Sociedade

Da representação à ajuda humanitária: uma análise da relação Disney e Israel

Sabra luta contra “O Incrível Hulk” (Fonte: JNS)

Por Danilo Faustino*

O ano de 2023 marca os 100 anos da The Walt Disney Company, empresa que começou como uma empreitada na garagem e hoje se configura como o segundo maior grupo de mídia e entretenimento do mundo. A Disney está presente, em maior ou menor grau, em quase todos os países do mundo, desde as animações clássicas como “Branca de Neve” até o blockbuster “Vingadores”. Em um estudo produzido pela University of Southern California, em 2019, a companhia é vista como um dos maiores instrumentos de soft power para o governo dos Estados Unidos.

Não é incorreto dizer que as decisões da empresa têm impacto, quando analisamos sua presença econômica e cultural. Na política doméstica, por exemplo, a companhia vive um embate público e judicial com o governador Ron DeSantis (R-FL) motivado por visões conflitantes quanto à comunidade LGBT+ e direitos tributários sobre a área ocupada pelo Walt Disney World Resorts na Flórida. Já no campo internacional, não é raro que países não-ocidentais proíbam a transmissão de filmes produzidos pelo grupo. Alguns filmes da Marvel, por exemplo, foram banidos da China, devido às leis de cotas, e “Lightyear” não foi exibido em países do Oriente Médio por causa de uma cena de beijo entre duas personagens femininas.

The afternoon parade at the Magic Kingdom, Disney World | FlickrDisney, na Flórida, em 17 set. 2018 (Crédito: Ricky/Flickr)

Diante da escalada de violência no conflito entre Israel e Palestina, a Disney divulgou que estava doando US$ 2 milhões para “ajuda humanitária após ataques terroristas em Israel”. Aqui, vamos analisar o histórico da companhia – supostamente antissemita, conforme alguns especialistas –, o comunicado sobre a doação e a recente polêmica envolvendo a Disney e um personagem israelense da Marvel com histórico de discursos sionistas nos quadrinhos. Tudo isso para ilustrar a hipótese que orienta este breve texto: a de que a motivação para o repasse desses recursos vai além da questão humanitária.

As acusações de antissemitismo e representação

O debate sobre as posições políticas de Walter Elias Disney ressurge de tempos em tempos, tendo como principal questão a visão que Walter tinha sobre judeus. Em 2014, por exemplo, a atriz Meryl Streep acusou o criador da companhia de ser misógino e racista. Na ocasião, Meryl estava apresentando o prêmio de Melhor Atriz no National Board of Review para a atriz Emma Thompson por seu papel no filme “Walt nos Bastidores de Mary Poppins”.

Walt Disney - the Triumph of the American Imagination: Gabler, Neal:  9780679757474: Amazon.com: BooksA discussão quanto ao teor das obras da companhia teve seu início muito antes, porém, com o lançamento de “Os Três Porquinhos” (1933). Na época, relata Neal Glaber no livro Walt Disney: The Triumph of American Imagination (Vintage Books, 2006), o diretor do American Jewish Congress expressou seu descontentamento, afirmando que a representação do lobo era revoltante e uma afronta aos judeus. Além disso, Walter Disney foi membro da The Motion Picture Alliance for the Preservation of American Ideals (Aliança Cinematográfica para a Preservação dos Ideais Americanos, em tradução livre). No livro Victor Fleming: An American Movie Master (University Press of Kentucky, 2013), Michael Stragow comenta sobre o cunho anticomunista e antissemita da organização. Ao mesmo tempo, o empresário também doou dinheiro para o Hebrew Orphan Asylum of New York e outras organizações judaicas.

