Internacional

Em meio à tensão EUA-China, primeira ajuda militar a Taiwan foi anunciada no governo Biden-Harris

Bandeira de Taiwan (Crédito: Olaer/Elmer Anthony/Flickr)

Por Marcos Cordeiro Pires, Yasmim Reis e Haylana Burite* [Informe OPEU]

A relação entre Estados Unidos e China, desde a criação da República Popular, em 1949, tem sido bastante complexa. Desde então, o governo de Washinton adotou diversas abordagens, que vão desde tentar liquidar o governo do Partido Comunista Chinês (PCC) e buscar conter sua influência no Sudeste Asiático a tentar engajar o país no sistema internacional e, mais recentemente, tentar conter os avanços científicos, tecnológicos e produtivos do país por meio de uma guerra tecnológica e comercial.

Cabe lembrar que, durante a Segunda Guerra Mundial, a China era aliada dos Estados Unidos contra o expansionismo japonês na Ásia. As forças nacionalistas e comunistas estiveram na mesma trincheira com a invasão do império japonês. Finda a guerra, em que pesem os esforços do general americano George Marshall para obter uma conciliação entre os dois grupos rivais, Chiang Kai-Shek retomou o confronto contra os comunistas e acabou sendo derrotado. Em 1º de outubro de 1949, Mao Tsé-Tung proclamou a República Popular da China, o que forçou o partido Chiang Kai-Shek e suas tropas a se transferirem para Taiwan (ou Ilha de Formosa). Nesse contexto, surge o que se denominou “duas Chinas”.

Diante desse cenário, o governo estadunidense contrário ao governo comunista – instaurado na China continental – reconheceu como governo legítimo apenas Taiwan, sob administração do general Chiang. Na década de 1950, ambos os países se enfrentaram militarmente na Península da Coreia. Posteriormente, ao longo desta década, ocorreram diversas escaramuças no Estreito de Taiwan. Por conta disso, o governo de Dwight Eisenhower aprovou o Tratado de Defesa Mútua entre Estados Unidos e Taiwan, garantindo apoio militar ao governo nacionalista.

Não obstante, por conta da rivalidade entre a URSS e a RPC ocorrida nos anos 1960, os Estados Unidos enxergaram a oportunidade de iniciar sua “política de engajamento”, apoiando o ingresso do governo de Pequim no Conselho de Segurança da ONU, em 1971, substituindo a República da China (Taiwan). Esse processo se consolidou com a visita de Richard Nixon em 1972, na oportunidade em que se encontrou com o presidente Mao Tsé-Tung. As relações diplomáticas apenas foram estabelecidas em 1979, após a visita de Deng Xiaoping aos Estados Unidos, quando ele se encontrou com Jimmy Carter. Naquele momento, a expectativa da elite estadunidenses era a de integrar a RPC à ordem liberal e, simultaneamente, isolar a União Soviética no contexto da Guerra Fria (1946-1991).

Um aspecto muito importante do processo de estabelecimento de relações diplomáticas entre a RPC e os Estados Unidos foi o Comunicado Conjunto sobre o Estabelecimento de Relações Diplomáticas, datado de 1º de janeiro de 1979, pelo qual os Estados Unidos transferiram o reconhecimento diplomático de Taipei para Pequim. Os EUA reiteraram o reconhecimento do Comunicado de Xangai da posição chinesa de que existe apenas uma China e que Taiwan faz parte da China. Em contrapartida, Pequim reconheceu que o povo americano continuaria a manter contatos comerciais, culturais e outros contatos não oficiais com o povo de Taiwan. De certa forma, isso explica a irritação dos chineses, quando um oficial dos Estados Unidos se relaciona com a contraparte taiwanesa.

undefinedCinco anos após a assinatura do acordo, o então presidente dos EUA, Dwight D. Eisenhower, cumprimenta multidões em Taipei, enquanto desfila com o líder da República da China, Chiang Kai-shek (Fonte: Wikimedia/Domínio público)

Independentemente dos termos de 1979, o governo de Washington sempre utiliza a “carta de Taiwan” para constranger os dirigentes de Pequim. As vendas de armamento para Taipé não deixaram de ocorrer desde então. Porém, nenhuma das ações dos Estados Unidos estava embasada em leis, ou termos, que tratassem Taiwan como um país, exceto a mais recente.

Taiwan: aliado dos EUA, ou Estado-tampão frente à ajuda militar direta à ilha?

Em 1º de agosto, os Estados Unidos anunciaram a ajuda militar direta, por meio do Programa de Financiamento Militar Estrangeiro (Foreign Military Financing – FMF, em inglês). O anúncio foi proferido pelo representante (deputado) republicano, Mike McCaul (R-TX), responsável pela presidência do Comitê de Relações Exteriores da Câmara (House Foreign Affairs Committee Chairman, em inglês). Destaca-se que o pacote prevê um auxílio de US$ 80 milhões, um valor ínfimo frente aos bilhões de dólares envolvidos na venda de caças avançados, ou de baterias antiaéreas, nas últimas décadas. A excepcionalidade da medida, anunciada há pouco mais de um mês, tem como base a prerrogativa principal do programa de Financiamento Militar: países soberanos reconhecidos pelos EUA. Ou seja, a utilização dessa rubrica de despesa burla os termos do acordo de 1979.

