A Guerra na Ucrânia e o Governo Biden (VI)
Crédito: Ministério da Defesa da Ucrânia/Flickr cc
Por Sebastião Velasco e Cruz*
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“As long as it takes” (“pelo tempo que for preciso”).
Joseph Biden concluiu o discurso que proferiu em Kiev, na comemoração do primeiro aniversário de resistência contra a invasão russa, com esta frase de efeito que desde então vem sendo repetida ritualmente, como expressão do compromisso inabalável dos Estados Unidos com a causa ucraniana. No entanto, basta refletir um segundo para perceber que a fórmula altissonante não poderia ser mais vaga.
For preciso para quê? E para quem este quê será necessário?
Preciso, supostamente, para repelir a agressão e derrotar o ofensor. Mas qual o referente exato do substantivo neste caso? A agressão que se deu em 24 de fevereiro de 2022? Ou oito anos antes, quando a Crimeia se declarou independente e foi logo a seguir anexada pela Rússia?
Necessário para o país invadido, certamente. Mas os ucranianos se batem por um direito, não por um pedaço de terra. A agressão de que foram vítimas violenta o sistema de normas no contexto do qual este direito existe como princípio basilar. Nesse sentido, o significado de sua luta é universal. Os ucranianos estão na linha de frente, mas não estão sós. A guerra não é apenas sua, ela diz respeito a todos nós.
Não se trata de mera retórica. A pronta reação Ocidental à intervenção militar russa, as sanções econômicas sem precedentes, a ajuda militar muitas vezes bilionárias, a mobilização de recursos intangíveis – sob a forma de treinamento, Inteligência, apoio logísticos e cibernético –, tudo isso mais a guerra de informação e propaganda, já há muito lançada quando do início das hostilidades, mostram claramente que a disputa no terreno é apenas uma das frentes de uma guerra a envolver muitos atores, travada simultaneamente em muitos lugares.
O reconhecimento desta realidade óbvia e orgulhosamente assumida satisfaz os envolvidos, mas elimina qualquer resposta simples às perguntas levantadas. Se muitos participam da guerra, a definição dos fins e dos meios adequados para alcançá-los será coletiva e, nela, a voz do mais forte sempre pesará mais.
Vimos, na introdução deste artigo, que a voz do governo estadunidense nem sempre foi muito afinada. Vimos também que nem sempre ela soou em uníssono com a voz ansiosa do governo da Ucrânia.
Depois de um percurso longo, esta parte final será dedicada a um exame um pouco mais atento da conduta do governo Biden no decorrer do conflito.
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Da crise internacional à Guerra.
Se sabiam que iriam invadir, por que não fizeram nada para evitá-lo?
A pergunta amarga é feita por Volodymyr Ischenko, pesquisador ucraniano de esquerda, quase ao fim de uma longa e dolorosa entrevista sobre a tragédia que se abateu sobre o seu país[1]. Haveria dois caminhos para desescalar a crise e preparar o terreno para a volta da (relativa) normalidade. A via da dissuasão (contramobilização de meios de violência de magnitude tal que implicasse a alteração nos valores sopesados nos cálculos estratégicos do agressor, levando-o a uma correção de rumos), ou aquela da negociação séria, o que implicaria levar em conta os requisitos de segurança externa da Rússia – e, na verdade, uma inflexão profunda na política do Estado americano para a Ucrânia e para a região.
Pesquisador Volodymyr Ischenk (Fonte: Esquerda online)
O comportamento dos Estados Unidos durante a guerra do Yom Kippur, em 1973, ilustra bem a primeira alternativa. Os dois campos beligerantes sendo apoiados política e militarmente pelas duas superpotências, quando o Exército israelense, então prevalente no campo de batalha, deu indicações de que iria destroçar as forças egípcias no Sinai, a União Soviética ameaçou intervir diretamente no conflito. Nestas circunstâncias, produzidas no ápice da crise política que levaria à renúncia de Richard Nixon, Henry Kissinger, então no exercício do cargo de secretário de Estado, decretou um alerta global que fez o mundo reviver o pesadelo da hecatombe nuclear pela primeira e última vez, desde a crise dos mísseis em 1961. A solução dessa feita foi mais rápida. Afastada a hipótese de envio de tropas soviéticas, Kissinger mediou o acerto que assegurou o cessar-fogo e abriu o caminho para os Acordos de Camp Davis, em 1978, entre Israel e Egito.