Uma das práticas recorrentes de animações é o design de personagens, principalmente vilões, com características que remetem a estereótipos raciais ligados à aparência física, ou a maneirismos. A vilã de “A Branca de Neve” (1933) quando está disfarçada de bruxa é mostrada com um nariz longo, corcunda e com um rosto que causa aversão em um primeiro olhar, uma representação caricata e racista do povo judeu. “Enrolados” (2010) traz uma vilã também com traços que remetem às caricaturas de pessoas judias, mas também parece se inspirar nos mitos do blood libel, alegações falsas de que os judeus roubavam crianças cristãs para fazer rituais de sangue.

Branca de Neve e a bruxa má (Fonte: Film Stories)

A aproximação com Israel

Após a compra da Marvel Studios e da Lucasfilm, a Disney se empenhou em expandir sua presença no campo do audiovisual voltado para um público consumidor de filmes blockbusters. Como resultado, seis das dez maiores bilheterias do mundo são produtos diretos da empresa. Desde 2017, no entanto, os filmes da franquia Homem-Aranha (produzidos em conjunto com a Sony Pictures) são os únicos materiais em live action sob guarda-chuva da Disney que figuraram na lista de mais assistidos em Israel. Esses números parecem indicar que a população israelense não se identifica com as produções da empresa e não está disposta a consumi-las.

File:Shira Haas 2018 3 (cropped).png - Wikimedia Commons

Atriz Shira Haas, em nov. 2018 (Fonte: Wikimedia Commons)

O anúncio em setembro de 2022 de que o filme “Capitão América: Admirável Mundo Novo” havia escalado a atriz israelense Shira Haas para viver a personagem Sabra parece ser um movimento de tentar engajar o público da nação judia. A notícia foi bem-recebida pelo público judeu que se mostrou orgulhoso em ter uma representação israelense, mas a decisão foi malvista pela maior parte de pessoas do mundo árabe e apoiadores da causa palestina.

O cerne da questão está em a personagem atuar como agente do serviço secreto israelense, conhecido como Mossad, e no nome da personagem. Sabra, para os judeus, é um adjetivo referente àqueles que nasceram em Israel, enquanto que, para os palestinos, está ligado ao Massacre de Sabra, que levou à morte de ao menos dois mil refugiados palestinos e civis libaneses.

A personagem carrega em sua caracterização símbolos marcantes de Israel, como as cores azul e branca e a estrela de Davi estampada em seu peito, além de habilidades sobre-humanas. Em sua primeira aparição ativa nos quadrinhos (“Incrível Hulk”, de número 256), Sabra é incapaz de demonstrar sentimentos pela morte de um menino palestino (que nunca é chamado assim, identificado apenas como “árabe”) até que um outro personagem a confronte.

Diante das controvérsias, a Marvel Studios (subsidiária da Disney) declarou que “os cineastas estão trazendo uma nova abordagem da personagem Sabra que foi introduzida nos quadrinhos há 40 anos” (tradução livre). Se de fato for possível trazer uma abordagem crítica à personagem, cuja origem está pautada em uma organização que sustenta um regime de Apartheid, ainda fica difícil pensar um cenário em que a maioria dos israelitas aceite que a origem da personagem e o sistema israelense sejam julgados.

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‘Foi necessário o Hulk para fazê-la ver esse garoto árabe morto como um ser humano’, diz segunda imagem do quadrinho (Fonte: blog ad aetatem)

As decisões narrativas tomadas pela Disney quanto ao filme provavelmente foram pesadas diante do desejo de se inserir de maneira mais efetiva no mercado de Israel, ou de trazer uma visão mais aceitável para o restante do mundo. Junto disso, o resultado dos eventos das últimas semanas pode colocar a empresa em uma posição de desconforto no mundo árabe e frente a grupos pró-Palestina ao redor do mundo, a depender das decisões já tomadas para o filme.

