Ofensiva do Hamas é resultado de equívocos dos EUA e de Israel
Perda de terras palestinas de 1947 até 2013 (Crédito: zie rhazlin/Flickr)
Fracasso e abandono de negociações de paz e possível aproximação de Israel com Arábia Saudita podem ter deixado o grupo palestino sem opções
Por Isabelle C. Somma de Castro* [Informe OPEU]
A ofensiva promovida pelo grupo Hamas no último dia 7 de outubro é uma consequência direta da piora das condições da ocupação mais longa da história contemporânea. Políticas equivocadas e inação do governo dos EUA no conflito entre palestinos e israelenses nas últimas duas décadas também colaboraram para a recente retomada violenta da disputa.
Desde o fracasso dos Acordos de Paz de Oslo, patrocinados por Washington em 1993, as intervenções de diferentes administrações americanas se mostraram basilares para acirrar ainda mais o conflito que já se prolonga por mais de meio século. A provável adesão da Arábia Saudita aos Acordos de Abrahão, mediados pelo governo de Donald Trump, pode ter sido um dos estopins para a decisão que desencadeou a violenta reação por parte do grupo palestino.
(Arquivo) Trump; seu genro Jared Kushner; premiê de Israel, Benjamin Netanyahu, em Jerusalém, maio de 2017 (Crédito: Ministério israelense das Relações Exteriores/Flickr)
A escalada de deslizes da parte americana remonta a Oslo, que este ano completa três décadas. Na época, foi celebrado em uma famosa cerimônia nos jardins da Casa Branca como um grande passo para a paz definitiva e rendeu o prêmio Nobel da Paz para Yasser Arafat, Yitzhak Rabin e Shimon Perez. No entanto, a euforia ofuscou as ressalvas apontadas por críticos do acordo. Entre elas estavam a retirada da pauta do direito ao retorno dos palestinos expulsos de suas terras desde 1948, o status final de Jerusalém e a própria soberania dos territórios ocupados. Assuntos que deveriam ser discutidos em negociações futuras, que nunca ocorreram. O intelectual palestino Edward Said afirmou, na época, que o acordo significou a total rendição palestina e o desprezo a demandas históricas.
O advento da segunda Intifada, em 2000, deixou claro o insucesso da iniciativa e a necessidade de uma retomada urgente das negociações de paz. Mas logo ocorreram os atentados de 11 de setembro de 2001 e, nos anos subsequentes, o discurso pouco produtivo da Guerra ao Terror, em que Al Qaeda e outros grupos como Hamas e Hizbullah foram retratados da mesma forma, não contribuíram para qualquer avanço na discussão sobre o conflito. A operação de Israel em 2002 na Cisjordânia, territórios sob ocupação militar desde 1967, foram a pá de cal. Naquela ofensiva, tanto a Igreja da Natividade, importante símbolo religioso cristão, foi invadida, como o quartel-general de Arafat, símbolo político, foi sitiado.
Os EUA, por sua vez, estavam de certa maneira alheios ao que ocorria na região, pois estavam engajados na guerra do Afeganistão e, no ano seguinte, desembarcavam em um novo conflito no Iraque. O presidente George W. Bush, que havia pedido a destituição de Arafat meses antes, demorou para se pronunciar sobre o cerco à sede da Autoridade Nacional Palestina (ANP) e nada disse sobre o fim das operações militares israelenses que faziam vítimas palestinas.
A morte de Arafat em 2004, o enfraquecimento do Fatah e, por consequência, da ANP sob a liderança de Mahmud Abbas, foram fatores que contribuiriam para a ascensão do maior grupo de oposição no cenário local: o Hamas. Com sua vitória nas eleições legislativas livres realizadas na Faixa de Gaza em 2006, e o conflito com a Fatah no ano seguinte, o grupo islâmico se tornaria um importante ator. Nesse novo contexto, EUA e Israel optaram por ignorar a nova liderança e continuaram a privilegiar a desgastada e corrupta ANP sob Abbas, agora humilhada pela tomada de poder do rival em Gaza. Desde então, Israel, com a anuência dos EUA, sustenta um bloqueio total ao enclave palestino, que não permite que seus mais de 2,5 milhões tenham uma vida digna.
