China e Rússia

Derrame de armas na Ucrânia tende a acirrar outros conflitos

Soldados ucranianos usam lançador com mísseis Javelin americanos durante exercícios militares na região de Donetsk, na Ucrânia, em 23 dez. 2021 (Crédito: Serviço de Imprensa do Ministério ucraniano da Defesa via AP)

Por Isabelle C. Somma de Castro*

Dentre a série de efeitos nefastos que uma guerra como a que ocorre na Ucrânia pode vir a provocar está a transferência de armas de alto calibre para o mercado paralelo. Com mais facilidade em se obter equipamentos letais, novos conflitos podem surgir, e os velhos certamente ganhariam fôlego renovado para prosperar. Isso é o que prenuncia a notícia de que novas remessas estão sendo enviadas para a Ucrânia tanto pelos Estados Unidos como por Estados-membros da União Europeia (UE).

Sem entrar na questão sobre os impactos desses armamentos na guerra que se desdobra contra a Rússia, as armas distribuídas tanto para civis, conforme determinado pelo governo de Volodymyr Zelensky, como para os militares ucranianos, poderão e, provavelmente, serão desviadas durante e depois do término conflito. Entre os 17 mil equipamentos antitanque anunciados, está o lançador de mísseis portátil Javelin. De última geração, dispõe de um sistema operacional automático que faz o projétil atingir o objetivo sem a necessidade de controle manual, protegendo também o lançador. Essa arma letal e de fácil manuseio é extremamente útil em conflitos de maior ou menor escala, como insurgências e ataques terroristas.

Armas capturadas também servem para realizar o processo de engenharia reversa. Essa possibilidade é, contudo, mais complexa e leva mais tempo para ser desenvolvida. No momento, sabe-se que as tropas russas já capturaram Javelins e lançadores de foguetes antiaéreos Stingers, equipamentos que podem ser usados por eles contra os ucranianos no conflito. E parece que é o que vai acontecer. Em uma conversa exibida pela TV estatal russa, o presidente Vladimir Putin e seu ministro da Defesa, Sergei Shoigu, comentaram que estão de posse de vários armamentos americanos enviados para a Ucrânia. Na transmissão, Putin aceita a sugestão de Shoigu e afirma que apoia a ideia de fornecer esses mesmos modelos para as milícias pró-Rússia que operam em Donestk e em Luhansk, no leste da Ucrânia.

Vladimir Putin warns of 'military measures' against West in major  escalation of Ukraine crisisMinistro russo da Defesa, Sergei Shoigu (à dir.), exibe metralhadora ao presidente Vladimir Putin, durante reunião com autoridades da Defesa, em 21 dez. 2021 (Crédito: site do Kremlin)

A venda de armamentos gera uma receita considerável para a indústria americana, provendo milhares de empregos e alianças estratégicas para o país. Para conter questões como o repasse de tecnologia e dos produtos a terceiros, foram estabelecidas regras nos contratos de venda, como mecanismos para o monitoramento do uso final das remessas e proibição da revenda, ou transferência dos equipamentos. A depender do contrato, a regulação fica a cargo dos Departamentos de Defesa, de Estado, ou de Comércio. O sucesso na verificação de como e por quem as armas vendidas estão sendo utilizadas foi colocado à prova por uma série de denúncias feitas pela imprensa e por think tanks americanos. Os controles têm-se mostrado frouxos, e parece haver uma cegueira seletiva por parte das agências estatais. Apesar de os desvios de armamentos serem comuns e conhecidos, pouco tem sido feito para que esses episódios sejam evitados, ou mesmo investigados.

De mão em mão

A Arábia Saudita, o maior comprador de armamentos dos EUA, realiza há décadas operações casadas com Washington, como no caso Irã-Contras, e repasses de arsenais para outros países, como Afeganistão e Iêmen. Os sauditas também realizam transações com outros países. Em 2014, Riad financiou armas de origem russa para o Egito, sob o governo autoritário de Abdul Fatah Al Sisi. Desde 2012, o reino árabe vem fazendo grandes aquisições, com a permissão da União Europeia, de equipamentos bélicos procedentes de Croácia, Bulgária, entre outros países-membros. As armas e munições têm como destino a Síria. Muitas delas estariam indo, porém, para o Daesh (acrônimo em árabe de Estado Islâmico do Iraque e Levante), como demonstram fotos coletadas nas redes sociais de combatentes do grupo, segundo o Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP).

Uma investigação da rede CNN revelou, em 2019, que um amplo arsenal comprado dos EUA, que inclui veículos militares blindados, artilharia, metralhadoras e lasers para visão noturna, estava sendo repassado pela Arábia Saudita para grupos que lutam contra os huthis no Iêmen. Além de essa transferência ser ilegal – na compra, os sauditas se comprometeram a não entregar os equipamentos a terceiros –, muitas dessas tecnologias sofisticadas foram parar nas mãos do inimigo e também de seus patrocinadores, como o Irã. Milícias que lutavam ao lado dos sauditas se voltaram umas contra as outras. E grupos considerados terroristas pelos EUA, como a Al-Qaeda na Península Arábica, desfilam em blindados Oshkosh. As alianças fluidas e muitas vezes pouco confiáveis, a escassez de recursos e o fôlego exaurido dos combatentes para lutar em uma guerra que parece estar em um impasse são alguns dos motivos a mais para a dispersão dos armamentos.

