Continuidades entre as políticas externas de Biden e Trump para Palestina/Israel
(Arquivo) Relações de longa data: premiê de Israel, Benjamin Netanyahu, cumprimenta o então vice-presidente dos EUA, Joe Biden, no encontro anual do Fórum Econômico Mundial, em Davos, em 21 jan. 2016 (Crédito: Haim Zach/GPO)
Por Bruno Huberman e Reginaldo Nasser* [Informe OPEU]
Durante o governo Donald Trump (2016-2020), as relações entre Israel e EUA passaram pela maior transformação desde que a “amizade especial” entre os países foi selada após a vitória de Israel na Guerra dos Seis Dias, em 1967, contra Egito, Síria e Jordânia. Até 2016, os EUA haviam sido críticos da ocupação israelense dos territórios palestinos da Cisjordânia e Gaza, que viola a lei internacional, e defensores ativos de uma solução de dois Estados. Trump foi o primeiro líder a acabar com qualquer forma de mediação com os palestinos e assumir uma posição radicalmente favorável aos israelenses.
O que o presidente Joe Biden (2021-) tem feito em seu governo é manter o status quo estabelecido por seu antecessor sem qualquer tipo de contrapeso relevante em relação aos palestinos. Isto é, na relação EUA-Palestina/Israel, entendemos que há mais continuidades do que descontinuidades na mudança de governo, apesar de Biden ter se apresentado como o anti-Trump durante a campanha eleitoral.
Entre as razões para a continuidade do status quo, destacamos: i – pela primeira vez, no pós-Guerra Fria, ocorre a perda relativa de importância do Oriente Médio na política externa dos EUA, em que se prioriza o Leste Asiático, particularmente a China, e o Leste Europeu, onde ocorre a Guerra Rússia-Ucrânia; ii – as alterações na geopolítica do Oriente Médio promovidas por Trump, que aproximaram Israel de alguns países árabes, e isolaram ainda mais os palestinos; e iii – a força do lobby israelense nos EUA, que contém o impacto de forças progressistas favoráveis aos palestinos que ajudaram a eleger Biden.
Neste Informe OPEU, que traz os principais pontos desenvolvidos, mais detalhadamente, no artigo “Continuidades entre as políticas externas de Biden e Trump para Palestina/Israel”, publicado na revista Conjuntura Internacional, analisamos cada uma dessas razões com o objetivo de compreender a transição promovida pelo governo Biden nas relações dos EUA com Palestina/Israel. Entendemos que a gestão do democrata revela a semelhança com os republicanos quando o assunto é a Questão Palestina e contribui para derrubar o véu progressista que caracterizou as gestões democratas de Bill Clinton (1993-2000) e Barack Obama (2009-2016), responsáveis por alimentar ilusões de que os EUA poderiam ser verdadeiramente comprometidos com a independência da Palestina.
Política externa de Biden para o Oriente Médio e Palestina/Israel
No Grande Oriente Médio (Amineh, 2007), Biden tem mantido a estratégia de Trump de diminuir a presença militar dos EUA. A ação mais notável foi a apressada retirada das tropas do Afeganistão em 30 de agosto de 2021, mas que, na verdade, já estava estabelecida desde o governo anterior. Na Síria, poucos milhares de soldados ainda atuam contra o Estado Islâmico (EI), apoia as forças aliadas curdas, defende campos de petróleo e contribui para a defesa da fronteira com Israel. Uma série de ataques aéreos por EUA e Israel também são constantemente realizados na região.
Na campanha de 2020, Biden afirmou que a Arábia Saudita deveria ser tratada como um Estado “pária” e que seria duro com o país diante do assassinato do jornalista Jamal Khashoggi na embaixada saudita na Turquia, em 2018. O presidente estadunidense buscou reconstruir a relação com os sauditas em sua primeira viagem ao Oriente Médio em julho de 2022, com paradas na Arábia Saudita, em Israel e nos Territórios Palestinos Ocupados (TPO). Contudo, Biden não conseguiu um compromisso dos sauditas e viu a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) diminuir a produção global de petróleo, jogando os preços dos combustíveis para cima. Apesar dos EUA terem desenvolvido novas fontes energéticas, os preços de petróleo e gás continuam a pressionar a inflação global e a estabilidade socioeconômica de suas alianças europeias na guerra contra a Rússia.