Nada remotamente parecido se deu no final de 2021 e nos dois primeiros meses de 2022. O que se viu então foi um lance canhestro de diplomacia pública, por meio do qual os Estados Unidos revelavam a seus aliados e ao mundo que a Rússia estava ultimando os preparativos para invadir a Ucrânia, prometendo puni-la com sanções econômicas de rigor sem precedentes. Ao mesmo tempo, operavam um deslocamento modesto de tropas para países vizinhos (Romênia e Polônia), mas se apressavam em assegurar que estava descartado o enfrentamento militar com a Rússia.
Quanto à via diplomática, ela se limitou a três conversas telefônicas entre Biden e Putin, além de encontros inócuos entre altos funcionários de seus governos. Em dado momento, a Rússia produziu duas minutas de documentos jurídicos – um endereçado aos Estados Unidos[2]; outro, aos membros da OTAN[3] –, cujas cláusulas davam forma às suas pretensões mais ousadas. Estes textos foram, contudo, desqualificados como instrumentos de propaganda, ou como mera encenação. Não houve nenhuma tentativa de testar a disposição da Rússia de negociar uma solução aceitável para o conflito que se arrastava há anos, abrindo a discussão sobre alguns dos pontos suscitados, a começar pelo relacionamento da Ucrânia com a OTAN. A despeito da ameaça de guerra, a posição proclamada do governo americano a este respeito mantinha-se inalterada: reitera-se o apoio à política de “portas abertas” da OTAN e o direito da Ucrânia de decidir sobre sua defesa, no exercício pleno de sua soberania.
Embora sensível ao estado da opinião pública americana e beneficiada pelo apoio bipartidário, a autocontenção do governo Biden ao excluir de antemão a hipótese de resposta bélica à Rússia não passou sem críticas. Para o analista e ex-funcionário do Departamento de Defesa Ian Brzezinski (foto ao lado), que porta o sobrenome do seu ilustre progenitor, Biden teria diluído sua “fonte de alavancagem mais importante nesta crise”. A seu ver, Biden deveria considerar, como elemento de dissuasão, o envio de tropas ao oeste da Ucrânia. Juízo similar foi emitido por Evelyn N. Farkas – que trabalhou no Departamento de Defesa durante o governo Obama – em artigo publicado em janeiro de 2022, no qual defende a preparação dos Estados Unidos para a guerra com a Rússia pela Ucrânia[4].
Esta crítica ao comportamento do governo Biden na crise internacional pode parecer ingênua. Para alguns, sob a exaltação das denúncias, das ameaças e dos protestos indignados, estaríamos assistindo à encenação de um script há muito traçado, cujo objetivo seria o de atrair a Rússia para uma guerra desastrosa que seria “o seu segundo Afeganistão” – antessala de uma operação de mudança de regime há muito arquitetada nos escritórios de Washington[5].
Esta interpretação me parece implausível. Não porque a mudança de regime fosse estranha aos desejos e aos cálculos dos planejadores estratégicos americanos, mas porque ela implica admitir que estes desconheciam as diferenças abissais entre Ucrânia e Afeganistão, com suas consequências prováveis para o curso do conflito – em vez de uma guerra assimétrica, longa e desgastante como os próprios Estados Unidos iriam experimentar, no mesmo local, duas décadas depois, uma guerra convencional de alta intensidade com impacto imediato sobre os países vizinhos. Uma guerra para a qual nem os EUA nem seus aliados europeus estavam devidamente preparados.
Pista mais esclarecedora para a compreensão da postura do governo Biden diante da crise encontramos na resposta dada pelo conselheiro de Segurança Nacional, Jake Sullivan, à pergunta sobre os próximos movimentos da Rússia, em entrevista publicada cerca de um mês antes da invasão da Ucrânia.
