Covid-19 e os requerentes de asilo nos EUA
Agente da Patrulha de Fronteira em Penitas, no estado do Texas, orienta demandantes de refúgio, em 17 mar. 2021, no muro ao longo do Rio Grande (Crédito: CNS photo/Adrees Latif, Reuters)
Por Anna Paula Ramos*
Fim das medidas restritivas, doação de vacina para países emergentes e incentivo a um vaccine tourism. Esse é o contexto do novo normal que grande parte dos Estados Unidos está vivendo nos últimos meses, após Joe Biden assumir a presidência e definir o combate ao coronavírus como uma das principais metas do seu mandato. Diante da vacinação em massa da população e da retomada econômica, o país é visto como um caso de sucesso e até como uma referência a ser seguida.
No entanto, a situação nos centros de detenção de migrantes é de alerta, pois, em maio de 2021, atingiu-se o maior pico da contaminação pelo novo coronavírus, ao passo que a vacinação permanece em ritmo lento nesses locais. Discutimos que o enfrentamento dos Estados Unidos à pandemia, no que se refere ao contexto imigratório, foi a expressão de uma gestão pautada na exclusão dos requerentes de asilo que não tiveram sua vida cuidada pelo Estado.
Desde a década de 1990, pode-se observar que ocorrem severas transformações na gestão das migrações – os Estados nacionais dificultam cada vez mais a mobilidade dos imigrantes, principalmente daqueles que se movem do sul em direção ao norte. Os governos utilizam todo aparato necessário para limitar o trânsito migratório e intensificar a vulnerabilidade, por meio do fechamento de fronteiras e leis de asilo rigorosas.
Esse contexto se insere em uma geografia violenta, que foi exacerbada com a pandemia e expôs a desigualdade e o racismo sistêmico que sofrem os imigrantes. Nessa (in) gestão da mobilidade, que pretende invisibilizar essas populações, os Estados Unidos podem ser apontados como o principal exemplo anti-imigrante. A título de ilustração, as políticas migratórias implementadas na fronteira com o México durante o governo de Donald Trump (2017-2020) colocaram os imigrantes em trânsito sob forte desproteção e exaustão, por meio de mecanismos de contenção que os marginalizam.
A partir de 2020, com a crise sanitária deflagrada pela covid-19, as razões pautadas na segurança e na integridade territorial, antes utilizadas pelo governo estadunidense para justificar o controle militar nas fronteiras, foram complementadas por motivos de zelo pela saúde nacional. Isso se dá pela percepção, de parte da sociedade estadunidense, que associa o imigrante – principalmente o indocumentado – como vetor de doenças e ameaça ao bem-estar social.
O ex-presidente Donald Trump sustenta essa ideia em suas condutas. Em 2015, por exemplo, antes mesmo da pandemia, afirmou que, “uma tremenda doença infecciosa está se espalhando pela fronteira. Os Estados Unidos se tornaram uma lixeira do México e de muitas outras partes do mundo”, evidenciando a percepção de que os imigrantes mexicanos levam doenças infecciosas para os EUA. Portanto, a conjuntura pandêmica não apenas evidenciou as deficiências do sistema de saúde, mas também aprofundou as desigualdades presentes nos Estados.
‘US Border Closed’
Em março de 2020, Trump implementou uma das medidas mais rígidas contra os imigrantes de todo seu governo: a invocação do Title 42 da Public Health Safety Act, que forneceu respaldo jurídico para que o presidente pudesse fechar a fronteira terrestre com o México. Essa lei permitiu que os agentes da Border Patrol recusassem e expulsassem os imigrantes, sem garantir que eles dessem entrada no pedido de asilo.
O asilo é uma proteção concedida a estrangeiros que chegam à fronteira, ou que já estão nos EUA, e que atendem aos requisitos da definição de “refugiado” da Convenção de 1951. Como signatário dessa Convenção, os EUA têm o dever legal de proteger aqueles que se qualificam como refugiados. Logo, a invocação do Title 42 vai contra o direito internacional.
Apesar dos funcionários do Centers for Disease Control and Prevention alegarem que a norma não tinha base científica e que o governo deveria tomar medidas sanitárias mais específicas – como testagem em massa, fornecer equipamento de proteção individual e incentivar o distanciamento social –, a Border Patrol expulsou mais de 637 mil migrantes em 2020, incluindo em torno de 13 mil menores desacompanhados.