A ajuda humanitária

No comunicado divulgado no dia 12 de outubro, a Walt Disney Company anunciou que estava doando US$ 2 milhões para ajuda humanitária para Israel. É interessante analisar as escolhas de palavras e o significado financeiro do valor estipulado para as finanças da organização. De início, a empresa caracteriza como “mortais” os ataques “terroristas” do Hamas a Israel, já indicando seu posicionamento político quanto aos eventos, e diz que a ajuda humanitária será para a região. Nesse sentido, seu CEO, Robert Iger, afirma que:

Na sequência dos horríveis ataques terroristas contra judeus em Israel no fim de semana, todos devemos fazer o que pudermos para apoiar as pessoas inocentes que estão passando por tanta dor, violência e incerteza – especialmente as crianças. Condenamos estes ataques, o ódio que os motivou e todos os atos de terrorismo, e continuaremos a trabalhar para encontrar mais formas de prestar apoio à região e honrar as vítimas, suas famílias e todos os afetados por esta guerra (tradução e grifo nossos).

Apesar de Iger reconhecer que houve ódio motivando os atos do Hamas, não há qualquer menção sobre as políticas de Israel contra a Palestina. Além disso, o ato do grupo palestino é referenciado de maneira categórica como contra judeus e em Israel. Em uma análise mais atenta, podemos perceber que há uma relação de proximidade entre os “judeus em Israel” e as “pessoas inocentes”.

Bob Iger- World of Color Premiere - Disney California Adve… | Flickr(Arquivo) CEO da Disney, Robert Iger, em 10 jun. 2010 (Crédito: Josh/Hallett/ Flickr)

Os destinos da doação também foram escolhidos de forma cuidadosa. Metade do valor será entregue à Magen David Adom, organização filiada à Cruz Vermelha e ao Crescente Vermelho, que atua especificamente em Israel. A organização oferece cuidados médicos e banco de sangue no país. Já a outra parte do montante foi reservada para organizações não governamentais na região com prioridade para aquelas que dão suporte a crianças. Não há, contudo, qualquer apontamento sobre se essa dita “região” abarca a região dos Territórios Palestinos e as crianças vítimas dos bombardeios e do Apartheid.

Em paralelo, é preciso destacar que o valor de US$ 2 milhões representa aproximadamente 0,11% dos lucros operacionais dos canais domésticos (US$ 1,8 bilhão) e 0,08% do lucro operacional dos Parques, Produtos e Experiências (no terceiro trimestre deste ano). Ainda que caiba a cada empresa definir sua capacidade de contribuição para as causas escolhidas, o valor parece mais simbólico e concentrado no que podemos enxergar como uma agenda da Disney de estar junto a Israel para conquistar seu espaço.

O possível risco

Não é a Disney que vai definir as conversas ao redor do conflito entre Israel e os Territórios Palestinos, mas é a empresa que tem um sistema capaz de produzir opinião e de facilitar sua inserção em setores desejados, entre eles a política. Uma companhia presente em diversas localidades ao redor do mundo tem um alcance de maneiras múltiplas, seja pela caracterização racista de vilões, seja pelo uso de “heróis” que trabalham para regimes de Apartheid.

As escolhas narrativas da Disney, tanto por meio da Walt Disney Company, quanto de suas subsidiárias, tornam possível enxergar parte de seus objetivos. Mas surge a dúvida: como o conglomerado irá lidar com as consequências da guerra e de suas escolhas? Um cenário onde Israel sai fortalecido politicamente não se iguala a um cenário onde o movimento pró-Palestina, ou contra o Apartheid se enfraquece. Frente à possibilidade de tornar a “heroína” Sabra um símbolo de uma Israel dos tempos atuais, seria este um risco que vale a pena?

 

* Danilo Faustino é pesquisador bolsista de Iniciação Científica do INCT-INEU/OPEU (PIBIC-CNPq) e graduando em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID/UFRJ). Pesquisa cultura, cinema e educação. Contato: danilo.faustino@ufrj.br.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 18 out. 2023. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

*** Para mais informações e outras solicitações, favor entrar em contato com a assessora de Imprensa do OPEU e do INCT-INEU, editora das Newsletters OPEU e Diálogos INEU e editora de conteúdo audiovisual: Tatiana Carlotti, tcarlotti@gmail.com.

 

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