Technological decoupling? Competição EUA-China se acirra com sanções em torno dos semicondutores
Crédito: CC 3.0 – Jacobs School of Engineering, UC San Diego
Por Rúbia Marcussi Pontes*
A disputa tecnológica entre Washington e Pequim ganhou novos contornos quando o governo do presidente Joe Biden anunciou, em 7 de outubro, uma série de restrições na exportação para a China de tecnologias necessárias para a fabricação de semicondutores e a suspensão da venda de chips e demais componentes necessários ao setor de Inteligência Artificial e dos chamados supercomputadores.
O anúncio foi feito pelo Bureau of Industry and Security (BIS), agência federal para Indústria e Segurança, em extenso documento, e revela como os defensores da separação tecnológica (technological decoupling) entre os Estados Unidos e a China ganharam espaço na administração Biden e na estratégia para lidar com a China, evidenciando, mais do que nunca, o objetivo de paralisar os avanços tecnológicos e militares chineses.
Crescentes esforços e a Estratégia de Segurança Nacional de Biden
Em junho de 2021, a Casa Branca publicou o relatório “Building Resilient Supply Chains, Revitalizing American Manufacturing, and Fostering Broad-Based Growth” (“Construindo cadeias de suprimentos resilientes, revitalizando a manufatura americana e promovendo o crescimento de ampla base”, em tradução livre), revisando as capacidades estadunidenses de produção de semicondutores e de baterias, assim como de extração de metais de terras raras, dentre outros temas, da perspectiva dos Departamentos de Energia, Defesa, Comércio e Saúde Pública.
Um dos grandes temas debatidos é a falta de capacidade dos Estados Unidos para produzir semicondutores em solo americano (estima-se que o país seja responsável por menos de 10% da produção mundial), dependendo fortemente de Taiwan, da Coreia do Sul e, é claro, da China, para suprir suas demandas. Esta tem investido fortemente no setor, principalmente no século XXI, e a empresa Yangtze Memory Technologies (YMTC), fundada em 2016, é destacada como uma grande recipiendária de subsídios do governo chinês, o que potencializou sua capacidade de produção de semicondutores e de chips nos últimos anos.
Nesse contexto, o relatório também identificou a China como uma das maiores potências na mineração de metais de terra raras, elementos essenciais para a produção dos semicondutores, além de destacar o controle chinês de 85% do refinamento mundial desses materiais.
O que fazer, então? Uma das principais sugestões do relatório é que a política e a relação comercial e tecnológica entre os Estados Unidos e a China passe a ser mais agressiva, buscando a resiliência das redes de fornecimento (supply chain resilience), o investimento na indústria e no ecossistema de semicondutores em solo americano, inclusive ajudando pequenas e médias empresas com potencial de expansão, além do fortalecimento de parcerias e alianças. Afinal, é necessário garantir um fluxo constante de componentes, cujo impactos vão além dos setores mencionados, com aplicações militares e de infraestrutura, e evitar interrupções de fornecimento, como ocorrido durante a pandemia da covid-19.
A administração Biden, que busca revitalizar a economia e a indústria americana de forma geral, seguiu tais recomendações desde então, assim como o Congresso. Uma série de medidas limitaram a circulação de tecnologia que sai dos Estados Unidos para a China – e vice-versa – nos últimos anos, como afirma Jon Bateman, do think tank Carnegie Endowment for International Peace. E os esforços para fortalecer e proteger a indústria americana, especialmente nos setores mais sensíveis, também têm sido empreendidos pelo governo e pelo setor privado.
Um dos maiores exemplos nesse sentido foi a aprovação do “CHIPs and Science Act”, em agosto de 2022, com apoio bipartidário, após extensa negociação. A lei garantirá uma injeção de mais de US$ 280 bilhões de investimentos em pesquisa e desenvolvimento, com destaque para US$ 52 bilhões em subsídios para a fabricação de semicondutores e US$ 24 bilhões em isenções para novas indústrias de fabricação de chips nos Estados Unidos.
Tal iniciativa é mencionada na mais recente Estratégia de Segurança Nacional (National Security Strategy, NSS), publicada em outubro de 2022, pela Casa Branca. A NSS ressaltou a importância de se investir no “poder nacional” para garantir a capacidade competitiva dos Estados Unidos, principalmente frente aos seus “rivais”. Para isso, iniciativas como a “CHIPs and Science Act” são essenciais.
A China, é evidente, aparece como um “rival” dos Estados Unidos na Estratégia. Mas ela é mais do que isso. Em uma seção que olha exclusivamente para esse Estado, lê-se: “A República Popular da China é a única competidora (grifo meu) com a intenção tanto de remodelar a ordem internacional quanto, crescentemente, com o poder de fazê-lo econômica, diplomática, militar e tecnologicamente. Pequim (…) ambiciona se tornar a potência líder mundial. Ela está usando sua capacidade tecnológica e crescente influência sobre instituições internacionais para criar condições mais permissivas para seu modelo autoritário e está moldando o uso e as normas da tecnologia global para privilegiar seus interesses e valores”.
A competição continuará, portanto, a se acirrar nas mais diversas áreas, com destaque inegável para a tecnologia. A recente decisão de restringir a exportação de tecnologias e chips para a China se insere nesse crescente, sendo compreendida como uma decisão de caráter inédito, de onde não há mais volta, na relação comercial e tecnológica sino-americana.
Repercussões
Na esteira do anúncio das últimas restrições, a China realizou seu 20º Congresso Nacional do Partido, um dos momentos políticos mais significativos para o Partido Comunista Chinês (PCCh). O Congresso elegeu o novo Comitê Permanente do Politburo, com nomes que olham com muita atenção para os Estados Unidos, e garantiu que Xi Jinping seguirá à frente da China por mais um mandato.
Segundo Patricia Kim, analista do John L. Thornton China Center, a visão chinesa de segurança nacional é mais relacionada com a estabilidade doméstica, e os documentos resultantes do Congresso ressaltaram, no contexto da segurança nacional, a importância de manutenção de redes de suprimento básicas, especialmente para garantir a segurança alimentar e energética do país. Para tanto, não há dúvidas de que o fortalecimento do sistema de inovação e o desenvolvimento tecnológico chinês continuarão à frente da estratégia do PCCh, por maiores que sejam os obstáculos colocados pelos EUA.
O decoupling não é uma estratégia fácil. Os impactos das restrições americanas para o desenvolvimento tecnológico chinês já são sentidos, especialmente no setor de e-commerce, cibersegurança, veículos autônomos, entre outros. Para além, a decisão levou à demissão de diversos funcionários americanos que trabalhavam em empresas chinesas produtoras de chips e levará à provável demissão de funcionários que trabalham em empresas americanas, nos Estados Unidos, com destaque para a Intel. Esta última fez um forte lobby pela aprovação da lei de agosto e tem enfrentado uma série de problemas internos.
A China pode recorrer à Organização Mundial do Comércio (OMC), organização da qual faz parte desde 2001, e iniciar uma queixa. Ainda segundo Jon Bateman, tal possível processo seria demorado, dúbio e os Estados Unidos poderiam apelar para a exceção de “segurança nacional”. Uma possível vitória chinesa na disputa seria, no entanto, um marco legal importante, que evidenciaria o descaso dos Estados Unidos para com o sistema multilateral de comércio.
* Rúbia Marcussi Pontes é doutoranda e mestra em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), professora de Relações Internacionais das Faculdades de Campinas (FACAMP) e pesquisadora do INCT-INEU. Contato: rubiamarcussi@gmail.com
** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Recebido em 26 out. 2022. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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