“Well, I’ll let Moscow speak for itself. I can only speak for the United States. And for the United States, we’re ready either way. We’re ready if Russia wants to move forward with diplomacy, and we put some ideas and proposals on the table for their consideration, and we’re prepared to continue discussions about those. But if Russia wants to go down the path of invasion and escalation, we’re ready for that too, with a robust response in coordination with our allies and partners”[6].
O que chama a atenção do leitor na fala do conselheiro de Biden é a sua aparente indiferença entre as duas pontas da disjuntiva que se apresentava para o mundo naquele instante. Diplomacia, ou guerra, tanto faz, estamos preparados para ambas as circunstâncias. Pelo que se pode depreender dos depoimentos publicados pela revista Politico em dossiê preparado para marcar o primeiro ano da guerra, a esta altura, a equipe de Biden já estava convencida de que Putin havia decidido invadir a Ucrânia. Considere-se, por exemplo, a afirmativa da subsecretária de Assuntos Políticos do Departamento de Estado, Victoria Nuland: “Frankly, we didn’t have a good sense of exactly when they would move. We thought it could be anywhere from the last week of January to the last week of February.” Ou o relato de William Burns, ex-embaixador em Moscou, nomeado por Biden para dirigir a CIA:
“I saw Zelensky in the middle of January to lay out the most recent intelligence we had about Russian planning for the invasion, which by that point had sharpened its focus to come straight across the Belarus frontier — just a relatively short drive from Kyiv — to take Kyiv, decapitate the regime and establish a pro-Russian government there. With some fair amount of detail, including, for example, the Russian intent to seize an airport northwest of Kyiv called Hostomel, and use that as a platform to bring in airborne forces as well to accelerate the seizure of Kyiv”[7].
(Arquivo) William Burns, no encontro anual do Fórum Econômico Mundial em Davos, em 22 jan. 2019 (Crédito: Fórum Econômico Mundial/Ciaran McCrickard)
A fala de Sullivan expressa bem a atitude do governo Biden face à invasão iminente. Não houve nenhuma tentativa de impedi-la, o que demandaria disposição de fazer concessões sérias, ou de assumir riscos elevados. A inexistência desta é reconhecida com sinceridade incomum neste comentário feito no calor dos acontecimentos por Willian Klein, membro associado do Center for Strategic and International Studies.
“The basic truth is that Vladimir Putin was prepared to go to war to advance his interests in Ukraine, whereas the Western countries, including the United States […] did not have an interest in going to war with Russia themselves over Ukraine” “That’s a basic imbalance in the interests”[8].
Mas, sendo assim, para entender a conduta dos Estados Unidos na crise internacional e logo a seguir na guerra, devemos desviar os olhos do conflito na Ucrânia para contemplar a concepção estratégica no corpo da qual os interesses nacionais neste caso em particular são definidos.
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A Ucrânia no quadrilátero da crise.
A forma mais simples de começar a fazer isso é seguir na leitura da entrevista antes citada de Jake Sullivan. Com efeito, depois de passar em revista diferentes temas pontuais de política externa, a entrevistadora levanta a questão que fornece o título à matéria:
“What do you see as being the throughline between all of the major foreign-policy initiatives that the administration has undertaken so far? What are the ideas or ambitions that underpin this administration’s foreign policy?”.
Confortável em seu papel de explicador, Sullivan (foto abaixo) expõe telegraficamente as ideias norteadoras da “doutrina Biden”. Os dois pilares que a sustentam são, de um lado, a prioridade conferida à tarefa de restaurar os laços com os aliados e parceiros – indispensáveis para enfrentar os desafios dramáticos de nosso tempo (clima, epidemia, proliferação nuclear, igualdade econômica); de outro, a convicção de que a fonte do poder americano no mundo reside no vigor de sua sociedade, da qual deriva o reconhecimento da relação intrínseca entre política externa e doméstica.
“it matters profoundly to the lives of the American people, whether it’s things like the global minimum tax or managing the supply chain crisis or dealing with climate or dealing with Chinese economic coercion”[9].
