Governo Biden e a crise da dívida estudantil
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Por Marcos Cordeiro Pires e Leonardo Martins de Assis, para Latino Observatory* [Republicação]
Em 24 de agosto de 2022, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou um projeto de perdão à dívida estudantil de milhões de cidadãos estadunidenses. Era uma medida esperada, já que foi uma proposta de campanha que mobilizou milhões de estudantes durante sua campanha em 2020. O volume da dívida estudantil nos Estados Unidos é próximo de US$ 1,7 trilhão, algo parecido com o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, calculado em US$ 1,92 trilhão para o ano passado.
Durante o período de Donald Trump, o governo estadunidense suspendeu o pagamento das dívidas em março de 2020 por conta da crise financeira causada pela pandemia. A medida foi prorrogada algumas vezes, e o retorno do pagamento era previsto para maio de 2022. Apesar disso, 93% dos mutuários declararam em uma pesquisa, realizada pelo Student Debt Crisis Center, que não se sentiam preparados para o retorno do pagamento.
O empréstimo federal para estudante foi criado em 1958, sendo o mais vantajoso para os estudantes que podem esperar até a metade do curso para iniciar o pagamento. Com o advento do neoliberalismo, os governos deixaram de apoiar a educação superior, e o acesso à universidade passou a ser quase que exclusivamente por meio do pagamento de mensalidades. Além disso, o valor das parcelas subiu de forma meteórica, deixando muitos alunos endividados, já que os empregos que conseguiram depois da faculdade não eram suficientemente bem pagos para fazer frente ao investimento educacional.
Nas últimas três décadas, o valor médio da dívida triplicou, passando de US$ 10 mil para US$ 30 mil, segundo dados divulgados. Este é um problema que aflige uma parcela significativa da população, pois a dívida estudantil não pode ser objeto de falência. Em alguns casos, as dívidas são legadas para os filhos dos devedores diante da dificuldade de se honrar o pagamento. O filme “Torre de Marfim”, de 2014, dirigido por Andrew Rossi, representa parte deste drama.
Dessa forma, o tema sobre perdão da dívida estudantil se tornou bastante popular nos Estados Unidos, onde quase 44 milhões de pessoas estão endividadas. Em 2020, de acordo com o portal Medium, Joe Biden prometeu perdoar parte significativa da dívida dos egressos:
“(…) orientei minha equipe a desenvolver um plano para perdoar a dívida estudantil federal relacionada ao custo da mensalidade atualmente mantida por pessoas de baixa renda e classe média para faculdades e universidades públicas de graduação, bem como faculdades e universidades privadas historicamente negras (HBCUs) e Instituições de Atendimento a Minorias (MSIs) privadas e subfinanciadas. O conceito que estou anunciando hoje alinhará minha proposta de alívio da dívida estudantil com minha proposta futura de mensalidade universitária. De acordo com esse plano, proponho perdoar todas as dívidas federais relacionadas a mensalidades de graduação de faculdades e universidades públicas de dois e quatro anos para detentores de dívidas que ganham até US$ 125.000, com eliminações adequadas para evitar um precipício.”
Além do aumento da dívida, os estadunidenses também sofrem com a inflação no país, que vem corroendo os salários nos últimos dois anos. Assim, o poder de compra diminuiu, levando os já endividados a acumularem mais dívidas. Outro resultado disso foi a diminuição de alunos matriculados no ensino superior, que caiu 5,1% em 2022 — uma perda de quase um milhão de alunos.
O endividamento estudantil supera o valor de dívidas com financiamento para compra de automóveis e com cartões de crédito, ficando atrás do financiamento imobiliário. O Federal Reserve aponta que esses empréstimos se combinam, ou seja, é comum que as pessoas acumulem mais de uma dívida, agravando ainda mais a situação dos estudantes estadunidenses.
Evidentemente, esse grande obstáculo na vida dos formados em curso superior estadunidenses não é um problema que se iniciou recentemente. Ele resulta de um processo histórico de mercantilização da educação no país, tornando-a mais um item do mercado e agravando a desigualdade social nos EUA. Sendo assim, para alcançar prestígio e conhecimento, as classes baixas precisam adquirir altos empréstimos, assumindo dívidas antes mesmo de possuírem uma renda. Este é um problema que está se tornando uma bola de neve, principalmente entre os formandos de universidades e faculdades locais e em carreiras que não oferecem ganhos financeiros se comparado ao setor de engenharia computacional, ou medicina. Aqueles que conseguem seus títulos em renomadas universidades de elite, de forma geral, não enfrentam este problema.
