Incêndios florestais de 2023: mais uma janela de oportunidade para discutir o clima
East River e Downtown Brooklyn, vistos de Lower Manhattan, Nova York, em 7 jun. 2023 (Crédito: SnowFire/Wikimedia Commons)
Por Pedro Vasques*
Em 5 de junho de 1973, celebrava-se pela primeira vez o Dia Mundial do Meio Ambiente, criado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em homenagem à primeira Conferência sobre Meio Ambiente Humano no ano anterior. Cinco décadas depois, nesse mesmo período, o secretário Geral da ONU postava em sua conta no Twitter uma imagem das janelas do prédio da instituição em Nova York, cuja vista se encontrava turvada pela fuligem carreada das queimadas no Canadá. Na mensagem, António Guterres afirmava: com o aumento das temperaturas globais, a necessidade de reduzir urgentemente o risco de incêndios florestais é crítica (tradução livre).
Os incêndios no Canadá tiveram início do final de abril em Alberta e British Columbia, mas rapidamente abriram novas fronteiras no Leste, atingindo cidades como Nova Escócia, Québec e Ontário. Essa distribuição do fogo foi classificada como incomum pelas autoridades canadenses, que esperavam que as ocorrências ficassem restritas à região Oeste. Segundo a Associated Press, até o início de junho, mais de 20 mil famílias haviam sido deslocadas e, até o final do referido mês, cerca de 6,7 milhões de hectares queimados por um total de quase 3 mil episódios, conforme o Canadian Interagency Forest Fire Centre. Em 24 de junho, Yan Boulanger, cientista e pesquisador do Ministério dos Recursos Naturais do Canadá, postou em sua conta no Twitter que os últimos 25 dias de incêndios no Québec queimaram em torno de 1,128 milhão de hectares, pouco mais do que a soma das duas últimas décadas (1,125 milhão de hectares) em áreas de proteção intensiva.
Imagem de satélite de incêndio florestal no rio West Kiskatinaw, em British Columbia, Canadá, em 7 jun. 2023 (Crédito: Pierre Markuse/Flickr)
As chamas atingiram quase todas províncias e, de acordo com as modelagens do governo federal, estima-se que o risco de incêndios crescerá até agosto, já que as altas temperaturas e o clima seco devem persistir durante todo o verão. Ainda segundo o governo canadense, no final de abril, 49% da região atlântica do país havia sido classificada como “anormalmente seca”, o que representa pelo menos 77% da área agriculturável dessa porção do Canadá. Tais condições contribuem para a ocorrência de incêndios, tal como práticas inadequadas de manejo florestal que, com o tempo seco, produzem mais combustível para o fogo.
Nas últimas semanas, a fumaça foi levada do Canadá para os Estados Unidos, cobrindo grande parte do Leste do país – i.e., Nova York, Filadélfia, Washington, D.C.. Estima-se que pelo menos 100 milhões de estadunidenses foram submetidos a alertas sobre a qualidade do ar nesse período, com a neblina atingindo até Chicago, na porção mais Oeste, e Atlanta, na região mais ao Sul. Os efeitos se deram de modo tão intenso no Leste estadunidense que, segundo o Heatmap News, os níveis de qualidade do ar foram os mais baixos registrados desde 2005, quando a atual metodologia de monitoramento passou a ser aplicada.
Em resposta, a administração Biden, no dia 8 de junho, publicou uma declaração afirmando que, desde maio, mais de 600 bombeiros, pessoal de apoio e recursos materiais haviam sido enviados ao Canadá para ajudar no combate às ocorrências. O governo federal dos Estados Unidos afirmou ter colocado as instituições do país à disposição do primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, bem como indicou uma série de ações adotadas pelas agências federais para mitigar os impactos e evitar ocorrências nesse grau de magnitude em território estadunidense.
Agentes de combate a incêndios florestais do Bureau of Land Management da Grande Bacia e do Serviço de Bombeiros do Alasca seguram uma bandeira dos EUA antes de partir para missão de combate a incêndios florestais no Canadá, em 23 jun. 2023 (Crédito: Departamento do Interior dos Estados Unidos)
A questão dos incêndios foi inclusive mobilizada para fortalecer a posição de Estados Unidos e Reino Unido com a assinatura da Declaração do Atlântico, também no dia 8 de junho. Segundo o primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, trata-se de uma nova parceria econômica para uma nova era. O documento, que servirá de base para a elaboração de um acordo, está apoiado na premissa de que novos desafios, como a ascensão de governos autoritários (i.e., Rússia e China), as mudanças climáticas, as tecnologias digitais disruptivas etc., suscitaram a necessidade de uma adaptação na aliança entre os dois países no século XXI.
Esses episódios também foram vistos como uma janela de oportunidade para uma articulação subnacional dos prefeitos das cidades de Nova York, Montreal, Toronto, Washington, D.C., e Filadélfia, culminando na elaboração de uma declaração conjunta. Nela, os incêndios são utilizados a fim de chamar atenção para as mudanças climáticas, evocando-se ações urgentes e coordenadas de governos, empresas e populações para reduzir pela metade o uso de combustíveis fósseis até 2030. O clima não é colocado como a causa central das queimadas, mas como um potencializador na ocorrência de secas e períodos de altas temperaturas.