Não há nada de novo na afirmativa sobre a comunhão profunda entre política interna e externa. Como vimos no início deste estudo, um dos antecessores de Sullivan no cargo que ora ele ocupa chegou a falar em “evaporação da linha” entre as duas políticas. Mas entre a fala de Anthony Lake, conselheiro de Segurança Nacional de Clinton, e a do assessor de Biden há uma diferença notável. Vitoriosos na Guerra Fria, imbuídos de autoconfiança, nos anos 1990s do século passado os Estados Unidos se viam – e eram vistos! – então como um poder incontrastável. Nesse contexto, a tese da correspondência entre política externa e interna servia como justificativa para o investimento na tarefa de reformar o mundo, nos planos econômico, social e político, segundo o seu figurino. Trinta anos depois, os Estados Unidos projetam a imagem de uma sociedade fraturada e assistem com ansiedade crescente à ascensão de uma potência que ameaça desalojá-los da condição hegemônica que até bem pouco tempo atrás tinham como sua, por direito natural. A fórmula é a mesma, mas agora o seu sentido é inverso: ela serve para exaltar um programa de reconstrução nacional que nega explicitamente alguns dos pressupostos do modelo econômico que por décadas os Estados Unidos propagaram como universal.
As linhas mestras deste projeto são conhecidas: investimento pesado em infraestrutura; reindustrialização; redesenho das cadeias produtivas; desenvolvimento científico-tecnológico; política industrial (com enfoque setorial e uso extensivo de subsídios); Alexander Hamilton no lugar de Milton Friedman e Friedrich Hayek.
Esta reorientação já estava traçada durante a campanha de 2020. O que Sullivan e o próprio Biden dizem hoje a respeito do programa econômico e social do governo e sobre suas conexões com a política externa segue de perto o roteiro elaborado pelo grupo de trabalho criado pela Carnegie, que tinha o futuro Conselheiro de Segurança Nacional entre seus integrantes. Centrado na ideia de instituir os interesses da classe média como fundamento da política exterior dos Estados Unidos, chama a atenção do leitor o espaço muito desigual que este documento dedica à Rússia (4 referências) e à China (86, incluídas 12 referências na bibliografia citada)[10].
Evento sobre o relatório “Uma política externa dos EUA para a classe média” elaborado pelo think tank Carnegie Endowment for International Peace, em 26 out. 2020, disponível no canal institucional no YouTube
É que a reestruturação do capitalismo americano – e por tabela da economia mundial – que o governo Biden propõe é parte de uma grande estratégia de restauração hegemônica, cujo fundamento é assumidamente geopolítico. As medidas restritivas ao comércio de produtos de alta tecnologia com a China (equipamentos para a produção de chips de última geração, por exemplo) são indicativos desse fato. Trata-se de deter o avanço da potência rival em setores essenciais para o êxito na competição econômica e militar. Este é o elemento geopolítico na face tecnológica da estratégia. A outra face – tão ou mais importante – são os preparativos para a eventualidade do confronto armado com a China, que muitos nos Estados Unidos dão como certa: aumento significativo do orçamento de defesa; corrida armamentista; reforço das existentes e estabelecimento de alianças novas com vistas à formação de uma rede em torno da China, capaz, em caso de guerra, de inibir-lhe os movimentos.
Ora, no desenho dessa grande estratégia a Rússia ocupa um lugar importante, mas nitidamente secundário. A atenção modesta que ela recebe no relatório da Carnegie antes referido já evidenciava este fato, que é explicitamente reconhecido na Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos. Em debate desde o primeiro ano do governo Biden, este documento – que deve ser renovado periodicamente, por força de lei – foi publicado em 2022, no auge da guerra na Ucrânia. Em tais circunstâncias, o destaque conferido à Rússia não surpreende, mas a diferença entre o desafio que ela representa para a “ordem internacional baseada em regras” forjada e garantida pelos Estados Unidos e aquele criado pela China é explicitamente assinalado em seu texto.
“Russia and the PRC pose different challenges. Russia poses an immediate threat to the free and open international system, recklessly flouting the basic laws of the international order today, as its brutal war of aggression against Ukraine has shown. The PRC, by contrast, is the only competitor with both the intent to reshape the international order and, increasingly, the economic, diplomatic, military, and technological power to advance that objective”[11].