Sabe-se que o grupo islâmico, na lista de organizações terroristas dos EUA desde 1997, teve seus primeiros passos financiados por Israel para ser um contrapeso aos secularistas da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), especialmente da facção Fatah, liderada por Arafat. Segundo um general israelense que trabalhou na operação, Yitzhak Segev, o grupo seria uma “criação de Israel”. Tal atividade pode ter tido o sinal verde americano, que há décadas tem o país como seu principal aliado no Oriente Médio.
Os bombardeios contra Gaza promovidos por Israel em 2009, 2012 e 2014 também contaram com anuência americana. Se, por um lado, Barack Obama e Benjamin Netanyahu não tinham uma boa relação – principalmente após o americano firmar o Acordo Nuclear com o Irã, grande antagonista de Israel – por outro, também não houve nenhuma aproximação com os palestinos. O conflito teria ficado em segundo plano durante a administração Obama, devido a outros problemas vistos como mais urgentes na região, como a Guerra Civil na Síria e a Líbia.
(Arquivo) Obama entre Netanyahu e Abbas (à dir.), no Waldorf-Astoria Hotel, em Nova York, em 22 set. 2009 (Crédito: Casa Branca/Pete Souza/Flickr)
A recente ascensão da extrema direita no governo de Israel também foi um importante incentivo para uma renovada onda de ataques à Cisjordânia, outro território palestino ocupado. Colonos israelenses vêm promovendo ataques a palestinos e suas propriedades, que culminaram na destruição de parte de Huwara, na Cisjordânia, em fevereiro passado. Bezalel Smotrich, ministro das Finanças israelense e conhecido propagador de uma suposta supremacia judaica, afirmou que o povoado palestino deveria ser “destruído”. Além disso, as prisões arbitrárias, inclusive de crianças, e a restrição de movimento, devido a mais de centenas de postos de controle são comuns. Em julho passado, israelenses foram flagrados concretando poços de água que abasteciam famílias palestinas em Al Hijrah, também na Cisjordânia.
Mas o que pode ter sido o maior incentivo à opção para o ataque é a chamada “normalização”. Durante a administração de Donald Trump, foram promovidas mudanças extremamente agressivas como uma posição abertamente pró-Israel, que resultou na mudança da embaixada dos EUA de Tel Aviv para Jerusalém, o que corroborou a posição israelense de capital indivisível. Da mesma forma, Trump, através de seu genro, Jared Kushner, apadrinhou uma aproximação entre países árabes e Israel. Apelidada de “normalização”, a iniciativa levou Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão a formalizarem relações diplomáticas com o Estado judeu pela primeira vez. Essa perda do apoio de países árabes, que seguiram o que já havia sido feito por Egito e Jordânia, foi sentida pelos palestinos como um abandono. Com a provável adesão da Arábia Saudita, que há poucos dias recebeu enviados israelenses em sua capital, os palestinos sofreriam um golpe extremamente duro para suas pretensões. Bastião do mundo islâmico e importante força econômica, a Arábia Saudita é, simbolicamente, o último grande aliado palestino no mundo árabe.
Todos esses episódios, juntamente com o acirramento do cerco aos moradores de Gaza, conhecida como a maior prisão a céu aberto do mundo, colocou pressão sobre o governo do Hamas, bastante impopular, diga-se. Sem perspectivas de mudanças, com as condições locais se deteriorando, o grupo optou por uma tática que, para muitos, é suicida, por colocar toda a população de Gaza, mais uma vez, à mercê de um novo ataque israelense. E, parece que, dessa vez, com o apoio logístico de um porta-aviões e caças pelo governo do democrata Joe Biden. Outro erro que pode custar caro para os americanos.
* Isabelle C. Somma de Castro é pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (Nupri-USP). Faz parte do Grupo de Pesquisa Tríplice Fronteira e Relações Internacionais (GTF/Unila) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU). Foi Pós-Doc no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo e Visiting Scholar no Arnold A. Saltzman Institute of War and Peace Studies, Universidade de Columbia, ambas com bolsa Fapesp.
* Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 9 out. 2023. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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