Para tentar aliviar a situação, o presidente Joe Biden anunciou em agosto de 2022 o perdão das dívidas estudantis. Os mutuários que ganham menos de US$ 125.000 por ano, teriam US$ 10.000 perdoados e os estudantes de baixa renda, que fazem parte do programa Pell Grants, o programa de subsídio do governo federal, poderiam receber até US$ 20.000 em perdão de dívidas.
A medida foi alvo de críticas nos Estados Unidos e gerou uma preocupação com o impacto econômico que poderia gerar. Ao longo prazo, o perdão poderia gerar uma perda de US$ 60 bilhões por ano apenas com os juros que deixariam de ser arrecadados, conforme dado divulgado pelo site Valor Investe. Ademais, o governo estadunidense precisaria pagar aos investidores que possuem títulos do Tesouro dos EUA US$ 28 bilhões por ano.
Apesar dos números parecem altos, a estimativa é que o plano de Biden não impacte tão bruscamente a economia. O perdão das dívidas era previsto para janeiro de 2023, sendo combinado com a suspensão da moratória dos pagamentos da dívida estudantil. Mark Zandi, economista-chefe da Moody’s Analytics, disse à CNN que “o fim da moratória pesará sobre o crescimento e a inflação, enquanto o perdão da dívida apoiará o crescimento e a inflação”, assim, boa parte do impacto das medidas anunciadas seria reduzida e quase inexistente.
Ainda segundo o economista-chefe da Moody’s, o impacto dos planos anunciados por Joe Biden seria uma diminuição de 0,05 ponto percentual no PIB estadunidense, redução do desemprego em 0,02 ponto percentual e 0,03 ponto percentual na inflação. Ou seja, todos os impactos estariam em menos de 1 ponto percentual, sendo assim, teriam um baixo efeito real na economia dos EUA.
Por outro lado, a medida poderia aliviar as contas de milhões de mutuários estadunidenses, mesmo que não resolvesse todo o problema da dívida estudantil nos Estados Unidos. O perdão das dívidas poderia aliviar as contas de 43 milhões de pessoas, sendo que 20 milhões teriam o saldo restante zerado. Apesar disso, o plano de Biden é visto por alguns segmentos como insuficiente por não eliminar os problemas subjacentes da crise da dívida estudantil.
Alguns grupos progressistas pediram a eliminação de até US$ 50.000 para dívidas. Assim, apesar da medida ser necessária, ela ainda é vista como tímida por esses grupos frente ao tamanho do problema. Além da timidez da medida, a questão da dívida estudantil não acaba por aí. As mensalidades das universidades estadunidenses continuam altas e estima-se que continuarão subindo, principalmente devido à inflação. Ou seja, o problema principal continua e, mesmo que as dívidas sejam reduzidas, o problema pode retornar ao longo prazo e tornar-se ainda maior.
O ex-secretário do Tesouro Larry Summers disse: “Os custos estão fora de controle. É absurdo que as pessoas tenham que pedir grandes quantias emprestadas e depois lutar para pagá-las”, e completou: “Esse problema não está resolvido”. Ele ainda alertou que resolver parte do problema pode aumentar as mensalidades das universidades, endividando cada vez mais os estudantes que buscam a educação superior e contribuindo com o agravamento da desigualdade social no país.
(Arquivo) Ex-secretário do Tesouro americano Larry Summers em encontro anual do Fundo Monetário Internacional (FMI), na George Washington University, em 9 de outubro de 2014 (Crédito: FMI/Flickr)
Sob outra perspectiva, o deputado de ascendência mexicana, Tony Cárdenas, defendeu a medida de Joe Biden e participou de reuniões na Casa Branca para negociar o perdão das dívidas. O político afirmou que “muitos jovens vão dar um suspiro de alívio, vão poder comprar uma casa em breve. Eles podem fazer planos de começar uma família mais cedo”. Assim como Cárdenas, outros membros da bancada latina fizeram pressão sobre o presidente para que a decisão fosse tomada. Ele também argumentou que esse plano seria necessário para dinamização antes das eleições de meio de mandato dos EUA que ocorreram em novembro de 2022.