A estratégia, ensinava Clausewitz, é o emprego dos combates para os propósitos da guerra. Creio não exagerar ao dizer que há um grande consenso na comunidade de política exterior dos Estados Unidos sobre a hierarquia dos desafios levantados pela Rússia e pela China. Deixando de lado a crítica anti-imperialista de esquerda e a posição periférica dos que defendem a acomodação dos Estados Unidos à multipolaridade, o debate estratégico aberto pela crise na Ucrânia gira em torno da questão sobre como ela se inscreve na ordem de combates a enfrentar nos dois “teatros de operações” onde a disputa pelo poder mundial está sendo travada.
Para um segmento do establishment da política exterior, os Estados Unidos devem se preparar para o enfrentamento militar simultâneo dos dois contendores – a Rússia e a China. Os partidários deste ponto de vista acreditam que os Estados Unidos mantêm, apesar de tudo, sua condição unipolar, e precisam se valer de sua superioridade presente para deter os desafiantes, antes que seja tarde demais[12].
Opinião próxima é sustentada por quem vê na guerra da Ucrânia a oportunidade de alterar significativamente a correlação de forças em escala mundial, impondo uma derrota militar catastrófica à Rússia que leve, no limite, ao desmembramento de seu território. Sem o concurso de sua grande aliada, a China estaria sobremaneira enfraquecida, não tendo como resistir ao cerco contra ela armado pelos Estados Unidos e aliados[13].
Diferentes no sequenciamento das ações previstas, ambas as posições coincidem na definição maximalista dos objetivos desta guerra particular, que deve ser vista como um episódio da “guerra” maior e multidimensional em curso presentemente no mundo. Não há espaço para paz negociada na Ucrânia, que só terminará com a expulsão da Rússia do território internacionalmente reconhecido do país – aí incluída a Crimeia. Os Estados Unidos devem subscrever os objetivos maximalistas verbalizados pela liderança ucraniana e lhe assegurar os meios necessários para realizá-los, ainda que ao custo de uma escalada, com sua implicação obrigada: a propagação do conflito e o envolvimento direto nele das forças da OTAN[14].
Secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, e as bandeiras da aliança atlântica e da Ucrânia (Crédito: OTAN/Flickr cc)
Orientação oposta adotam os analistas que, desde a abertura das hostilidades, vêm insistindo na obviedade de que a maioria das guerras termina na mesa de negociações e de que, na Ucrânia, nenhum dos lados será plenamente exitoso em suas pretensões. Alguns dos representantes desta posição defendem há muito tempo uma política tendente a mitigar tensões no relacionamento com a Rússia, ou pelo menos a não agravá-las, e um deles esteve entre os membros da equipe de Clinton críticos da política de expansão da OTAN[15]. Preocupados com o risco de escalada, alguns deles são sensíveis também ao impacto no médio prazo da guerra sobre as condições internas nos países afetados, em particular na Europa, onde a deterioração das condições econômicas e sociais tende a reforçar a extrema direita[16].
Fazendo-se ouvir desde o início do conflito, completado o seu primeiro ano os defensores desta posição passam a detalhar mais as suas propostas, que divergem neste ou naquele aspecto, mas coincidem na tentativa de restabelecer a curto prazo as condições para a normalidade possível – um estado de coisas aceitável do ponto de vista russo, que inclua fortes garantias de segurança para a Ucrânia e condições favoráveis à sua reconstrução[17]. Esta visão comum sobre o estado final não exclui diferenças táticas em relação ao que fazer enquanto o momento da negociação não chega. Nesse sentido, dois dos mais destacados representantes deste campo defenderam o fornecimento de caças F16 mísseis de longo alcance para a Ucrânia como forma de garantir que ela chegaria em posição de força à mesa de negociação[18].
Entre as várias razões para a insistência em uma solução negociada para o conflito na Ucrânia está a avaliação de que o estabelecimento de um modus vivendi com a Rússia é necessário para que os Estados Unidos possam concentrar esforços no que é mais importante: a competição com a China.
Curiosamente, em alguns aspectos a posição desses analistas – inseridos no campo liberal – converge com aquela, muito mais contundente, da direita populista republicana. Mais ou menos alinhados com Donald Trump – ele mesmo um crítico severo da guerra –, os representantes desta corrente de opinião, como o comunicador Tucker Carlson, ou os senadores Josh Hawley e J. D. Vance, contestam o alegado interesse nacional americano no conflito, acusam a política oficial de desviar a atenção do verdadeiro inimigo, a China, e a responsabilizam por produzir uma situação passível de descambar muito facilmente para uma guerra mundial[19].
