China e Rússia

Tensão nas relações EUA-Taiwan-China: semicondutores podem dissuadir chineses?

Crédito: Mari Fouz

Por Robson Coelho Cardoch Valdez*

Assim como no governo de Donald Trump, a administração Joe Biden percebe a China como um desafio aos interesses dos Estados Unidos. Evidências disso podem ser encontradas, por exemplo, em diferentes declarações do presidente Biden e de alguns de seus principais secretários e outros funcionários do alto escalão, como Antony Blinken (Estado), Lloyd Austin (Defesa), Janet Yellen (Tesouro), Katherine Kai (USTR, na sigla em inglês) e Jake Sullivan (Conselho de Segurança Nacional). Esta lista não é exaustiva.

A abordagem do atual governo norte-americano em relação à China vem-se desenhando e consolidando já desde seu início, quando Blinken, o indicado para o Departamento de Estado, posicionou-se de forma dura sobre o tema durante a sabatina no Comitê de Relações Exteriores do Senado. Na ocasião, declarou que a China é um país a ser vencido: “Podemos vencer a China e lembrar ao mundo que um governo do povo, para o povo, pode ajudar seu povo”. Adicionalmente, em linha com a abordagem da administração anterior em relação à China, Blinken deixou claro que se trata do “desafio mais importante de qualquer Estado-nação aos Estados Unidos em termos dos nossos interesses: os interesses do povo americano”.

Em sessão no Senado para a mesma finalidade, o indicado por Biden para a Defesa, o general reformado Lloyd Austin, classificou a China como “a ameaça mais importante no futuro”. Além disso, referiu-se ao país asiático como um “hegemon regional”, que busca se tornar a “potência proeminente no mundo em um futuro não muito distante”.

Retired Army General Lloyd J. Austin III during his 19 January Senate confirmation hearing.General reformado do Exército Lloyd J. Austin III durante sabatina de confirmação como secretário da Defesa, em audiência no Senado americano, em Washington, D.C., em 19 jan. 2021 (Crédito: E.J. Hersom/DOD)

Por fim, ao analisar o papel dos Estados Unidos no mundo, no início deste ano, o presidente Biden prometeu que seu país enfrentará os desafios que a China impõe aos interesses norte-americanos. Ao mesmo tempo, porém, em que busca confrontar os chineses no campo da economia, da propriedade intelectual, da governança global e dos Direitos Humanos, o presidente americano parece estar disposto a cooperar, de forma pragmática, em áreas de interesse dos Estados Unidos.

Assim, muito provavelmente, as relações China-EUA sob Biden serão pautadas por uma abordagem multilateral liderada pelos norte-americanos, buscando o engajamento das Nações Unidas e de aliados europeus e asiáticos naquilo que for de interesse de todos. Trata-se de tarefa difícil — mesmo para os Estados Unidos. A onipresença chinesa na Ásia é um obstáculo à consolidação de alianças pró-americanas na região. Quanto aos europeus, o conselheiro de Segurança Nacional de Biden, Jake Sullivan, já reconheceu que se trata de um desafio, porque europeus e americanos abordam a China de diferentes perspectivas.

Nesse sentido, em uma demonstração de abertura, o secretário da Defesa dos EUA, Lloyd Austin, ofereceu na sexta-feira (22/10) o compromisso “resoluto” dos Estados Unidos com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e o amplo apoio a Taiwan e à União Europeia. Movimento semelhante fez a vice-presidente Kamala Harris em visita ao Sudeste Asiático, em meio à retirada das tropas americanas do Afeganistão, com o objetivo de fortalecer as alianças dos EUA com seus parceiros da região.

Vantagens da ambiguidade estratégica

O primeiro posicionamento do governo Biden em apoio a Taiwan veio no início de 2021 com a nota do Departamento de Estado. Nela, reafirma-se que o compromisso dos EUA com os taiwaneses é “sólido como uma rocha” e se reforça o fornecimento de assistência militar necessário para que Taiwan possa fazer frente às ameaças de Pequim. A declaração surgiu após um ano de operações da Força Aérea chinesa sobre Taiwan. Em 2020, foram 380 incursões desse tipo e, desde o início de outubro deste ano, o governo chinês iniciou uma série de sobrevoos militares sobre a ilha, marcando uma escalada nas relações EUA-Taiwan-China.