Após eleito, Biden prometeu restabelecer as relações com Palestina/Israel dentro de uma suposta normalidade anterior a Trump. Os primeiros anos de sua administração se caracterizaram, no entanto, por ações meramente simbólicas em relação aos palestinos. Os EUA retomaram a contribuição, encerrada por Trump, à Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA, na sigla em inglês) no valor de US$ 150 milhões — metade do que destinava até 2018 —, essencial ao auxílio dos refugiados palestinos no combate à pandemia da covid-19.
Além disso, os democratas restabeleceram as relações com a Organização pela Libertação da Palestina (OLP), cortada pelo ex-presidente republicano, reservaram US$ 75 milhões para projetos humanitários em 2021 e deram início, em 2022, ao Middle East Partnership for Peace Act. O projeto, de 2020, destina à Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) US$ 250 milhões durante cinco anos para iniciativas de coexistência entre israelenses e palestinos. Contudo, Biden não reabriu a representação da OLP em Washington e tampouco o Consulado dos EUA em Jerusalém para tratar com a Autoridade Palestina (AP), ambos fechados por Trump, por causa da pressão exercida por Naftali Bennett, primeiro-ministro de Israel entre 2021 e 2022.
(Arquivo) O então presidente Donaldo Trump se reúne com o então premiê de Israel, Benjamin Netanyahu, no King David Hotel, em Jerusalém, em 22 de maio de 2017 (Crédito: Amos Ben Gershom/GPO/Ministério das Relações Exteriores de Israel/Flickr)
Várias solicitações dos palestinos têm sido sistematicamente negadas, como: medidas mais efetivas para impedir a presença militar israelense em áreas A da Cisjordânia, onde está presente a Autoridade Palestina; a paralisação da construção de assentamentos israelenses; a soltura de prisioneiros políticos palestinos; e acesso da AP à Allenby Bridge, que conecta a Cisjordânia à Jordânia, única via de saída dos palestinos ao exterior. Biden manteve o reconhecimento, estabelecido por Trump, da soberania israelense sobre a Jerusalém Oriental e as Colinas de Golã em contrariedade à lei internacional, e a adoção dos EUA da definição de antissemitismo da International Holocaust Remembrance Alliance, na qual críticas a Israel são entendidas como formas de racismo antijudeu.
Sob críticas de setores progressistas do Partido Democrata, Biden culpou exclusivamente o Hamas pelos bombardeios israelenses à Faixa de Gaza em maio de 2021 e defendeu o direito de Israel de se defender de forma assimétrica por meio de ataques aéreos; no mesmo mês, anunciou a venda de US$ 735 milhões em armas para Israel; doou US$ 1 bilhão para o Iron Dome, o sistema de defesa aéreo israelense, além dos US$ 38 bilhões anuais já destinados a Israel em ajuda militar; não contestou a decisão do governo israelense de enquadrar seis ONGs palestinas de direitos humanos envolvidas na luta anti-Apartheid como organizações terroristas, o que tem dificultado seu financiamento internacional; e não pressionou por uma investigação independente do assassinato da jornalista palestino-estadunidense Shireen Abu Akleh por um sniper israelense em maio de 2022.
Julgamos que os Acordos de Abraão de 2020, que normalizaram as relações de Israel com Emirados Árabes Unidos (EAU), Bahrein, Sudão e Marrocos, são fundamentais para entender essa nova conjuntura. Embora as elites árabes tenham reivindicado que a aproximação com Israel significaria um passo para a paz e de reconhecimento de um Estado palestino, o que se tem observado é o estreitamento das relações econômicas e militares com Israel em detrimento dos palestinos. Por exemplo, as relações entre Israel e Emirados Árabes Unidos têm florescido nos últimos dois anos: empresas high-tech israelenses passaram a investir no país, e milhares de turistas israelenses têm visitado Dubai; a realização de exercícios militares em Israel contou com a participação de jatos emiradenses; e, em 2022, EAU e Israel selaram um acordo de livre-comércio.