Mais conhecido por suas expressões na arena política, este ponto de vista surge também no debate estratégico, onde é vocalizado por vozes minoritárias, mas não externas ao establishment, como a de Elbridge A. Colby, por exemplo. Neto de um ex-diretor da CIA, formado em Havard e Yale, autor de livro influente sobre a grande estratégia dos Estados Unidos[20], Colby foi um dos principais formuladores da Estratégia de Segurança Nacional de 2018, que rompeu com a estratégia dos dois cenários adotada no pós-Guerra Fria (planejamento com vistas à vitória dos Estados Unidos no cenário de guerras simultâneas em dois teatros), a fim de garantir o preparo necessário para a eventualidade da guerra contra a China. Tendo defendido sempre essa opção no debate público[21], manteve, previsivelmente, uma posição francamente crítica à condução do governo Biden na crise da Ucrânia[22]. Embora não poupe adjetivos na condenação da Rússia, ele sustenta que o conflito afeta apenas marginalmente a segurança nacional dos Estados Unidos e defende que a responsabilidade pela gestão do conflito seja assumida pela Europa – que se vê, ela sim, seriamente afetada pela política russa e detém recursos mais do que suficientes para se defender do perigo[23].
Esta tese – a atribuição à Europa do protagonismo no conflito com a Rússia – é partilhada também por críticos liberais, que têm defendido a solução negociada para a guerra da Ucrânia[24].
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O Impasse como opção de política e a moralidade da guerra.
Entre as três posições esquematicamente caracterizadas acima, a política do governo Biden não se enquadra exatamente em nenhuma. Com a primeira, compartilha – ao menos retoricamente – o objetivo maximalista de derrotar militarmente a Rússia, garantindo à Ucrânia a recuperação de todo o seu território, aí incluída a Crimeia. Mas coincide com a segunda e a terceira na prioridade conferida à Ásia, na recusa a um envolvimento direto no conflito armado com a Rússia e no cuidado em evitar a sua escalada. Ao mesmo tempo, insiste na prerrogativa de dizer a última palavra sobre a política da OTAN e se mantém ambígua no tocante à abertura de negociações com vistas ao cessar-fogo, a pretexto de que caberia à Ucrânia, e só à Ucrânia, decidir de sua oportunidade.
A natureza contraditória de tais posicionamentos ficou manifesta na cúpula da OTAN que se reuniu em Vilnius, Lituânia, nos dias 11 e 12 de julho do ano corrente. Não obstante a campanha intensa do governo Zelensky e contra a vontade expressa de grande parte dos sócios – em particular os países da Europa Central e de Leste –, os Estados Unidos rejeitaram a proposta de convidar a Ucrânia para integrar a OTAN, ou de estabelecer um cronograma para sua acessão, mesmo reiterando que sua acolhida futura estava assegurada. Para tanto, contudo, duas condições precisariam ser preenchidas: o fim da guerra e a realização das reformas internas requeridas para tal fim.
Ora, como pôr fim à guerra se o objetivo proclamado é a vitória no campo de batalha, mas os meios são limitados, e seu emprego, submetido a restrições severas? Esta, a pergunta implícita na queixa insistente de Zelensky e dos seus: até o momento, a Ucrânia ainda espera os aviões caças que solicita desde a deflagração do conflito; os combatentes ucranianos não podem usar o armamento disponível de forma adequada.
“To save my people, why do I have to ask someone for permission what to do on enemy territory?” – pergunta com indisfarçada indignação o general ucraniano – “This is our problem, and it is up to us to decide how to kill this enemy. It is possible and necessary to kill on his territory in a war. If our partners are afraid to use their weapons, we will kill with our own”[25].
O problema para o general Valery Zaluzhny e seus pares é que a Ucrânia carece de armas próprias, dependendo do equipamento fornecido pelos Estados Unidos e seus aliados para travar a guerra.