Entre os congressistas democratas, Alexandria Ocasio-Cortez (D-NY) publicou uma mensagem articulando as altas temperaturas em Porto Rico e a fumaça carreada pelos incêndios com o despreparo para lidar com as mudanças do clima – ainda referenciando em uma hashtag o Green New Deal. Nessa direção, o senador Bernie Sanders (I-VT), ao tratar do assunto, associou a frequência e a amplitude dos incêndios à acentuação das alterações climáticas, convocando a ação coletiva imediata para lidar com o problema. Ambas as mensagens foram seguidas de um tuíte de Biden reforçando que tais incêndios seriam um lembrete do impacto das ações humanas sobre o clima.
(Arquivo) Representante Alexandria Ocasio-Cortez (centro) fala sobre o Green New Deal com o senador Ed Markey (à dir.) em frente ao prédio do Capitólio, em Washington, D.C., em fev. 2019 (Fonte: Wikimedia Commons)
Tal assunto já vinha motivando a atuação de organizações não governamentais, como o Greenpeace, desde abril/maio, quando as queimadas e seus efeitos ainda estavam restritos ao Canadá. Além dos efeitos políticos sobre o processo eleitoral em Alberta, uma das regiões mais afetadas pelo fogo, as mensagens ressaltavam a oposição de ambientalistas a estratégias negacionistas que visavam a interditar a associação dos incêndios com as mudanças climáticas. Com os desdobramentos das ocorrências, atingindo os Estados Unidos, foi possível verificar manifestações diretas de organizações da sociedade civil estadunidense sobre o assunto.
Nos Estados Unidos, negacionistas e conservadores de extrema direita vêm reutilizando uma série de argumentos empregados desde o governo Donald Trump. É o caso do Heartland Institute, um think tank conservador que, na liderança de campanhas de desinformação, defende que os incêndios têm ocorrido de forma menos frequente e severa, à medida que o planeta aqueceria modestamente. No auge das ocorrências, o presidente do grupo, James Taylor, afirmou em uma declaração que o argumento climático estaria sendo utilizado para desviar o foco das discussões sobre mitigar os danos e ajudar as pessoas afetadas.
Tais declarações estavam alinhadas com as de Mandy Gunasekara, ex-funcionária do alto escalão da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA, na sigla em inglês) no governo Trump e figura-chave na saída do Acordo de Paris. Segundo Gunasekara, os incêndios no Canadá teriam diminuído nos últimos 100 anos, e o problema não seria a mudança do clima, mas a histeria provocada pelo governo Biden. Assim, as ocorrências teriam como fator determinante o acúmulo de matéria vegetal que serviria de combustível, e a saída para lidar com isso seriam políticas de manejo florestal, empregadas em oposição às iniciativas de zero intervenção nas florestas.
A posição de Gunasekara foi lastreada por uma avaliação feita por outro think tank conservador, o Independent Women’s Forum, e foi o eixo central utilizado pelos republicanos. A adoção do argumento do inadequado manejo florestal de forma concertada por congressistas como Marc Molinaro (R-NY) Ryan Zinke (R-MT), Steve Daines (R-MT) e Tommy Tuberville (R-AL) não se dá por acaso. Trata-se de uma estratégia que, ao mesmo tempo em que desassocia os incêndios do problema climático, fortalece a posição da indústria madeireira, e questiona as práticas conservacionistas/ambientalistas de gestão de florestas.
Apesar de os números de ocorrência haverem, de fato, declinado, estudo elaborado pelo Congressional Research Service mostra que, desde 2000, os incêndios florestais nos Estados Unidos consumiram uma média anual de 2,8 milhões de hectares. Isto é, mais do que o dobro daquilo que foi identificado na década de 1990 (1,3 milhão de hectares). Tais afirmações são confirmadas pelos dados do National Interagency Fire Center, compilados em reportagem do FiveThirtyEight, e que indicam uma tendência de leve queda no quantitativo de ocorrências e uma alta expressiva das áreas queimadas e do tamanho médio dos incêndios.
Considerando que parte significativa dos incêndios tem origem em ações humanas negligentes, outra linha argumentativa adotada pelos negacionistas associa as ocorrências a ações criminosas orquestradas. Esse discurso já havia sido articulado por Trump nos incêndios de 2020 que assolaram a Austrália, e quando o fogo se intensificou no Noroeste dos Estados Unidos nesse mesmo ano. Na ocasião, foi fabulada uma teoria conspiratória a respeito da origem criminosa das queimadas, impulsionada pelo republicano Loren Culp (R-WA). Como agora, tais abordagens tensionavam o debate de modo a privilegiar interesses de grupos conservadores.
Essa mesma estratégia está sendo adotada por políticos de extrema direita no Canadá. É o caso da recém-reeleita primeira-ministra de Alberta, Danielle Smith, que disse estar muito preocupada com a existência de incendiários, dadas as várias histórias que “estaria ouvindo”. Já o líder do Partido Popular do Canadá, Maxime Bernier, foi mais longe ao conectar o caso de uma mulher que havia sido indiciada 32 vezes por causar incêndios criminosos com as atuais ocorrências. Bernier afirma acreditar que boa parte das queimadas teria sido iniciada por “terroristas verdes” que desejariam impulsionar a campanha de mudanças climáticas.
