Economia e Finanças

Sanções levam Rússia a buscar opção à arquitetura financeira internacional centrada no US$

Sede do Banco Central russo (Crédito: Akishin Vyacheslav/Moscow-Live/Creative Commons)

Por Aline Regina Alves Martins e Máina Caroline Antunes Dias*

Uma das últimas respostas do governo de Vladimir Putin às sanções decorrentes da Guerra na Ucrânia foi a criação, em 1º de abril de 2022, de um sistema próprio de pagamentos chamado SBPay. Trata-se de um aplicativo desenvolvido pelo National Payment Card System russo (“Sistema Nacional de Pagamento com Cartão”, em tradução livre), uma alternativa à impossibilidade de os bancos russos VTB Group, Sovcombank, Novikombank, Promsvyazbank e Otkritie FC Bank usarem os sistemas de pagamento digital Apple Pay e Google Pay.

Várias nações do Ocidente têm aplicado diferentes tipos de sanções à economia russa, tais como: a expulsão de bancos selecionados do sistema de pagamentos Swift (acrônimo em inglês para “Sociedade para as Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais”), uma rede de alta segurança que facilita pagamentos entre 11.000 instituições financeiras em 200 países; o congelamento de ativos do Banco Central da Rússia; além da interrupção de negociações com o governo. A presidente da União Europeia (UE), Ursula von der Leyen, afirma que todo pacote de sanções visa a afetar 70% do mercado bancário e as principais empresas estatais do país, criando pontos de paralisia na economia russa em resposta às agressões promovidas no território ucraniano.

Para amenizar o impacto dessas sanções internamente, o SBPay surge como um aplicativo que torna possível aos russos acessarem o Faster Payment System (FPS, ou “Sistema de Pagamento Mais Rápido”) e realizar pagamentos apenas conectando um smartphone a um terminal. O FPS é uma estrutura financeira de pagamentos criada em 2018 pela Autoridade Monetária de Hong Kong (HKMA, na sigla em inglês) que permite pagamentos instantâneos e em outras moedas que não o dólar americano, entre elas a chinesa (iuane).

Além do SBPay, um análogo do Apple Pay e do Google Pay está sendo desenvolvido pelo Gazprombank, banco privado russo. A chamada carteira GazpromPay não funcionará apenas como substituto para o sistema de pagamentos digitais. Também pretende oferecer uma nova oferta de pagamentos, após grandes empresas do setor, como Visa, Mastercard, Amex e Western Union, suspenderem suas operações na Rússia. Diante da identificação de uma demanda aumentada por produtos russos confiáveis e estáveis, o vice-presidente do conselho do Gazprombank, Dmitry Zauers, disse:

“Nos últimos anos, o Gazprombank tem sido um dos participantes mais ativos no processo de digitalização do setor financeiro russo, incluindo o desenvolvimento progressivo de uma ampla gama de serviços remotos modernos para a conveniência de seus clientes de varejo e corporativos. O lançamento da carteira de pagamento GazpromPay é a etapa mais importante desse processo, e a necessidade de investir no desenvolvimento de tais serviços na Rússia adquiriu, hoje, particular relevância.”

Outra investida russa no meio digital frente às sanções e à digitalização das finanças é a adoção do rublo digital, acelerada pela necessidade de proteger a economia sem desviá-la para a descentralização. Com a remoção de bancos do Swift e o congelamento de reservas do Banco Central, muitos especularam acerca da utilização das criptomoedas, como o Bitcoin, enquanto solução. As criptomoedas representam, no entanto, uma descentralização das finanças, não alinhada com a centralização desejada pelos governos. O governo russo já havia declarado oficialmente que o único futuro possível para as moedas digitais no país seria o da regulação estatal.

Conforme as instituições participantes das discussões sobre a regulamentação de criptomoedas, “a implementação do conceito vai garantir a criação do marco regulatório necessário, tirar a indústria de moeda digital das sombras e criar a possibilidade de atividades comerciais legais”. Ainda assim, para o objetivo de contornar sanções, a criptomoeda é de pouca utilidade, uma vez que é negociada como um ativo instável, pouco seguro e de difícil conversão em moeda utilizável.

Sanções impulsionam digitalização das finanças russas

Esse quadro de inovação e de necessidade de adaptação e controle já havia levado ao início de uma corrida pela criação de moedas digitais governamentais, mas esse processo foi agora acelerado na Rússia. Segundo informações do governo, o Banco da Rússia e os participantes do mercado lançaram um protótipo da plataforma de rublo digital e concluíram com sucesso suas primeiras transferências entre indivíduos. As transferências digitais de rublo são realizadas por meio de aplicativos móveis bancários, daí a importância de aplicativos, como o SBPay, e de carteiras digitais, como a GazpromPay. O Banco Central anunciou que, além de abrir carteiras digitais na plataforma de rublos digitais, os clientes também poderão trocar rublos não monetários em suas contas por digitais e, em seguida, transferir rublos digitais entre si.