Zelensky visita a cidade de Bucha, após invasão da Ucrânia, em 4 abr. 2022 (Crédito: Wikimedia Commons)
É certo, atacar o território russo significa escalar o conflito, acarretando o emprego provável do armamento nuclear. Mas a ascensão aos extremos está na lógica da guerra. Interditar aos ucranianos os movimentos que lhe dão realidade, implica vedar-lhes o caminho (mesmo o imaginário) para a vitória.
Querer os fins, rejeitando os meios. O resultado da contradição é um plano estratégico que projeta no horizonte um cenário de guerra de atrito permanente, que pode exaurir a Rússia, mas a um custo indizível, em termos materiais e humanos – para a Ucrânia, em primeiro lugar, mas também para muitas outras sociedades.
Biden assumiu o governo dos Estados Unidos com uma plataforma que dividia o mundo entre democracias e autocracias e revestia o conflito entre elas de elevado conteúdo moral. Independentemente do juízo que se faça sobre o início da guerra na Ucrânia – e vimos neste artigo que ele nada tem de simples, ou unilateral – prolongá-la indefinidamente é mobilizar os bons sentimentos dos ingênuos para encobrir a mais radical imoralidade.
* Sebastião Velasco e Cruz é coordenador do INCT-INEU e do OPEU, Professor Titular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Professor do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP).
** Recebido em 17 jul. 2023. Este texto é a sexta parte do Estudos e Análises de Conjuntura intitulado O Quadrilátero da Crise. A Guerra na Ucrânia e o governo Biden. Seu conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, e/ou do INCT-INEU.
Notas
[1] Ischenko, Volodymyr. “Towards the Abyss”, New Left Review, 133-134, 2022, pp. 17-39 (p. 37).
[2] Treaty between The United States of America and the Russian Federation on security guarantees, Ministry of Foreign Relations of the Russian Federation, 12/12/2021.
[3] Agreement on measures to ensure the security of The Russian Federation and member States of the North Atlantic Treaty Organization. Ministry of Foreign Relations of the Russian Federation, 12/12/2021.
[4] Cf. Parker, Ashley; Harris, Shane. Birnbaum; Judson, John. “13 days: Inside Biden’s last-ditch attempts to stop Putin in Ukraine”, The Washington Post, 25/2/2021; e Farkas, Evelyn N. “The West Must Prepare for War Against Russia Over Ukraine”, Defense One, 11/1/2022.
[5] Wade, Robert H. “Why the US and Nato have long wanted Russia to attack Ukraine”, EUROPP – European Policy and Politics, LSE, 30/3/2022. <https://blogs.lse.ac.uk/europpblog/2022/03/30/why-the-us-and-nato-have-long-wanted-russia-to-attack-ukraine/>.
[6] Mackinnon, Amy. “Defining the Biden Doctrine”, Foreign Policy, 18/1/2022.
[7] Banco, Erin; Graff, Garret M; Seligman, Lara; Toosi, Nahal; Ward, Alexander. “’Something Was Badly Wrong’: When Washington Realized Russia Was Actually Invading Ukraine”, Politico Magazine, 24/2/2023.
[8] Parker, Ashley et alli, op. cit.
[9] Mackinnon, Amy, op. cit.
[10] Ahmed, Salman et alli. Making U.S. Foreign Policy Work Better for the Middle Class, Washington, Carnegie Endowment for International Peace, 2020.
[11] The White House, National Security Strategy, October 2022, p. 8.
[12] Cf. Kroenig, Matthew. “Washington Must Prepare for War with Both Russia and China”, Foreign Policy, 18 fev. 2022; Kagan, Frederick W. “Putin has changed the world — and the US must adapt or lose”, The Hill, 22/2/2022.
[13] Brands, Hal. “The Overstretched Superpower”, Foreign Affairs, 18/1/2022; id. “Opposing China Means Defeating Russia”, Foreign Policy, 5/4/2022.
[14] Cf. Kagan, Frederick W.. “The Case Against Negotiations with Russia”, Critical Threats, November 18, 2022; Rose, Gideon. “Ukraine’s Winnable War. Why the West Should Help Kyiv Retake All Its Territory”, Foreign Affairs, 13/6/2023.
