexa, em que algumas liberdades estariam sendo “perseguidas” justamente no país que, em tese, garantiria essas liberdades, diferentemente dos seus países de origem. Segundo Victoria McGroary, diretora-executiva do Bold PAC, vinculado às candidaturas democratas hispânicas, essas questões que envolvem liberdades recebem grande atenção dos latinos: “Isso é fundamentalmente sobre liberdade. E isso é algo […] com que os eleitores latinos se preocupam muito”.
Ela destaca também que muitos latinos moldam suas perspectivas mais por meio das liberdades reprodutivas do que por opiniões ou crenças religiosas, algo que desvincula certo conservadorismo dessa população, muitos de origem católica e de comunidades tradicionais. Nesse sentido, quando se observa restrições severas ao aborto ou, como vem ocorrendo em alguns estados governados pelos republicanos, a restrição de livros, muitos latinos se mostram receosos com o futuro do país em que vivem, o que pode alterar resultados eleitorais.
Assim, como vem ocorrendo desde as eleições de 2022, a pauta do aborto pode transformar ainda mais o caótico cenário das eleições presidenciais dos Estados Unidos, impactando diretamente no eleitorado latino. No exemplo do Arizona, em que a corte restringiu fortemente o aborto, pesquisas indicam que os latinos podem mostrar seu descontentamento nas urnas. Isso pode ser prejudicial para Donald Trump, tendo em vista que seu partido se mostra fortemente vinculado a essas medidas e que, na eleição de 2020, perdeu no estado por 0,4% de diferença em relação a Biden. Essa situação pode ser a mesma em outros estados importantes para a corrida eleitoral, como é o caso da Flórida, que ainda conta com forte participação de jovens. Porém, é importante que os democratas e a campanha de Biden permaneçam atentos a essas transformações, agindo de acordo com os interesses desses grupos, tendo em vista a baixa popularidade do presidente tanto entre a população jovem, como entre os latinos.
* Felipe Sodré Fabri é graduando do curso de Relações Internacionais da Unesp e pesquisador do Latino Observatory, sob coordenação e orientação de Marcos Cordeiro Pires e Thaís Lacerda. Contato: felipe.sodre@unesp.br.
** Publicado originalmente no site Latino Observatory, em 1º de maio de 2024. Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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