Em recente audiência no Comitê de Relações Exteriores do Senado para a nomeação de Nicholas Burns como o novo embaixador dos Estados Unidos para a China, em 21 de outubro, a questão taiwanesa foi um dos pontos centrais de sua arguição. Burns salientou que a China é, hoje, o “competidor mais perigoso” dos Estados Unidos; classificou o tratamento dado pela China aos muçulmanos uigures na região de Xinjiang como genocídio”; e afirmou que Pequim violou a promessa de manter sua capacidade nuclear de dissuasão em níveis mínimos.

Quanto às relações China-Taiwan, Burns avaliou que os EUA não podem confiar nos chineses, levando-se em consideração as promessas não cumpridas por Pequim em relação a Hong Kong. Nesse contexto, Burns acredita que os Estados Unidos devem manter seu compromisso de fortalecer as capacidades militares de Taiwan no sentido de diminuir sua “assimetria bélica” em relação à China.

No dia 22, em evento promovido pela rede CNN, o presidente Biden afirmou que os EUA defenderiam Taiwan no caso de um ataque chinês. Horas mais tarde, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Wang Wenbin, emitiu a seguinte nota à imprensa: “Exortamos os EUA a cumprirem seriamente o princípio de uma única China e ao que foi estipulado nos três comunicados conjuntos China-EUA, a serem prudentes em suas palavras e ações sobre a questão de Taiwan e a evitarem enviar sinais errados às forças separatistas que apoiam a independência de Taiwan”. Wenbin se referia aos termos acordados, no que se refere às relações China-EUA-Taiwan, em três comunicados conjuntos assinados em 1972, 1979 e 1982 pelo governo norte-americano e a RPC, assim como às “seis garantias” da política americana para Taiwan que passam a entrelaçar os interesses estratégicos dessa tríade.

Momentos de tensão como os dos últimos dias remetem-nos aos parâmetros estabelecidos pelo governo dos Estados Unidos para lidar com a questão taiwanesa sob a Taiwan Relations Act (“Lei sobre as Relações com Taiwan”, ou TRA). A TRA estabelece que qualquer abordagem não pacífica em relação a Taiwan será entendida como uma ameaça à paz na região, causando grande preocupação em Washington. Adicionalmente, acrescenta o texto da lei, os EUA “fornecerão a Taiwan armas de caráter defensivo e manterão a capacidade dos Estados Unidos de resistir a qualquer recurso à força, ou a outras formas de coerção que colocariam em risco a segurança, ou o sistema social, ou econômico, do povo de Taiwan”.

Screen shot from C-SPAN's live streaming of House vote Captura de tela de transmissão ao vivo pela C-SPAN da votação na Câmara de Representantes do Congresso americano, em 7 de maio de 2019, sobre as relações EUA-Taiwan (Fonte: Taiwan News)

Ainda que a TRA não determine explicitamente que os Estados Unidos defendam Taiwan no caso de um ataque chinês, o documento afirma que o país deve ter capacidade de fazê-lo por meio de uma “ambiguidade estratégica” em relação a seu papel no caso de conflito entre China e Taiwan. Dessa forma, a ambiguidade estratégica é também uma variável importante nas relações entre Washington e Pequim.

Tendo em vista as manobras militares no Mar do Sul da China e as declarações recentes dos governos de Taiwan, China e EUA, faz-se necessário questionar se os Estados Unidos estariam, de fato, abandonando sua ambiguidade estratégica para administrar a questão taiwanesa. Ao que parece, a resposta é não. Ou seja: a despeito das declarações mais incisivas de Biden, os EUA continuam a seguir literalmente o que determina a TRA e, em paralelo, buscam robustecer uma presença militar anti-China por meio de coalizões de geometria variável com aliados da região.