[15] Tendo integrado o grupo de trabalho criado pelo governo Clinton para estudar a questão, Charles Kupchan externou publicamente sua posição contrária à expansão da OTAN em dois artigos publicados na grande imprensa. Cf. Kupchan, C. “Extending NATO Eastward Would Be a Grave Error”, International Herald Tribune, 30/11/1994; id. Kupchan, Charles. “Expand NATO – And Split Europe”, The New York Times, 27/11/1994. Anos mais tarde, a posição oposta já convertida em política de Estado, ele defendeu a integração na OTAN de todas as antigas repúblicas soviéticas, inclusive da Rússia. Cf. Kupchan, Charles. “The Origins and Future of NATO Enlargement”, In: Robert W. Rachhaus, Explaining NATO Enlargement. London, Frank Cass Publishers, 2001, pp. 127-148.
[16] Ashford, Emma. “The Ukraine War Will End with Negotiations”, Foreign Affairs, 31/10/ 2022; Charap, Samuel; Priebe, Miranda. “Don’t Rule Out Diplomacy in Ukraine. Biden’s Current Strategy Risks Escalation and Forever War”, Foreign Affairs, 28/10/2022; Charap, Samuel; Priebe, Miranda. “Avoiding a Long War. U.S. Policy and the Trajectory of the Russia-Ukraine Conflict”, Rand Corporation, 01/2023; Kupchan, Charles, “It’s Time to Bring Russia and Ukraine to the Negotiating Table”, The New York Times, 2/11/2022.
[17] Menon, Rajan. “How to End the War in Ukraine: On stopping the fighting and building the peace”, Boston Review, 26/4/2023; Charap, Samuel. “An Unwinnable War. Washington Needs an Endgame in Ukraine”, Foreign Affairs, 5/6/2023.
[18] Haass, Richard; Kupchan, Charles. “The West Needs a New Strategy in Ukraine. A Plan for Getting from the Battlefield to the Negotiating Table”, Foreign Affairs, 13/4/2023. Membros prestigiosos da comunidade de política exterior americana, os autores do artigo extrapolaram o papel de formadores de opinião ao entabularem conversações privadas com interlocutores russos, entre os quais o ministro Lavrov, iniciativa que teve grande repercussão quando veio a público. Cf. Josh Lederman. “Former U.S. officials have held secret Ukraine talks with prominent Russians”, NBS NEWS, 6/7/2023.
[19] Heinrichs, Rebeccah; Kroenig, Matthew. “On Foreign Policy, the New Populists are Old Declinists. The U.S. can — and must — confront Russia and China simultaneously”, National Review, 2/7/2023.
[20] Colby, Elbridge A. The Strategy of Denial. American defense in an age of great power conflict, New Haven & London, Yale University Press, 2021.
[21] Colby, Elbridge A.; Mitre, Jin. “Why the Pentagon Should Focus on Taiwan”, War on the Rocks, 7/10/2020; Sayers, Freddie. “Elbridge Colby: China is more dangerous than Russia”, UnHerd, 1º/4/2023.
[22] Heilbrunn, Jacob. “Elbridge Colby Wants to Finish What Donald Trump Started”, Politico, 11/4/2023.
[23] Cobly, Elbridge A. Zeitenwende – German Defence Policy in an Era of Great Power Conflict Panel: Keynote Remarks. Marathon Initiative, Berlin, 21/6/2022; Debsky, Slavmir; Colby, Elbridge A. “Towards a Natural Equilibrium in Transatlantic Relations.” (Interview). PISM (The Polish Institute of International Affairs), 4 (91) 2022/1 (92) 2023, pp. 17-27.
[24] Ashford, Emma; Shifrinson, Joshua R. Itzkowitz; Wertheim, Stephen; Mazarr, Michael J.. “Does America Still Need Europe? Debating an ‘Asia First’ Approach”, Foreign Affairs, 22/5/2023; Menon, Rajan. “Europe Keeps Acting Like It Can’t Defend Itself Against Russia”, The New York Times, 14/7/2023.
[25] Khurshudyan, Isabelle. “To defeat Russia, Ukraine’s top commander pushes to fight on his terms”, The New York Times, 14/7/2023.
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