América Latina

O tráfico de fentanil e as relações EUA-México

(Arquivo) O agente especial assistente encarregado, Juan Mariscal, da Homeland Security Investigations, dá detalhes sobre a maior apreensão de fentanil na história do CBP, Port of Nogales, em 31 jan. 2019 (Crédito: CBP/Jerry Glaser/Flickr)

Por Beatriz Zanin de Moraes, Thais Caroline A. Lacerda e Marcos Cordeiro Pires, para Latino Observatory* [Republicação]

O tráfico de fentanil, uma droga sintética extremamente potente e letal, tornou-se um dos principais desafios na política de controle às drogas dos Estados Unidos nos últimos anos. De acordo com os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) no país, o fentanil é responsável por mais de dois terços das mais de 100.000 mortes por overdose de opioides registradas em 2022 — número maior do que os registrados nas guerras do Vietnã, Coreia, Iraque e Afeganistão juntos. Destaca-se que quase 14.000 libras de fentanil (mais de 6 toneladas) foram apreendidas entre outubro e março de 2022, quase o total do ano fiscal do período.

A maioria das pessoas condenadas por tráfico de fentanil entre 2018 e 2021 eram cidadãos americanos, e não mexicanos, ou latino-americanos requerentes de asilo, como supõe o senso comum. Autoridades estadunidenses afirmam que o fentanil vendido nos Estados Unidos é fabricado no México com precursores químicos importados da China. Uma pesquisa publicada na The Lancet da “Stanford–Lancet Commission”, sobre a epidemia de opioides na América do Norte, sugere que mais 1,2 milhão de pessoas podem vir a óbito até 2029 por overdose por fentanil, cuja letalidade é 200% maior do que a da heroína.

De acordo com o governo dos Estados Unidos, grupos narcotraficantes mexicanos, principalmente o Cartel de Sinaloa e o Cartel Jalisco Nueva Generación (CJNG), obtêm fentanil, análogos e precursores da China, e estes são sintetizados no México. Em alguns casos, eles traficam fentanil como produto final para os Estados Unidos em uma forma não adulterada; em outros casos, eles misturam-no com outras substâncias e transformam-no em pílulas. Destaca-se que os cartéis mexicanos contratam predominantemente cidadãos americanos para contrabandear drogas através da fronteira. Como supracitado, cidadãos dos EUA representam mais de 85% dos condenados por acusações de fentanil.

Opioides como o fentanil são frequentemente escondidos em compartimentos ocultos de veículos dirigidos por cidadãos estadunidenses com placas americanas. Ainda segundo o parecer publicado pela Brookings Institution, os traficantes escondem extensivamente fentanil e outras drogas dentro da carga legal que entra nos Estados Unidos por portas de entrada legais, o que representa 90% das apreensões. “Um desenvolvimento recente altamente pernicioso é o estabelecimento de farmácias no México, particularmente nas principais áreas turísticas internacionais, que vendem drogas e outras substâncias psicoativas com fentanil e outros medicamentos controlados sem a obtenção de receita médica. Provavelmente ligadas aos principais cartéis mexicanos, essas farmácias aumentam significativamente os perigos do tráfico de fentanil, bem como aumentam as ameaças à saúde pública, segurança e economia globais”.

Apesar dos esforços para aumentar as inspeções nos portos de entrada, a “Agência de Alfândega e Proteção de Fronteiras” (CBP) dos EUA consegue inspecionar apenas alguns dos veículos que entram no país. Novas tecnologias de varredura introduzidas nas portas de entrada autorizadas pelo governo Biden pretendem aumentar significativamente a porcentagem de veículos inspecionados. Porém, mesmo com as antigas técnicas, apenas nos primeiros dois meses da campanha intensificada para impedir a entrada do fentanil via fronteira, mais de 10.000 libras (mais de 4 toneladas) do opioide foram apreendidas pela CBP e pelo Departamento de Segurança Interna DHS), quando 284 pessoas foram presas, de acordo com um comunicado de junho, acerca da Operação Blue Lotus. Ainda de acordo com a DHS, a próxima fase da estratégia buscará perseguir membros de alto escalão de cartéis que traficam fentanil, aumentando o aparato investigativo e utilizando contabilidade forense para rastrear criptomoedas usadas para comprar produtos químicos precursores.

031 CBP Officers Seize Largest Amount of Fentanyl in CBP H… | Flickr(Arquivo) Agentes do CBP apreendem maior quantidade de fentanil na história dessa agência, em 31 jan. 2019 (Crédito: US CBP/Flickr)

Por outro lado, conforme relatório da especialista em tráfico de drogas e membro sênior da Brookings Institution, Vanda Felbab-Brown, há complexas conexões entre o comércio ilegal de drogas, o tráfico de madeira e as espécies de vida selvagem do México para a China, que supostamente estariam conectados. Segundo ela, os cartéis mexicanos estão envolvidos na exploração madeireira, pesca e outros setores agrícolas, e estão expandindo seu papel para controlar a cadeia de abastecimento em várias indústrias legais. Além de extorsão, esses grupos criminosos ditam a quantidade de pesca permitida, controlam a venda de peixes para restaurantes e até mesmo influenciam os preços. Eles também forçam as fábricas de processamento a emitirem certificados falsos de origem legal para exportação para EUA e China, e até mesmo obrigam pescadores a contrabandear drogas.