Contudo, em outubro de 2022, o Tribunal de Apelações do 8º Circuito dos EUA decidiu bloquear temporariamente o perdão. O tribunal abrange os territórios do Nebraska, Missouri, Arkansas, Iowa, Kansas e Carolina do Sul, todos liderados por políticos republicanos. Posteriormente, em novembro de 2022, o juiz do Texas, Mark T. Pittman afirmou que o programa é ilegal e deveria ser encerrado.
No início de dezembro de 2022, também o Tribunal de Apelações do 5º Circuito dos EUA, baseado em Nova Orleans (que abrange os estados do Texas, Mississippi e Lousiana) recusou o pedido de recurso que o governo havia feito, mantendo a decisão que torna ilegal o perdão de dívidas concedido por Joe Biden. Assim, o governo estadunidense recorreu à última instância do Judiciário, a Suprema Corte dos Estados Unidos, para que suspendesse as decisões tomadas pelos tribunais regionais.
Recentemente, em fevereiro de 2023, a Suprema Corte dos Estados Unidos, contestou a decisão de Joe Biden em uma sessão do órgão. Os juízes da corte, em sua maioria, conservadores, utilizaram argumentos orais para discutir se o presidente norte-americano teria autoridade legal para tomar essa decisão. Segundo argumento levantado pelos membros da corte, o Executivo precisaria da aprovação do Legislativo para essa medida, visto que ela afetaria questões econômicas e políticas do país, portanto, deveria respeitar a “doutrina das questões principais”, prevista na Constituição dos EUA.
Representado pela Advogada-Geral dos Estados Unidos, Elizabeth Prelogar, o governo federal estadunidense afirmou que a decisão poderia ser respaldada pela lei sancionada em 2003, “Heroes Act”. Segundo a lei, o secretário teria autoridade para tomar medidas que aliviasse as dívidas estudantis no caso de uma emergência nacional, evitando que os mutuários fiquem em uma situação pior em relação às dívidas.
Enquanto os órgãos estadunidenses discutem a legalidade da medida, milhões de estudantes continuam afundados nas dívidas que assumiram para acessar a educação superior. Mesmo que o plano do governo federal dos EUA siga em frente, o problema do endividamento estudantil continuará existindo e contribuindo para bloquear o acesso de pessoas ao sistema universitário.
Por ora, qualquer medida poderia representar um alívio para os milhões de estudantes que possuem dívidas. Principalmente, considerando que mesmo uma medida tímida frente ao tamanho do problema ainda enfrenta muitas críticas e resistências dentro do sistema estadunidense, podendo, até mesmo, ser deixada de lado e não se concretizar.
Discutir este tema é muito importante, pois além de indicar um problema muito sério na sociedade dos Estados Unidos, mostra também a paralisia política em tomar medidas que efetivamente possam resolver os temas mais candentes do país. Nota-se que a polarização política no Congresso restringe a busca de soluções. O desenho atual da representação no Senado, por exemplo, praticamente impede qualquer decisão que implique maioria qualificada, pois não está no horizonte que democratas, ou republicanos, possam alcançar 60 senadores.
Além disso, a Suprema Corte se tornou um grande entrave para qualquer política de cunho social, ou progressista. De antemão, já se espera que a maioria de juízes indicados por republicanos bloqueie as iniciativas de um presidente democrata. Isso já ocorreu com a política migratória, com os direitos ao aborto, com a posse de armar e com relação às políticas ambientais. A questão eminentemente jurídica, ou constitucional, é relegada ao segundo plano.
* Marcos Cordeiro Pires é coordenador do Latino Observatory, professor de Economia Política Internacional (Unesp-Marília) e pesquisador do Instituto Nacional de Estudos dos Estados Unidos (INCT-INEU). Contato: latinobservatory@latinobservatory.org. Leonardo Martins de Assis é graduando em Relações Internacionais na UNESP Marília e bolsista de Iniciação Científica. Contato: leonardo.assis653@gmail.com.
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