Celebrado por Taiwan e criticado pela China, o pacto AUKUS (Austrália, Reino Unido e Estados Unidos) eleva o dinamismo e as tensões da segurança da região do Indo-Pacífico. Nesse sentido, é importante ressaltar que o AUKUS suplanta a relevância da ANZUS (Austrália, Nova Zelândia e Estados Unidos) que não permite seu envolvimento no Mar do Sul da China. Adicionalmente, o AUKUS prevê a possibilidade de inclusão de futuros submarinos nucleares australianos à capacidade naval instalada de Estados Unidos e Japão na frota de patrulhamento “defensivo” da região. Com isso, outra aliança se fortalece: o QUAD (EUA, Índia, Austrália e Japão).

Cadeia global de semicondutores como arma de ‘dissuasão’ contra China

No momento, a ambiguidade estratégica parece ser uma boa opção para China, Taiwan e Estados Unidos.

Para além dos custos econômicos e políticos de uma eventual deflagração de conflito envolvendo esses atores e as repercussões sobre todo sistema internacional, existe uma questão de ordem prática extremamente sensível para a estratégia de inserção internacional chinesa: a indústria de semicondutores. Estes componentes altamente especializados fornecem a funcionalidade essencial para dispositivos eletrônicos para processarem, armazenarem e transmitirem dados. A maioria dos semicondutores de hoje são circuitos integrados, ou chips.

De acordo com um relatório recente divulgado pela Casa Branca, a dependência da economia global em relação às firmas taiwanesas de semicondutores é de 92%. Nesse setor, tanto os EUA quanto a China são os maiores mercados consumidores deste produto. Cada um é responsável por 25% da demanda global. Outro dado importante é que 75% da capacidade manufatureira de semicondutores se encontra na China e na Ásia Oriental. Dessa forma, um conflito de proporções imprevisíveis poderia comprometer o acesso global a fornecedores, e/ou a consumidores. O Plano Quinquenal 2021-2025 da China estabeleceu a meta de diminuir a dependência externa na área de semicondutores para se tornar líder global nesse setor.

Bloomberg Hack Allegations Denied by Tech Companies - PandailyChina quer autossuficiência em semicondutores (Fonte: Shutterstock)

Assim, o desejo de anexar definitivamente Taiwan à soberania territorial chinesa pode esbarrar no obstáculo representado pela indústria global de circuitos integrados. Trata-se de um setor extremamente sensível à demanda e oferta de mão de obra especializada, além de trabalhar com níveis estreitos de tolerância de pureza de matérias-primas e precisão subatômica para muitos de seus processos de produção. Essas condições são, por diversas motivos, difíceis de preservar, em caso de deflagração de conflito e de eventual apropriação de fábricas taiwanesas por parte dos chineses.

Como se vê, apesar dos avanços no setor de semicondutores na China, o país ainda é extremamente dependente de Taiwan. Essa questão impõe a Pequim o desafio de administrar o status quo da relação EUA-Taiwan-China, ao mesmo tempo em que desenvolve sua indústria de semicondutores e busca impedir a eleição do sucessor da atual presidente Tsai Ing-Wen (Partido Democrático Progressista, DPP) que não poderá concorrer a um terceiro mandato em 2024. Dessa forma, seria do interesse de Pequim o retorno da interlocução menos conflitiva do Kuomintang (KMT) para administrar as relações entre Taiwan e China, em contraposição à postura mais centrada em Taiwan do DPP.

 

* Robson Coelho Cardoch Valdez é pós-doutorando em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (IREL/UnB), doutor em Estudos Estratégicos Internacionais (UFRGS) e pesquisador do Núcleo de Estudos Latino-Americanos/IREL-UnB. Autor dos livros Política Externa e a Inserção Internacional do BNDES no Governo Lula (Appris, 2019) e Subindo a Escada – a internacionalização de empresas nacionais no Governo Lula (Appris, 2019). Contato: robsonvaldez@hotmail.com.

** Recebido em 25 out. 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

 

 

Primeira revisão: Rafael Seabra. Edição e revisão final: Tatiana Teixeira.

Assessora de Imprensa do OPEU e do INCT-INEU, editora das Newsletters OPEU e Diálogos INEU e editora de conteúdo audiovisual: Tatiana Carlotti. Contato: tcarlotti@gmail.com.

 

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