Em março de 2022, diplomatas do Egito, Marrocos, Bahrein, EAU, EUA e Israel se reuniram na Cúpula do Negev, em Israel, para discutir a possibilidade de uma aliança militar que poderia, ainda, contar com Jordânia, Arábia Saudita e Iraque. Apelidada de “Otan do Oriente Médio”, a aliança regional serviria para confrontar o Irã, mas naufragou depois do acordo entre Irã e Arábia Saudita no início de 2023 mediado pela China. De toda forma, o comércio entre Israel e as nações árabes que firmaram os Acordos de Abraão excederam US$ 2,8 bilhões em 2022, particularmente no setor militar e de cibersegurança. E, nesse momento, sem qualquer tipo de resolução da Questão Palestina, como sempre desejaram os israelenses. Enquanto isso, os palestinos ficam presos aos mecanismos de state-building erguidos em Oslo e mantidos por doações internacionais, particularmente dos EUA.
A questão Palestina/Israel na política interna dos EUA
Biden foi eleito com um amplo apoio de integrantes dos movimentos palestino, negro, indígena e do Democratic Socialists of America (DSA) envolvidos na campanha por BDS (Boicote, Desinvestimentos e Sanções) a Israel, e que almejavam uma transformação nas relações dos EUA com o Oriente Médio. Os principais fatores internos para a frustração dos setores progressistas da base democrata são o lobby israelense e o eleitorado judeu. Mearsheimer e Walt (2006, 2008) reivindicam que a razão fundamental para o apoio incondicional dos EUA a Israel seria o lobby israelense formado por grupos judeus, israelenses, evangélicos e neoconservadores que exercem influência nos corredores de Washington e na mídia estadunidense. Embora certamente este lobby tenha um papel fundamental para a forma como a aliança é construída, não é a única variável: as questões geopolíticas do Oriente Médio e a política energética dos EUA também têm grande relevância, como notamos acima.
Saiba mais: palestra sobre o lobby israelense nos EUA, com John Mearsheimer e Stephen Walt, no Center for International and Regional Studies (CIRS), em 17 jun. 2008, no Catar
Muitos relacionam o lobby israelense com grupos conservadores vinculados ao Partido Republicano, em particular o Aipac (American Israel Public Affairs Committee), que, nos anos Obama e Trump, assumiu uma posição mais ostensivamente favorável aos republicanos por causa das políticas divergentes desses presidentes ao programa nuclear iraniano. O lobby é, contudo, heterogêneo e tem, historicamente, uma ação bipartidária. Ao lado dos afro-estadunidenses, os judeus são o grupo mais simpático aos democratas do país. Aproximadamente 75% da comunidade judaica se considera democrata. A aliança entre EUA e Israel foi historicamente defendida pelos democratas com base na defesa de valores liberais e democráticos, assim como do respeito às minorias. A aproximação dos republicanos com Israel ocorreu a partir da ascensão dos neoconservadores nos anos 1980 e do fortalecimento de grupos evangélicos.
No governo Biden, o Aipac perdeu espaço para o movimento sionista liberal JStreet como o principal lobby israelense nos corredores da Casa Branca. O JStreet sustenta a manutenção da “amizade especial” entre as nações, mas que passe a ser condicional, como almejam setores mais à esquerda do Partido Democrata. A organização defende que ao menos uma parcela da ajuda militar seja destinada para a construção da paz com os palestinos. O JStreet ainda não teve, porém, sucesso algum em alterar a condição da ajuda estadunidense aos israelenses.
A força do lobby israelense decorre da representação desproporcional dos judeus sionistas no financiamento de campanhas eleitorais. Um estudo de 2015 demonstrou que os judeus doaram 50% de todo o dinheiro do Partido Democrata, e 25%, do Partido Republicano. Sheldon Adelson, o maior doador republicano em 2012 e 2016, é proprietário do maior jornal de circulação de Israel e apoiador de Netanyahu. A família Clinton tem entre os seus principais financiadores um empresário judeu, cujo objetivo é acabar com a campanha BDS. O Aipac tem atuado no financiamento a candidatos democratas e republicanos que sejam concorrentes de políticos defensores dos direitos dos palestinos. Consequentemente, se um candidato tem uma posição favorável a Israel, seja liberal ou conservador, tem maiores chances de conseguir financiamento com uma das organizações do lobby.