Outro impacto do Title 42 foi o aumento no número de mortes de imigrantes no deserto, tendo em vista que o fechamento das portas de entrada oficiais levou ao aumento da probabilidade de que os imigrantes buscassem alternativas para entrar nos EUA. Em meio a isso, somado com o calor recorde que fez no verão passado nos EUA, foram encontrados restos mortais de 227 migrantes na área desértica do Arizona. Agentes da Border Patrol disseram, em novembro de 2020, que o Title 42 fez ressurgir os “dark days” na fronteira com o México.
A contextualização da conjuntura na fronteira antes da pandemia nos dá a dimensão de que, de fato, houve uma intenção política por trás da medida decretada pelo governo Trump. Entre 2018 e 2019, houve um crescimento massivo nos fluxos migratórios de centro-americanos com as caravanas migratórias, – que são uma forma de deslocamento terrestre de grandes grupos formados tanto por famílias, quanto por menores desacompanhados – que atravessavam o território do México rumo aos EUA. Trump, que apresentou um discurso anti-imigrante desde sua chegada ao poder em 2017, respondeu com medidas para endurecer as leis migratórias e reforçar a fiscalização de forma a impedir o trânsito. Com isso, a invocação do Title 42 representou uma forma legalizada de fechar a fronteira, por meio de uma xenofobia que estigmatiza o imigrante como portador de doença e ameaça à integridade territorial.
(Artigo) Migrantes hondurenhos participam de caravana rumo aos EUA, em estrada que liga Ciudad Hidalgo a Tapachula, no estado mexicano de Chiapas, em 21 out. 2018 (Crédito: Pedro Pardo/AFP/Getty Images)
Com a chegada de Joe Biden à presidência dos EUA, em janeiro de 2021, tinha-se a esperança de que o Title 42 fosse revogado, já que o atual presidente prometeu em sua campanha uma política migratória mais humanitária. A medida segue em vigor, porém, gerando inúmeras críticas. Ao permitir a entrada nos EUA de algumas famílias, especialmente aquelas com filhos pequenos, esperava-se que Biden tivesse uma abordagem mais amigável em relação à imigração, especialmente com a América Central. O que se viu na prática, contudo, foi um salto nas apreensões na fronteira. Somente em maio de 2021, foram detidos 180 mil imigrantes, o maior número em 21 anos.
Em resposta às críticas, o governo Biden afirmou que irá manter a medida de seu antecessor e que os imigrantes devem esperar até que o sistema imigratório estadunidense seja reestruturado. Especialistas afirmam, no entanto, que o Title 42, além de não viabilizar uma política de acolhimento justa e humana, expõe gravemente os imigrantes, que ficam aguardando no México, ou fazem o caminho de volta para os seus países, e aumenta a vulnerabilidade perante a crise sanitária, visto que o governo estadunidense não fornece testes e equipamentos de proteção individual.
Deportação e a transmissão acelerada do vírus pela América Latina
Contrariando as orientações sanitárias que exigiam restrições nas viagens para conter a pandemia, o governo estadunidense não interrompeu as deportações para a América Latina. Os requerentes de asilo, cujo pedido foi reprovado, ou os que tenham ultrapassado o prazo de validade do visto, são os mais afetados por essa política.
Os EUA são conhecidos pelas deportações em massa, que geram severos traumas aos imigrantes deportados e impactam profundamente o ambiente social – tanto o do Estado responsável por essa ação, quanto o do país de origem. Além disso, fortalece a marginalização estrutural do grupo migrante.
A administração Trump manteve as deportações em ritmo acelerado durante a pandemia, operando centenas de voos para países com alto grau de transmissibilidade do novo coronavírus. Em maio de 2020, foi confirmado que mais de 100 imigrantes deportados testaram positivo quando chegaram a seus países de origem, já que não foram realizados testes antes do embarque e não tiveram acesso a cuidados médicos enquanto estavam detidos nos EUA.
