Energia e Meio Ambiente

Biden libera caminho para gasoduto teuto-russo

Crédito: Foreign Policy Illustration/Getty Images

Por Solange Reis*

O projeto de gasoduto Nord Stream 2 caminha para uma solução definitiva, após anos de polêmicas, sanções e muita negociação. Em 21 de julho, Alemanha e Estados Unidos chegaram a um acordo sobre a continuidade das obras, o que significa o fim da possibilidade de aplicação de sanções por parte dos americanos. O gasoduto liga Ust-Luga, uma região ferroviária no noroeste da Rússia, à cidade alemã de Greifswald.

Feliz para uns, lamentável para outros, o final dessa história é um marco na segurança energética e geopolítica da Europa. Ao conectar as reservas da Rússia diretamente ao território alemão, o Nord Stream 2 dobra a capacidade de fornecimento russo para o continente pelo Mar Báltico. Desde 2011, outro duto com trajeto e nome similares, o Nordstream, já transporta 55 bilhões de metros cúbicos de gás por ano. Juntos, perfazem quase 2.500 km subaquáticos, sendo o maior gasoduto do tipo no mundo, e tornam a Ucrânia praticamente dispensável como país de trânsito.

Der Spiegel”: NS2 jest szkodliwy politycznie i antyeuropejski, Merkel winna wycofać dla niego poparcie – Nasza Polska – internetowy magazyn informacyjny

Crédito: Kasanawo/Shutterstock

Os apoiadores consideram o Nord Stream 2 uma proteção, pois ele garante tanto o fornecimento para quem precisa comprar, como as exportações para quem tem que vender. Levam em conta décadas de relações energéticas entre europeus e russos, que foram marcadas por poucos sobressaltos e para as quais a Alemanha sempre teve um papel essencial.

Já os críticos alegam que o gasoduto aumenta a dependência energética europeia em relação à Rússia, além de subtrair a receita de alguns países europeus que transportam a maior parte do gás para o restante da Europa. Atualmente, a Rússia supre 40% das importações de gás dos países da União Europeia (UE). Quando for inaugurado, o novo gasoduto poderá elevar esse percentual para 60%, dos quais 80% através dos dutos gêmeos no Mar Báltico. Além da questão energética, os opositores dizem que o Nord Stream 2 confere vantagem política à Rússia.

Barrados no baile

Fall 2019O que os Estados Unidos têm a ver com tudo isso, apesar de estarem em outro continente e não terem investido um centavo no gasoduto? A tal ponto de se sentirem no direito de aplicar sanções econômicas contra as empresas envolvidas para interromper a construção? Nada, exceto o fato de que o Nord Stream 2 aproxima ainda mais seu principal aliado na UE de seu rival histórico; prejudica os interesses econômicos de outros países na Europa, os quais importam geopoliticamente para Washington; reduz os planos dos produtores de gás de xisto americano de conquistar fatias maiores do mercado europeu.

Alegando que a dependência energética europeia em relação à Rússia aumenta a insegurança geral dos países europeus, os Estados Unidos tentaram constantemente impedir acordos, vetar gasodutos e quebrar o monopólio das empresas russas de energia. A história, no entanto, não corrobora essa perspectiva. De acordo com Thane Gustafson, autor do livro The Bridge: Natural Gas in a Redivided Europe, o comércio de recursos energéticos entre Rússia e Europa é marcado por uma interdependência estável.

Pivô ucraniano

Durante os anos 2000, divergências entre Rússia e Ucrânia sobre os preços de fornecimento e transporte de gás levaram a pelo menos três crises, quando ou os russos interromperam o fornecimento por alguns dias, ou os ucranianos desviaram para si o gás que deveriam transportar para a Europa. Principalmente os países sul-europeus sofreram com a falta temporária de gás durante alguns episódios. Tais acontecimentos foram pontuais em quase 60 anos de um estável comércio continental de gás e petróleo.

As disputas russo-ucranianas são fatos muito relevantes e complexos, o que torna a Ucrânia uma espécie de pivô tanto para os aliados transatlânticos quanto para a Rússia. Razão pela qual é importante situá-las na motivação da União Europeia e dos Estados Unidos quando convidaram a Ucrânia, em novembro de 2013, para uma maior integração com o bloco europeu. Pressionado por Moscou, o então presidente Viktor Yanukovych voltou atrás em aceitar a proposta, o que levou à revolta de grupos e indivíduos pró-UE, à queda de Yanukovych, à anexação da Crimeia pela Rússia e a um conflito civil que dura até hoje. Conflito este que tem a participação indireta das potências interessadas.