A aparição talvez mais nefasta dos negacionistas climáticos, segundo o jornalista Chris D’Angelo, tenha ficado a cargo do lobista Steve Milloy. Em sua participação em programa na Fox News, Milloy declarou falsamente que a fumaça dos incêndios que cobriu as cidades estadunidenses não representava perigo para a saúde humana. Chegou a afirmar ainda sobre a existência de um estudo clínico elaborado pela EPA com crianças, idosos, cardíacos e asmáticos, no qual nenhum deles teria sequer tossido, ou ficado com a respiração ofegante. Posicionamento esse claramente enganoso, desmentido por outros veículos de comunicação.
‘CULTO DO CLIMA’: Steve Milloy na Fox News, em 8 jun. 2023 (Fonte: Commondreams.org/Fox News/Captura de tela)
Milloy está em guerra com a regulação atmosférica desde a década de 1980. Isso porque, para os industriais, a poluição do ar e, em especial, as normas sobre emissão de material particulado, são uma preocupação maior do que a política climática. Ademais, medidas regulatórias envolvendo a gestão ou a redução da emissão de partículas inferiores a 2,5 micrômeros (PM 2.5), ou seja, aquelas que inalamos, exigiriam a adoção de condutas similares às que seriam demandadas pelas regras de controle do clima. Mas, nesse caso, sem o elevado nível de polarização que tem obstruído a ação climática por décadas.
Durante o governo Trump, o referido lobista se vangloriou de haver participado diretamente do desmonte das instituições ambientais federais. Uma de suas principais ações para desqualificar a produção científica contra os interesses industriais é o que tem sido chamado, desde a década de 1990, de ciência secreta (secret science). Isto é, a marginalização dos estudos, cujos dados não podem ser disponibilizados para o governo, ou outros pesquisadores. Isso é especialmente problemático para estudos epidemiológicos haja vista que eles, em geral, são elaborados a partir de testes com humanos e estão submetidos a regras estritas de privacidade.
Milloy empregou várias estratégias no intuito de impedir o desenvolvimento da regulação atmosférica. Contudo, à medida que os estudos sobre o tema avançavam, consolidando o entendimento sobre os danos à saúde provocados pela inalação de partículas finas, o êxito de Milloy por meio de um discurso técnico formal se tornou cada vez menos provável. Ao contrário, isso foi possível apenas com Scott Pruitt à frente da EPA durante o governo Trump, momento no qual análises financiadas pelo setor industrial foram utilizadas para defender a ausência de certeza sobre os impactos na saúde humana, afastando a necessidade de intensificar os padrões regulatórios.
O então diretor da EPA, Scott Pruitt, na CPAC de 2017, em National Harbor, Maryland (Crédito: Gage Skidmore/Flick)
A partir da observação e da análise da atuação de Milloy e de seus aliados na administração Trump é possível explicitar a ruptura das práticas da extrema direita em relação aos governos republicanos anteriores. Isso porque, tais ações incidiram sobre um objeto novo, qual seja, a água e o ar puros dos estadunidenses. Isso se deu, em especial, após a decisão da Suprema Corte no caso West Virginia v. EPA, no qual a agência foi impedida de regular diretamente as emissões de carbono. A partir de então, restou apenas o controle administrativo sobre emissão de material particulado (PM 2,5) como meio para lidar diretamente com a questão climática.
As normas sobre PM 2,5, como Milloy afirmou para reportagem feita pelo The Intercept, seriam a porta dos fundos mais importante para regular as emissões de combustíveis fósseis (tradução livre). Ainda conforme a análise apresentada na notícia, para o lobista não importaria o que dizem os dados científicos sobre a questão. O ponto central seria impedir o estabelecimento de quaisquer conexões entre mudanças climáticas, incêndios, fumaça e doenças respiratórias. Isso porque, tais nexos tornariam os clientes de Milloy e seus aliados responsáveis por dezenas de milhões de dólares em custos de saúde, os quais eles não estariam dispostos a custear.
O período de secas e incêndios na América do Norte já está no calendário de ambientalistas e seus opositores há tempos. A intensificação desses eventos nas últimas décadas indica não haver um paralelo entre consolidação do conhecimento científico e execução de políticas públicas mais adequadas. Ainda que ciência e certeza sejam elementos importantes, em especial, dado que passaram a ser utilizadas como critério de legitimação das decisões públicas, elas não são suficientes para produzir mudanças robustas nas instituições políticas. Assim, se ainda é possível crer que a democracia remanesce como uma aposta coletiva, subjugá-la à racionalidade científica como alternativa para lidar com essa evidente incompatibilidade pode se relevar uma contradição com a proposta de construir saídas não autoritárias.
* Pedro Vasques é professor substituto da UFRJ, pós-doutor pelo INCT-INEU, membro do Conselho Diretor do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec) e doutor em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Recebido em 25 jun. 2023. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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