Dessa forma, as práticas estadunidenses de deportação expuseram outros países ao risco ampliado de contágio. Diferentes governos pediram aos EUA que interrompessem os voos – o presidente da Guatemala, Alejandro Giammattei, tentou suspender, em março de 2020, o “vuelo maldito”, mas teve de ceder após ameaças de sanções do governo Trump. Além disso, o governo estadunidense politizou a assistência humanitária, concedendo respiradores e equipamentos utilizados nos hospitais para o tratamento do coronavírus a países que cooperassem com sua política de migração e, ao mesmo tempo, não permitindo que fossem destinados à Guatemala, que buscava interromper as deportações.
Configurou-se, assim, um novo estigma para os deportados em seus países: o de que são transmissores do vírus e uma ameaça à população. Há diversos relatos de cidadãos deportados que foram sujeitos a essa rotulação e sofreram uma quarentena inadequada, com violações de seus direitos. Esse foi o caso das pessoas que, após o retorno, ficaram reclusas durante longos períodos em instalações superlotadas, portanto, em condições prejudiciais à saúde. A vulnerabilidade deflagrada pelo processo de deportação transcende a fronteira dos EUA.
Precariedade dos centros de detenção
Os Estados Unidos mantêm a maior infraestrutura de detenção de imigrantes do mundo. Associada à criminalização da migração em massa, a política de detenção é vista como uma prática de controle da indesejável mobilidade humana nas fronteiras, em que os Estados visam à identificação, prevenção de fuga e fácil deportação. Exemplifica, assim, a violência contra os imigrantes corroborada pelo Estado, sendo um mecanismo fundamental na governança contemporânea da migração. No caso dos EUA, podem-se citar ainda a separação de famílias e o aprisionamento de crianças em ambientes com temperaturas baixas, conhecidas como hieleras.
Ainda que o orçamento seja elevado – somente em 2016, combinado com a fiscalização das fronteiras, o valor foi de US$ 19 bilhões –, a infraestrutura dos centros de detenção estadunidense é precária. Consiste em um conjunto de instalações, cujas estruturas físicas podem conter ou não janelas, salas comunitárias, espaços para dormir, e proximidade física entre os imigrantes e os guardas. Além disso, o acesso aos cuidados médicos pode não ser garantido de maneira adequada.
Em meio à pandemia, os requerentes de asilo são confinados nessas condições, onde o distanciamento físico não é assegurado. Há relatos de que a Immigration Customs Enforcement (ICE), agência responsável por administrar as detenções, testa somente aqueles imigrantes que apresentem sintomas, e a testagem não é imediata. A agência informou que, até 30 de junho de 2021, a população detida era de 26 mil imigrantes, sendo um total de 851 casos positivos. Desde o início da pandemia, foi relatado aproximadamente 18 mil imigrantes sob custódia infectados e nove óbitos. Especialistas apontam que os números de mortes podem ser ainda maiores, dado que a agência não contabiliza as pessoas que morreram depois que foram liberadas para ir ao hospital, além de possíveis subnotificações.
‘Ajude-nos. Estamos com medo da covid-19’: Presas protestam contra as condições inseguras em centro de detenção migratória, em Louisiana (Crédito: Reuters)
Um relatório da Detention Watch Network, “Hotbeds of Infection”, de dezembro de 2020, expõe que as falhas e a má gestão do ICE infectaram e mataram imigrantes, além de terem contribuído significativamente para a propagação do vírus pelo país. De acordo com esse documento, em agosto de 2020, cerca de 5,5% dos casos nos EUA foram atribuídos à disseminação dos centros de detenção. Outro diagnóstico, How ICE’s Mishandling of COVID-19 Fueled Outbreaks Around the Country, de The New York Times, de abril de 2021, também relatou a situação. Segundo o jornal, as taxas de contágio nas detenções são 20 vezes maiores do que na população em geral e cinco vezes maiores do que nas penitenciárias. O relatório concluiu, ainda, que o ICE poderia ter libertado muitos detidos para ajudar a limitar a transmissão.