Ousted Ukrainian President Yanukovych Surprised by Putin's Silence
Yanukovych e Putin em entrevista coletiva em 22 de outubro de 2012, região de Moscou, Novo-Ogaryovo (Fonte: Kremlin)

As relações dos Estados Unidos com a Rússia, que já não eram boas, azedaram. Joe Biden, vice-presidente americano durante os primeiros anos da crise ucraniana, teve um papel central na queda de Yanukovych e em sua substituição por figuras pró-Ocidente. Biden tornou a Ucrânia menos “russa”, em conformidade com um antigo plano dos Estados Unidos de incorporá-la às instituições ocidentais, entre elas a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Desde as negociações para a reunificação da Alemanha, a Rússia (então União Soviética) se opõe à expansão da aliança militar transatlântica. Diz, inclusive, que existe um acordo tácito quanto a isso, o que a OTAN nega.

Arapuca herdada

Foi a partir do contexto da crise ucraniana que o então governo de Barack Obama, e depois o de Donald Trump, fizeram do Nord Stream 2 uma pièce de résistance na relação triangular EUA-Alemanha-Rússia. Apesar das diferenças, as obras avançaram paulatinamente, até a aprovação de sanções por Trump quando faltava um mês para o final de seu mandato. O objetivo foi deixar uma escolha indigesta para o democrata Joe Biden.

Quando Biden assumiu a presidência, em janeiro deste ano, o gasoduto estava praticamente construído, mas os 2% restantes da obra haviam sido interrompidos pelas sanções impostas a um navio russo que faz a instalação dos dutos e a sua empresa proprietária. Biden encontrou uma realidade material irreversível, e seu maior aliado, zangado. Afinal, o Nord Stream 2 é vital para a Alemanha cumprir uma legislação nacional que estabelece a transição energética até 2032. Chamada de Energiewende, o projeto requer o fechamento de todas as usinas nucleares até 2022, e de todas as termoelétricas a carvão, até 2038. Sem o gás russo, nada disso será factível. E a Alemanha não está disposta a ficar sujeita ao uso político da energia no Leste Europeu. Confia na Rússia como provedor e decidiu pagar para ver.

Se Biden fez a Ucrânia ser menos russa, Trump tornou a Alemanha menos americana. Ataques à chanceler Angela Merkel, tarifas comerciais e ameaças de rompimento com a OTAN foram alguns gestos do republicano que reduziram a confiança alemã na aliança com os Estados Unidos. Biden precisava reconquistar esse parceiro júnior, e a paralisação do Nord Stream 2 representava um obstáculo.

Chancellor Merkel welcomes more multilateralism under Biden | News | DW | 25.01.2021

Biden e Merkel, em 2013, em Berlim (Crédito: Maurizio Gambarini/dpa)

Realpolitik, o velho normal

Por essas razões, o Nord Stream 2 é mais uma prova de que a geopolítica nunca sai totalmente de cena, apesar de toda retórica predominante sobre mercados e trocas comerciais. É também uma demonstração de que, não obstante sua liderança combalida nos últimos tempos, os Estados Unidos mantêm capacidade de influência e pressão sobre os aliados europeus. Mas não tanto como no passado, antes de Trump e da consolidação da China como ator determinante na política internacional.

Agora, Biden precisa fazer mais concessões do que teria sido necessário em outros tempos. Aceitar o gasoduto, em troca da ajuda alemã em prol de seus interesses no Leste Europeu e na região do Indo-Pacífico, é um exemplo do novo normal nas relações transatlânticas. Tudo isso resultou no acordo com a chanceler Angela Merkel, em sua derradeira visita à Casa Branca como líder da Alemanha, trocando sanções relacionadas ao Nord Stream 2 por mais cooperação militar e econômica em outras áreas e regiões.

Merkel e Biden discutiram sobre uma parceria da Alemanha com a Ucrânia para a produção de hidrogênio, que poderá ser transportado através dos gasodutos existentes. Isso inclui até mesmo o transporte de hidrogênio produzido na Rússia. Também falaram de bilhões de dólares em investimentos na rede de gás e outros financiamentos para uma transição energética na Ucrânia. Dinheiro alemão, naturalmente. Concordaram em trabalhar juntos para tentar estender, por dez anos, o atual acordo de trânsito de gás entre Rússia e Ucrânia, que termina em 2024.

Negociando com os russos

Em 20 de agosto, Merkel se reuniu com o presidente russo, Vladimir Putin, provavelmente pela última vez como chefe de Estado. Vários assuntos foram discutidos, entre eles a situação no Afeganistão. Merkel pediu que Putin pressione o Talibã para permitir a retirada segura de ocidentais. O russo disse ser importante que a comunidade internacional evite um colapso do Afeganistão, o que requer aceitar  o fato de que os talibãs agora dominam o país e negociar com eles.