Os Emirados Árabes Unidos, que recentemente deixaram de participar da coalizão com os sauditas no Iêmen, também compraram dos EUA e repassaram aos aliados iemenitas blindados MRAP, sigla para Mine-Resistant Ambush Protected. Esses veículos são usados pelas tropas americanas para diminuir, ou evitar, os efeitos de minas e de dispositivos explosivos improvisados. A explosão desses artefatos era a principal causa de morte entre os soldados que ainda se encontravam no Afeganistão e no Iraque. Os blindados fabricados nos EUA foram vistos com líderes dos huthis em imagens do canal de TV do grupo. Especialistas da organização Conflict Armament Research também confirmaram que o Irã dispõe de exemplares do MRAP. Saber como esses equipamentos funcionam e quais são suas vulnerabilidades é vital para diminuir a vantagem tecnológica de americanos e de seus aliados.

Desvios se repetem

Afgantsy: The Russians in Afghanistan, 1979-89 eBook : Braithwaite, Rodric:  Amazon.co.uk: Kindle StoreUm exemplo clássico sobre como esse desvio de armas têm efeitos deletérios e prolongados é o Afeganistão. Durante o conflito com os soviéticos, os mujahidin receberam auxílio militar tanto em relação a treinamento como aos suprimentos bélicos do Departamento de Estado norte-americano. A principal estrela da época foram os lançadores Stinger, que chegaram ao país em 1986. O governo Ronald Reagan demorou para enviá-los por temer que parassem nas mãos dos próprios soviéticos, ou de outros inimigos na região. E foi isso o que realmente ocorreu: armas intactas foram capturadas, e outras, compradas dos próprios rebeldes por US$ 3.000. Os iranianos também desfilaram com Stingers em uma parada militar em Teerã, um ano depois da remessa norte-americana ao país vizinho.

Outras 240 unidades enviadas para o Afeganistão colaboraram para a retirada russa em 1989, menos de três anos após o início de seu uso, como conta Rodric Braithwaite em seu livro Afgantsy: The Russians in Afghanistan 1979-1989 (Nova Iorque: Oxford University Press, 2011). Os lançadores e demais armas ganharam sobrevida na região, fomentando novos embates e fortalecendo o que viria a se tornar a Al-Qaeda.

Recentemente, os talibãs não precisaram de muito esforço para se apoderar de todo arsenal das Forças Armadas do país que havia sido financiado pelos EUA nas últimas duas décadas. Em uma parada organizada pelo grupo em novembro passado, foram vistos blindados, helicópteros e rifles de assalto nas mãos dos novos mandatários, que eram os alvos dos armamentos adquiridos. Calcula-se que foram repassados mais de US$ 28 bilhões em equipamentos militares para os governos que se seguiram à invasão do Afeganistão, em 2001. Parte deles foi destruída durante a retirada dos EUA em setembro de 2021, como, por exemplo, 70 aeronaves e dezenas de veículos de combate. Outra parte, acredita-se, está sendo vendida na região. A lista de compradores inclui o Paquistão.

Armamentos também são desviados antes mesmo de chegarem ao destino. A emissora de televisão Al Jazeera e o jornal The New York Times passaram a investigar desvios de armas na Jordânia, depois que um capitão da polícia local matou, em 2016, dois americanos e um sul-africano que treinavam as forças de segurança do país. As armas utilizadas pelo oficial eram provenientes de carregamentos despachados para Amã pelos governos americano e saudita, a fim de abastecer os rebeldes sírios. O arsenal estava sendo subtraído por oficiais da Jordânia e vendidos no mercado paralelo. Chamada de Timber Sycamore, a operação foi liderada pela CIA e pelos serviços de Inteligência de outros países árabes, como Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. As investigações dos veículos de imprensa não identificaram os principais compradores, mas não se deve descartar que parte do equipamento tenha sido revendida para atravessadores que fizeram chegar a membros do Daesh, ou das forças pró-Assad.

O derrame de armas também alimenta conflitos internos, não necessariamente relacionados a outros países. Há vários relatos sobre o assunto, por exemplo, ocorridos após a Segunda Guerra Mundial. Em muitos casos, o acesso fácil a arsenais acentuou a escalada de conflitos políticos e de desordem social. Muitos rifles abandonados nas batalhas travadas entre tropas Aliadas e do Eixo no front do Deserto Ocidental (entre Líbia e Egito) foram vendidos livremente no Cairo. Outros foram furtados dos depósitos britânicos no país, segundo descrevem documentos do Foreign Office. Nos cinco anos seguintes ao fim do embate mundial, dois primeiros-ministros egípcios, um alto funcionário do governo e o fundador da Irmandade Muçulmana foram algumas das personalidades egípcias assassinadas. Um outro primeiro-ministro escapou de um atentado, e dois ataques a bomba deixaram mortos e feridos, entre outros vários episódios de violência. A crise econômica do pós-guerra alimentou a insatisfação popular, mas o acesso às armas pode ter facilitado o revide a figuras públicas vistas como culpadas pela situação. E, claro, ceifado vidas de civis inocentes.

Diante disso, o dilema moral permanece. É melhor transferir arsenais para aliados, ou negar-se a ajudá-los em favor de uma contenção do conflito? Isso vai prolongar, ou encurtar, a guerra? Vale a pena correr o risco de vender equipamentos bélicos para aliados pouco confiáveis? O envio de mais armas vai provocar mais mortes, ou poupar algumas vidas? A única certeza é de que enquanto houver armas não faltarão dedos disponíveis para apertar o gatilho.

 

* Isabelle Christine Somma de Castro é pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais (Nupri-USP), do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para o Estudo dos Estados Unidos (INCT-INEU) e do Grupo de Pesquisa Tríplice Fronteira (GTF/Unila). Concluiu pós-doutorado em Ciência Política (USP) e foi Visiting Scholar na Universidade de Columbia. Tem doutorado em História Social (USP) e Mestrado em Letras (USP). Contato: isasomma@hotmail.com.

** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Recebido em 11 mar. 2022. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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