Espera-se que o projeto seja aprovado, dado que há um “padrão bipartidário no que tange a China, que tem como significado a continuidade de objetivos estratégicos na política do Executivo dos Estados Unidos, mesmo com a alternância de partido no comando da Casa Branca”, segundo Rocha (2020). A justificativa da medida, conforme o deputado, consiste em que “estas armas não só ajudarão Taiwan e protegerão a postura de dissuasão dos EUA, como garantirão nossa segurança nacional frente à China”. Frente a isso, sublinha-se a necessidade de compreender o que é o programa de financiamento, assim como quais foram as reações frente ao inédito e inusitado anúncio.

O que é o Programa de Financiamento Militar Estrangeiro (FMF)?

Conforme o Departamendo de Defesa dos EUA, o FMF “é uma ferramenta crítica da política externa para promover os interesses dos EUA em todo o mundo, garantindo que os parceiros da coalizão e os governos estrangeiros amigos estejam equipados e treinados para trabalhar em prol de objetivos de segurança comuns e partilhar encargos em missões conjuntas”. Além da evidente tentativa de alinhamento de Taiwan com os EUA, o que mais chama atenção no Programa de Financiamento Militar Estrangeiro é a reorientação para defini-lo como país autônomo, soberano, o que tensiona ainda mais as relações com a China, severamente prejudicadas com a visita de Nancy Pelosi a Taiwan, em 2022.

Nessa perspectiva, o deputado Michael McCaul fez um pronunciamento demonstrando estar satisfeito com os Estados Unidos fornecerem, pela primeira vez, o auxílio FMF para Taiwan. Nas suas palavras, “essas armas não só ajudarão Taiwan e protegerão outras democracias na região, mas também fortalecerão a postura de dissuasão dos EUA e garantirão nossa segurança nacional contra um PCC (Partido Comunista Chinês) cada vez mais agressivo”.

Rep. McCaul Seeks Affirmation From Pentagon On “No Restraint” Policy On Arms Sales To Taiwan - Formosan Association for Public AffairsChina hawk: representante Michael McCaul (Crédito: USGov)

O FMF é a maior assistência militar fornecida pelo Departamento de Estado. Apesar disso, oficialmente, os EUA seguem alegando que tal ajuda militar não refletiu qualquer mudança na política estadunidense. Em resposta, o governo de Taiwan agradeceu pelo auxílio e afirmou que os EUA já têm ajudado a fortalecer as capacidades de combate de Taiwan ao abrigo das políticas e leis existentes.

Reação da China frente à crise geopolítica

Frente ao anúncio, o governo chinês reagiu negativamente à ajuda militar dos Estados Unidos à Ilha de Taiwan. Em consonância com o mencionado acima, Taiwan tem sido considerada parte do território chinês desde 1949, ainda mais quando a esmagadora maioria dos países reconhece o governo de Pequim e o princípio de “uma única China”.

Além disso, enfatiza-se que a questão entre Taiwan e a República Popular da China tem sofrido diretamente com interferências estadunidenses. É importante considerar que o problema da reunificação territorial deveria se restringir aos dois governos em questão: Taiwan e a RPC, de acordo com o Consenso de 1992, quando ambas as partes consentiram o reconhecimento único, apesar de não definirem qual seria o governo que deveria prevalecer.

Ao reagir a esta mais recente medida do governo de Washington, o Ministério da Defesa da China, por meio de seu porta-voz, Wu Qian, enfatizou que “a ajuda e as vendas militares dos Estados Unidos para Taiwan apenas alimentam o complexo militar-industrial americano e prejudicam a segurança e o bem-estar dos compatriotas de Taiwan”.

Desse modo, constata-se uma contradição no discurso oficial do governo Biden-Harris anunciado em 14 de novembro de 2022, de que “a competição (Estados Unidos-China) não deve se transformar em conflito” e que “os Estados Unidos e a China devem administrar a competição com responsabilidade e manter linhas de comunicação abertas”. Em vista do último anúncio de ajuda militar a uma nação não reconhecida como soberana, a surpresa não é do governo chinês, mas para toda a comunidade internacional que almeja uma solução pacífica para o complexo problema no Estreito de Taiwan.

 

* Marcos Cordeiro Pires é coordenador do Latino Observatory, professor de Economia Política Internacional (UNESP-Marília) e pesquisador do Instituto Nacional de Estudos dos Estados Unidos (INCT-INEU).

* Yasmim Reis é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Segurança Internacional e Defesa da Escola Superior de Guerra (PPGSID/ESG), pesquisadora colaboradora no OPEU e Vice-Líder e assistente de pesquisa voluntária no Laboratório de Simulações e Cenários na linha de pesquisa de Biodefesa e Segurança Alimentar (LSC/EGN). Contato: reisabril@gmail.com.

* Haylana Burite é graduanda em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID/UFRJ), pesquisadora bolsista de Iniciação Científica do OPEU (INCT-INEU/PIBIC-CNPq) e pesquisadora voluntária no Núcleo de Pesquisa de Geopolítica, Integração regional e Sistema Mundial (GIS/UFRJ). Contato: buritehaylana@gmail.com.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 4 set. 2023. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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