Apesar das acusações do governo estadunidense, a embaixada da China no México refutou veementemente que os precursores químicos usados ​​pelos cartéis mexicanos para produzir o opioide fentanil vêm da China. De acordo com a Reuters, a embaixada afirmou em um comunicado que a China tinha medidas em vigor para prevenir o tráfico de substâncias utilizadas para fabricar drogas ilegais e acrescentou que os EUA estavam “se esquivando cegamente às suas responsabilidades”, ao não tomarem medidas internas para enfrentar o problema.

É importante considerar que a conexão entre grupos criminosos mexicanos e o comércio ilegal não se limita ao México. Eles estão se expandindo para a pesca ilegal fora do país, contribuindo para o tráfico de drogas. Neste contexto, o governo mexicano é criticado pela extrema direita por sua abordagem de “abraços, não balas”, que prioriza programas socioeconômicos em detrimento das políticas de segurança e aplicação da lei contra os grupos criminosos. A reorganização das instituições de segurança mexicanas sob a administração Andrés Manuel López Obrador também é criticada, observando que a criação da Guarda Nacional não substitui adequadamente a Polícia Federal em termos de capacidades investigativas.

Outro aspecto importante, conforme a mesma análise, trata da deterioração da cooperação entre México e Estados Unidos em relação aos esforços de combate ao narcotráfico. A pesquisadora destaca como essa falta de cooperação afeta a segurança nacional e internacional, e como as ações do governo mexicano, sob a administração de López Obrador, têm enfraquecido os esforços antinarcóticos conjuntos. Ao fazer críticas contumazes ao governo mexicano, a análise observa os paralelos entre a China e o México em termos de cooperação antinarcóticos com os EUA, alegando que a colaboração do México está sendo comprometida. Afirma que o esvaziamento da cooperação antinarcóticos é parte de uma falta geral de política de segurança na administração de López Obrador, mas que a situação vai além disso. A situação é vista como uma rejeição da cooperação bilateral de duas décadas entre os EUA e o México na responsabilidade compartilhada pela produção, tráfico e consumo de drogas.

A administração López Obrador também é criticada pelo governo de Washington por supostamente enfraquecer, de forma sistemática, a colaboração antinarcóticos desde o início de seu mandato, buscando se retirar da “Iniciativa Mérida” e limitar a colaboração aos elementos que lhe interessam. Menciona também como a prisão e posterior libertação do ex-secretário de Defesa mexicano por cooperação com um cartel de drogas mexicano levou a uma ameaça de encerrar a cooperação com os EUA.

Embora tenham ocorrido algumas melhorias recentes, como o reconhecimento de que o fentanil é produzido no México, a análise da Brookings enfatiza que a colaboração continua insuficiente e que o México não compartilha adequadamente informações sobre apreensões e laboratórios de drogas. Mesmo quando laboratórios são desmantelados, há poucas consequências significativas para os traficantes, permitindo que eles se recuperem rapidamente.

O governo mexicano de López Obrador alega, por sua vez, que o número de laboratórios tem diminuído. Entretanto, dados analisados pela Reuters dos documentos encontrados entre uma coleção de milhões de e-mails tornados públicos no ano passado, que eram mantidos pelas Forças Armadas, mostram que os números de apreensões estão muito acima dos informados pelo governo. Segundo a agência de notícias, o Exército mexicano, “em resposta a um pedido de liberdade de informação em fevereiro, afirma agora ter apreendido 635 laboratórios de drogas sintéticas durante 2019, 2020 e 2021 – os primeiros três anos da administração de López Obrador – acima das 104 apreensões que havia relatado anteriormente pelo mesmo período”.

No geral, a possível diminuição da cooperação entre México e Estados Unidos na aplicação da lei nessas questões enfraqueceu consideravelmente durante a administração López Obrador e Joe Biden, tendo consequências significativas para o combate ao narcotráfico e à criminalidade relacionada.

Durante as negociações planejadas entre autoridades dos EUA e México sobre a crise do fentanil, em março deste ano, a notícia de um sequestro de quatro americanos no México por membros de um cartel de drogas se espalhou. Dois dos sequestrados foram mortos a tiros, enquanto os outros foram resgatados rapidamente pelas autoridades mexicanas com assistência dos EUA. Mesmo após esse incidente, os funcionários do governo Biden esperavam obter algum progresso nas negociações sobre a crise do fentanil com o México. No entanto, o presidente do México interveio ao apresentar uma declaração pública, afirmando que o fentanil é um problema da América, sugerindo que os EUA eram os únicos responsáveis, e ainda fez declarações de que nenhuma droga perigosa é produzida no México, culpando a crise de overdose nos EUA pela “decadência social” da sociedade americana.