“A plataforma digital do rublo oferece novas oportunidades para cidadãos, empresas e o Estado. Planejamos que as transferências em rublos digitais sejam gratuitas e disponíveis em todas as regiões russas tanto para residências, quanto para empresas. Isso reduzirá custos e permitirá a elaboração de produtos e de serviços inovadores. Quanto ao Estado, essas transferências servirão como uma nova ferramenta para pagamentos direcionados e para a administração de pagamentos orçamentários”, observou a primeira-vice-governadora do Banco da Rússia, Olga Skorobogatova, em declaração oficial.

“Durante este ano, testaremos vários cenários e finalizaremos a plataforma digital do rublo. Em outras etapas do desenvolvimento da plataforma, também vamos garantir uma interação perfeita com plataformas digitais e com ecossistemas digitais”, completou.

Depois da primeira etapa de testes de rublos digitais emitidos, abertura de carteiras digitais por bancos e famílias, além da transferência entre indivíduos, é prevista uma etapa de testes de pagamentos de bens e serviços em empresas de varejo e serviços. Ainda na segunda etapa, devem ser realizados testes de pagamentos por serviços públicos, vendas de contratos inteligentes, bem como a interação com o Tesouro Federal. A disponibilização de um modo offline (pagamento em locais sem acesso à Internet) também está no plano de ação, bem como a interação com intermediários financeiros e plataformas digitais, além de transações com rublos digitais para não clientes residentes.

Desse modo, constata-se como as sanções decorrentes da Guerra na Ucrânia vêm aprofundando a digitalização das finanças russas por meio do investimento em plataformas digitais e da adoção de uma moeda digital governamental. Esse processo não é somente russo, mas global, e não é decorrente da guerra.

A digitalização dos sistemas de pagamentos internacionais representa um dos aspectos das transformações mais estruturais do sistema monetário e financeiro contemporâneo. Essas mudanças envolvem tanto a digitalização dos meios de pagamento quanto a criação de formas digitais (ou virtuais) do dinheiro. É possível observar o aumento da importância das criptomoedas (ou moedas digitais privadas, como o Bitcoin) na economia internacional, além do peso cada vez maior de gigantes privadas do mercado de pagamentos por aplicativos, como Alipay e WeChat. Esse contexto de avanços tecnológicos do setor privado vem levando os Bancos Centrais, por seu turno, a criarem, por exemplo, as moedas digitais públicas (as Central Bank Digital Currency, ou CBDC). Diante dessa “corrida tecnológica” entre os setores públicos e privados, um processo de descentralização do sistema monetário internacional parece ganhar forma, e a soberania monetária estatal é, em muitos casos, questionada.

Um ponto de reflexão para o longo prazo é buscar compreender em que medida as atuais necessidades de frear a fragilização econômica russa, causada pelas sanções, poderão abalar a ordem financeira global baseada no dólar americano e se o processo de digitalização, privado ou governamental, abre uma maior margem para isso.

 

* Aline Regina Alves Martins é professora da Universidade Federal de Goiás (UFG) e pesquisadora do INCT-INEU. Contato: alinermartins@ufg.br. Máina Caroline Antunes Dias é graduanda em Relações Internacionais pela UFG e bolsista de Iniciação Científica pelo INCT-INEU. Contato: mainacaroline@discente.ufg.br.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Recebido em 27 abr. 2022. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

*** Sobre o OPEU, ou para contribuir com artigos, entrar em contato com a editora Tatiana Teixeira, no e-mail: tatianat19@hotmail.com. Sobre as nossas Newsletters, para atendimento à imprensa, ou outros assuntos, entrar em contato com Tatiana Carlotti, no e-mail: tcarlotti@gmail.com.

 

Assine nossa Newsletter e receba o conteúdo do OPEU por e-mail.

Siga o OPEU no Instagram, Twitter, Flipboard, Linkedin e Facebook e acompanhe nossas postagens diárias.

Comente, compartilhe, envie sugestões, faça parte da nossa comunidade.

Somos um observatório de pesquisa sobre os EUA, com conteúdo semanal e gratuito, sem fins lucrativos.

Realização:
Apoio:

Conheça o projeto OPEU

O OPEU é um portal de notícias e um banco de dados dedicado ao acompanhamento da política doméstica e internacional dos EUA.

Ler mais