Como não poderia deixar de ser, a conversa incluiu o gasoduto. Putin garantiu que estenderá o acordo de transporte de gás via Ucrânia, desde que tenha garantias contratuais de compra por parte dos países europeus. Se Trump deixou um abacaxi para Biden descascar, no que concerne ao Nord Stream 2, Merkel legará uma meia dúzia a quem lhe suceder.

Alguns países, principalmente no Leste Europeu, são contra reforçar os laços energéticos com Moscou. Em julho, por exemplo, a Alemanha perdeu uma ação movida pela Polônia, no Tribunal de Justiça da União Europeia, contra o uso do gasoduto OPAL pela estatal russa Gazprom. O OPAL é importante para transportar até outros países europeus o gás que chega à Alemanha pelo Nord Stream.

Além dos países que antagonizam com a Rússia, a Comissão Europeia também será uma barreira para as exigências de Putin. Há alguns anos, o órgão vem aprovando uma série de diretrizes e leis que desregulamentam o mercado de energia europeu e condicionam a participação da Gazprom a cláusulas não contratuais, entre outros comprometimentos.

Dois dias depois do encontro com Putin, Merkel se reuniu com o presidente ucraniano, Volodymyr Zelenskiy, que considerou vagas as garantias oferecidas.

Северный поток-2", Донбасс и Россия. О чем Зеленский говорил с Меркель НОВОСТИ.UA - Самые интересные новости

Presidente Zelenskyy recebe a chanceler alemã, Angela Merkel, em Kiev, Ucrânia, em 22 ago. 2021 (Crédito: Gabinete da Presidência ucraniana, via AP)

Promessas de setembro

O mês de setembro será marcante para o Nord Stream 2, a energia futura na Europa e a chanceler Merkel. A 15 quilômetros de sua finalização, o gasoduto tem chance de ser inaugurado antes de outubro.

Será também em setembro que acontecerão as eleições que definirão o nome sucessor de Merkel. Depois de 16 anos, a chanceler deixará definitivamente o cargo.

Os principais candidatos já tiveram debates quentes sobre o gasoduto. Armin Laschet já disse que não moverá um dedo contra o Nord Stream 2, desde que esteja tudo dentro da lei. Além do endosso de Merkel para eleição, pois ambos são do Partido Democrata Cristão (CDU, na sigla em alemão), Laschet tem relações pragmáticas com Estados Unidos e Rússia.

Já Olaf Scholz, do Partido Social Democrata (SPD, na sigla em alemão), também apoia o gasoduto. O SPD tem boas relações com a Rússia e sempre defendeu que o país está mais para garantidor do que predador da segurança energética europeia. O fato de o ex-chanceler socialista Gehard Schröder ser presidente do Conselho Administrativo da Rosneft, a maior empresa russa de exploração, infraestrutura e comércio de petróleo e gás, gera constantes suspeitas sobre a isenção do partido quanto ao tema.

Annalena Baerbock, do Alliance 90/The Greens (Aliança 90/Verdes), é totalmente contra o Nord Stream 2, apoia o transporte de hidrogênio pela Ucrânia e enaltece o New Green Deal, programa de investimentos proposto por Biden. Considerando que o gasoduto é quase um fato consumado, caso seja eleita, Baerbock poderá influir apenas no pós-Nord Stream 2.

Angela Merkel's inconvenient truth – POLITICO

Merkel dá entrevista coletiva após reunião da comissão ministerial para ‘proteção climática’, no centro de exposições Futurium, em Berlim, em 20 set. 2019 (Crédito: Maja Hitij/Getty Images)

Devido a seu apoio à transição energética na Alemanha, Merkel é chamada de “Chanceler do Clima”. Mas sua ação em relação ao tema contém avanços e retrocessos. O último grande projeto aprovado em seu governo é tornar a Alemanha neutra em emissões de carbono até o ano de 2045. Para uns, essa meta não pode ser alcançada sem o Nord Stream 2. Para outros, o gasoduto é um contrassenso.

A questão é importante não apenas para a Alemanha, mas para as discussões internacionais sobre clima. O tempo dirá se a chanceler estava certa, embora este seja o bem mais escasso no combate à mudança climática. De qualquer forma, o Nord Stream 2 mostra a interseccionalidade de temas que serão presentes neste século: energia, alta política, economia e mudança sistêmica. Tudo como há 100 anos. Mudam-se os recursos de energia, mas as barganhas continuam da mesma natureza.

 

* Solange Reis é doutora em Ciência Política pela Unicamp, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu). Contato: reissolange@gmail.com.

** Recebido em 29 de agosto de 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

 

Edição e revisão final: Tatiana Teixeira.

Assessora de Imprensa do OPEU e do INCT-INEU, editora das Newsletters OPEU e Diálogos INEU e editora de conteúdo audiovisual: Tatiana Carlotti. Contato: tcarlotti@gmail.com.

 

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