Dessa forma, o lobby israelense distorce na esfera representativa as opiniões observadas nas bases democratas e na comunidade judaica. De acordo com pesquisa do Jewish Electorate Institute de 2021, enquanto nenhum dos 25 parlamentares judeus têm uma posição crítica a Israel, 20% da comunidade judaica defende uma solução que acabe com o caráter judaico de Israel, e 9% são contra o direito de Israel de existir, um número que cresce para 25% entre aqueles abaixo dos 40 anos. A sondagem mostra uma crescente alienação dos judeus estadunidenses em relação a Israel, com 37% não se sentindo emocionalmente conectados ao país. Já aproximadamente 64% dos democratas têm visões mais favoráveis aos palestinos, enquanto 78% dos republicanos são mais favoráveis aos israelenses. Cerca de 61% dos jovens estadunidenses favorecem os palestinos sobre os israelenses, segundo pesquisa Pew de 2022. A administração Biden não representa, porém, as posições do seu eleitorado democrata.
Mais continuidade do que diferença entre Biden e Trump
O governo Biden para Palestina/Israel não é, propriamente, uma antítese ao de Trump. O democrata mantém as alterações fundamentais na correlação de forças entre Israel e os palestinos feitas pelo republicano, e retoma, com um status inferior, uma moderação com os palestinos. A retomada da ajuda humanitária fez o establishment palestino consentir às mudanças substanciais promovidas por Trump e que sofriam maior resistência no governo do então presidente republicano. O enfraquecimento da moderação externa liderada pelos EUA promove insatisfação e revolta entre os palestinos, empurrando-os na direção do abandono do caminho institucional defendido pelo consenso internacional. Setores crescentes da sociedade palestina têm reivindicado que o repúdio aos mecanismos de Oslo e o retorno a uma opção mais radical seriam a única possibilidade real para a libertação nacional.
Essa mudança na posição dos EUA decorre da orientação política de Biden e da síntese entre as posições contraditórias dos grupos mais favoráveis a Israel e daqueles que sustentam a ilusão da neutralidade entre israelenses e palestinos na sociedade estadunidense. Em menor medida, as mudanças geopolíticas recentes no Oriente Médio também desempenham um papel relevante. A alteração dos meios promovida por Biden é fundamental para restabelecer o papel dos EUA na manutenção da estabilidade da ocupação dos territórios palestinos que impede sua autodeterminação por meio de doações que confinam o Movimento Nacional Palestino à estratégia de state-building neoliberal como caminho para a libertação.
Isto é, a administração do democrata é fundamental para manter o poder do establishment palestino que se beneficia política e economicamente da manutenção do status quo. O real objetivo da ajuda humanitária estadunidense não é a produção da paz, mas contribuir para a pacificação da sociedade palestina diante do avanço das ambições coloniais israelenses. A radicalização das ações coloniais pela nova coalização de extrema direita israelense pode, no entanto, minar os esforços dos EUA de pacificar o conflito.
O ataque do Hamas no dia 7/10 revelou essa tendência à radicalização de setores da sociedade palestina diante do impasse com os israelenses. O apoio incondicional dos EUA à agressão desproporcional sobre a Faixa de Gaza, que já é a ofensiva mais sangrenta da história do conflito colonial entre Israel e os palestinos, confirma o argumento apresentado acima de que Biden apresenta mais continuidade do que diferenças em relação ao seu antecessor Trump.
* Bruno Huberman é professor do curso de Relações Internacionais da PUC (SP). Doutor em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP). Vice-coordenador do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI) e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os EUA (INCT-INEU). Contato: bhuberman@pucsp.br.
Reginaldo Nasser é professor Livre-docente na área de Relações Internacionais da PUC (SP) e do Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP), coordenador do GECI e pesquisador do INCT-INEU. Contato: regnasser@pucsp.br.
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