É importante ressaltar que os autores dos relatórios evidenciaram que não são os imigrantes que espalham a doença, mas sim o regime de detenção que acarreta doenças e vulnerabiliza os imigrantes e as comunidades ao seu redor, ao criar uma espécie de hotspot ideal para incubar o vírus e ampliar sua disseminação. Somado a essas condições, o ICE manteve as transferências dos imigrantes entre suas unidades, sem a realização prévia dos testes de covid-19. Dessa forma, nota-se o descaso do ICE em proteger os direitos humanos básicos, a omissão médica e a falta de transparência na forma como detém as pessoas, o que provoca graves ameaças à saúde pública.
Vacinação tardia
Embora mais de 67% dos cidadãos adultos estadunidenses já tenham recebido pelo menos uma dose da vacina, até maio de 2021, menos de 7% dos imigrantes sob custódia em todo país estavam imunizados. E, por enquanto, não se tem um plano conciso para vaciná-los, levando a questão a ser discutida nos órgãos federais e estaduais sobre quem teria a responsabilidade de fornecer os imunizantes.
Durante meses, o ICE se recusou a assumir essa responsabilidade, demorando ainda mais na imunização dos imigrantes expostos diariamente ao vírus. Em março deste ano, a agência publicou um documento intitulado COVID-19 Pandemic Response Requirements, em que atribuía aos centros de detenção a obrigação de obter as vacinas com os departamentos de saúde estaduais. Alguns governos estaduais informaram, porém, que não têm a função de fornecer assistência médica para pessoas sob custódia federal, como os detidos pelo ICE. Em vista disso, a imunização nas detenções está sendo feita de forma irregular, inclusive nos locais onde houve surtos de contaminação recentemente.
A situação, contudo, é ambígua, já que os EUA têm um excedente de vacinas e planejam exportar e doar 80 milhões de doses para outras nações. Além de que, estados como Nova York, que afirmaram não ter a intenção de imunizar os requerentes de asilo, são um dos pioneiros em um novo modelo de incentivo ao turismo, o vaccine tourism. A política tem como objetivo recuperar a economia local, por meio da disponibilização de vacina gratuita em pontos turísticos para visitantes de qualquer nacionalidade que desejam ser imunizados.
Os defensores dos direitos dos imigrantes também apontaram que a ICE deve informá-los apropriadamente sobre a vacina, garantindo a possibilidade de que as pessoas conversem com um médico para entender o procedimento. Isso é reforçado pelas denúncias de que alguns imigrantes não estavam se imunizando, por motivo de ceticismo em relação às estruturas médicas da agência, ou devido ao desinteresse dos funcionários em comunicá-los sobre a disponibilidade da vacina.
Reflexões finais
Se antes da pandemia os imigrantes já eram marginalizados e sofriam com uma contínua desproteção, com a crise sanitária e econômica da covid-19, esse contexto foi intensificado. Assistiu-se ao mundo se movimentar e criar um sistema de segregação global, em que os Estados ricos moldam tanto uma hierarquia da mobilidade, com o policiamento das fronteiras, quanto dificultam o acesso dos países pobres, ou das populações vulneráveis dentro do seu território, à vacina e às estruturas de saúde.
Nos Estados Unidos, esse desdobramento foi materializado pela imobilidade gerada pelo fechamento das fronteiras com o México, pela falta de distribuição de máscaras e por uma vacinação lenta nos centros de detenções. Assim, na prática, pode-se observar uma política de exclusão que, através de um racismo sistêmico, abstém-se de cuidados àqueles que buscam asilo. Torna-se mais vantajoso a exclusão desses imigrantes em centros longe dos espaços urbanos, ou por meio de uma exclusão definitiva das deportações em massa. Os requerentes de asilo se veem, assim, reféns da incerteza jurídica e de uma espera prolongada, intensificadas além das violações já sofridas para uma exposição às ameaças sanitárias.
O governo Biden tem, deste modo, o grande desafio de reestruturar as políticas de acolhimento, que, por anos, vulnerabilizam e intensificam o sofrimento dos imigrantes. O questionamento que fica para os próximos meses é se o presidente irá conseguir mudar as diretrizes de uma gestão migratória que parece ter suas bases enraizadas na exclusão e no preconceito contra os imigrantes.
* Anna Paula Ramos é mestranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP – Unicamp – PUC-SP). Bacharel em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Álvares Penteado-FECAP.
** Artigo publicado originalmente no site do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI/Ippri-Unesp), em 11 ago. 2021. Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, do INCT-INEU.