Em particular, as autoridades dos EUA dizem que, em seus comentários sobre o fentanil, López Obrador estava reagindo às críticas de legisladores republicanos que pediam uma ação militar contra os narcotraficantes no México, propondo designar os cartéis de drogas como organizações terroristas. Nesse sentido, importantes legisladores republicanos criticaram o governo Biden pelo que caracterizam como uma “política fraca para a fronteira sul”. Eles pressionam a Casa Branca a intensificar seus esforços para combater o tráfico de fentanil e reclamaram que o governo não está mantendo o Congresso informado de forma proativa sobre as atividades realizadas nesse sentido.

Em resposta, a Casa Branca divulgou uma ficha informativa, descrevendo como está priorizando a repressão ao tráfico de fentanil, divulgando que as autoridades dos EUA apreenderam mais de 26.000 libras (quase 12 toneladas) de fentanil no ano passado (2022) e que o Departamento do Tesouro dos EUA aplicou sanções a quase 100 indivíduos e entidades por seus papéis no comércio ilícito de drogas. Um porta-voz da Drug Enforcement Administration, divulgou que os EUA aguardam a extradição de 232 réus americanos condenados por envolvimento com o fentanil no México. O governo Biden informou que se opõe à designação de terrorismo, mas que não se opõe a expandir as autoridades legais no território mexicano para perseguir os cartéis.

Dan Restrepo, ex-assessor do ex-presidente Barack Obama para assuntos latino-americanos e membro sênior do Center for American Progress, falou sobre o contexto em uma entrevista à National Public Radio. Ele afirma que não há um único culpado e que a responsabilidade está em ambos os lados da fronteira. É fato que existem partes com interesse especial no México, e o governo dos Estados Unidos precisa tratar com a devida atenção para uma política dura, mas justa. Afirmou ainda que os conflitos políticos não podem atrapalhar uma boa tomada de decisão. Para a pesquisadora Felbab-Brown, há a necessidade urgente de os Estados Unidos reforçarem suas medidas de combate ao tráfico de drogas, especialmente o fentanil, e propõe uma abordagem mais ampla e colaborativa para enfrentar as atividades dos cartéis de drogas mexicanos e outros grupos criminosos. Ela enfatiza a importância de não apenas focar nas apreensões de drogas perto da fonte, mas também de combater outras atividades ilícitas e lícitas das organizações criminosas.

Dan Restrepo | Dan Restrepo, Senior Director for the Western… | Flickr(Arquivo) Dan Restrepo, em 11 abr. 2011 (Crédito: NDN/Flickr)

No mencionado relatório, a pesquisadora menciona que a administração Biden já tomou medidas para intensificar as ações policiais dos EUA contra o tráfico de fentanil, como a “Operação Blue Lotus”, mas argumenta que é necessário intensificar ainda mais esses esforços. Ela sugere que a abordagem deve ser ampliada para combater atividades relacionadas ao contrabando de drogas, como a caça furtiva e o tráfico de vida selvagem, a exploração madeireira e mineração ilegal, e a pesca ilegal. Também destaca a importância de envolver uma variedade de agências governamentais dos EUA, incluindo agências de Inteligência, Departamento de Estado, Departamento de Defesa e Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos EUA (USFWS), para uma abordagem coordenada e abrangente. Também aborda a necessidade de cooperação entre os governos chinês e mexicano, embora reconheça que essa cooperação pode ser desafiadora em um ambiente geopolítico complexo.

Vale lembrar que o crime organizado atua em diversas atividades ilícitas, tal como se viu recentemente na Amazônia brasileira, em que o tráfico de drogas se confunde com a mineração ilegal de ouro, com a pesca ilegal, com a exploração ilegal de madeiras e com o tráfico de pessoas. Nesse aspecto, parece que a tática de atacar apenas o tráfico de drogas é insuficiente para fazer frente a esse enorme desafio.

 

*  Beatriz Zanin de Moraes é bolsista de Iniciação Científica e graduanda em Relações Internacionais pela UNESP de Marília. Contato: beatrizzm2@gmail.com. Thaís Caroline Lacerda é coordenadora do Latino Observatory e doutora em Ciências Sociais (Unesp-Marília). Contato: latinobservatory@latinobservatory.org. Marcos Cordeiro Pires é coordenador do Latino Observatory, professor de Economia Política Internacional (Unesp-Marília) e pesquisador do Instituto Nacional de Estudos dos Estados Unidos (INCT-INEU).  Contato: latinobservatory@latinobservatory.org.

** Publicado originalmente no site Latino Observatory, em 27 ago. 2023. Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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