O que o Brasil faz no Mar Negro aliado à OTAN?
Membros da Marinha americana no destroier ‘USS Ross’, no Mar Negro, em 7 jul. 2021 (Crédito: Efrem Lukatsky/AP)
Por Williams Gonçalves*
Homens da Marinha do Brasil participaram do megaexercício naval realizado no Mar Negro entre 28 de junho e 10 de julho, sob a liderança dos Estados Unidos e da Ucrânia. O exercício reuniu 5.000 militares, 30 países integrantes da OTAN, 32 navios, 40 unidades aéreas de transporte e 18 forças especiais, que se dedicaram a exercícios de guerra naval, submarina, anfíbia, terrestre e aérea. Denominada pelos organizadores Brisa Marinha (Sea Breeze), a manobra foi organizada pelas Forças Navais EUA/África, que engloba a Sexta Frota, cujo quartel-general é sediado em Nápoles. As Forças Armadas brasileiras foram convidadas a participar do evento na condição de parceiras da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
O exercício teve o indissimulável objetivo de apoiar a Ucrânia em seu contencioso com a Rússia, a propósito da Crimeia. Em virtude do total apoio prestado pela Aliança Atlântica à Ucrânia, o Mar Negro se converteu em área de confrontação dessa coalizão militar com a Rússia. No entendimento do presidente Vladimir Putin, a manobra militar constitui uma provocação que pode ter resultados funestos, uma vez que os russos não admitem abrir mão da Crimeia para os ucranianos, independentemente de terem, ou não, apoio dos Estados Unidos e da OTAN. Como prova dessa disposição da Rússia em não aceitar intervenção estrangeira nessa questão, um navio patrulha desse país havia efetuado disparos contra o destroier britânico “HMS Defender”, sob a alegação de o mesmo ter violado águas territoriais russas na península da Crimeia, no mês de junho passado.
Essa inédita inclusão do Brasil em exercícios navais da OTAN em contexto tão delicado levanta algumas questões que merecem reflexão.
Em texto intitulado Inédito! Brasil Participará do Exercício Sea Breeze da OTAN, em que não esconde o entusiasmo com que encarou o convite feito pelos norte-americanos à Marinha do Brasil, o site orbisdefense.com, fez a seguinte consideração a respeito do assunto, de inspiração indisfarçavelmente oficial: “O megaexercício multinacional oferece a oportunidade para o pessoal das nações participantes se engajarem em treinamento marítimo realista para adquirir experiência e trabalho em equipe e fortalecer a interoperabilidade, enquanto a OTAN e o líder máximo Estados Unidos da América caminham em direção a objetivos mútuos”.
Do ponto de vista exclusivamente operacional, é perfeitamente compreensível o entusiasmo com que o assunto é apreciado pelo referido site. Militares sempre desejam ação. Afinal, seu ofício consiste em se preparar para entrar em ação. Por isso, é sempre bem-vinda a oportunidade de participar, observando como agem os militares que estão à frente de forças muito superiores, assim como de conhecer os recursos tecnológicos empregados. Essa participação valoriza a carreira dos militares engajados, distinguindo-os pela experiência adquirida. É a dimensão político-estratégica da questão que requer, no entanto, considerações mais detidas, uma vez que tal participação brasileira representa mudança muito significativa da política de defesa do país.
Elemento desestabilizador das relações Brasil-China
Política de defesa e política externa devem andar de mãos dadas, ou, caso se prefira, constituem verso e anverso da mesma moeda. A política externa estabelece os objetivos a serem alcançados pelo Estado, por meio da diplomacia. A depender da visão do sistema internacional das forças que governam o país, fixam-se os objetivos a serem alcançados, com a natural definição de aliados principais, aliados secundários, adversários. Do mesmo modo, traçam-se as linhas de ação a serem seguidas pela diplomacia nos foros internacionais pertinentes, constituindo-se, assim, em interesses nacionais.
A política de defesa caminha junto coma política externa, porque ela deve apoiá-la e agir, mediante o emprego dos recursos militares, sempre que a diplomacia esgotar seus recursos dialogais e, por essa razão, a soberania nacional for ameaçada. A política de defesa consiste, portanto, no recurso de última instância da política externa, razão pela qual não faz sentido estarem divorciadas.
Essa associação não é, porém, automática. Na prática, esta conciliação apresenta problemas. Em tese, a política externa é resultante do livre-arbítrio do governo, e muda mais facilmente que a política de defesa. Em um Estado democrático, ao ser eleito, o governo recebe da maioria dos cidadãos a autorização para praticar a política externa condizente com suas ideias e aspirações. Nem sempre, porém, a política de defesa pode acompanhar pari passo a política externa elaborada pelo governo, sob pena de enfrentar sérias dificuldades ou, o que é muito pior, ter de abrir mão de princípios e de ideias que lhes eram muito caras. Como uma política de defesa pode apoiar uma política externa que não mantém correspondência com qualquer interesse material objetivo dos diferentes segmentos sociais e que representa tão somente uma mal definida formação ideológica do círculo governante?
Voltando à questão da participação brasileira no exercício Brisa Marinha, podemos apontar alguns problemas, a partir das considerações acima.
O exercício naval no Mar Negro foi inaugurado com pompa e circunstância. Em 10 de junho, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, assumiram um compromisso por eles batizado de Nova Carta do Atlântico. O título dado ao acordo tem a explícita intenção de se remeter à Carta do Atlântico, assinada pelo presidente Franklin Roosevelt e pelo premiê Winston Churchill, a bordo do encouraçado da Marinha Real “HMS Prince of Wales”, em Terra Nova, em 14 de agosto de 1941. Naquela ocasião, os Estados Unidos se comprometiam a prestar apoio à luta contra o nazifascismo e a estruturar, no Pós-Guerra, uma ordem internacional liberal. O acordo não era de todo favorável aos interesses britânicos, mas estes não podiam dispensar o apoio norte-americano para enfrentar os inimigos de guerra.
Mais bem expresso na ideia de livre-comércio, liberalismo norte-americano ia de encontro aos interesses britânicos de conservar seu império colonial. Ao assinarem a Nova Carta do Atlântico, Joe Biden e Boris Johnson pretendem conferir ao presente acordo dimensão comparável àquele assinado pelos ilustres antecessores. Projetam uma nova ordem internacional pós-covid-19, equivalente, portanto, ao pós-Segunda Guerra Mundial. Para ela, apresentam-se desde já como os defensores dos valores democráticos, definindo Rússia e China, antecipadamente, como Estados transgressores dessa mesma ordem. Em poucas palavras, Biden relança ostensivamente o projeto hegemônico dos Estados Unidos para o mundo que virá a se reestruturar após o flagelo da covid-19.
Johnson e Biden olham documentos ligados à Carta Atlântica original, em encontro bilateral à margem da cúpula do G-7, em Carbis Bay, Inglaterra, em 1o jun. 2021 (Crédito: Brendan Smialowski/AFP via Getty Images)
Em vista do exposto, a questão que se apresenta é a seguinte: ao participar do exercício militar no Mar Negro sob o comando dos Estados Unidos e da OTAN, opondo-se claramente à soberania sobre a Crimeia, o Brasil praticamente rompe os laços que o atavam ao BRICS. Ao mesmo tempo, submete-se ao projeto norte-americano de relançar sua hegemonia sobre a América Latina.
Não se pode deixar de considerar que, ao renunciar a uma existência nacional autônoma e ao se colocar como Estado submetido à política de poder dos Estados Unidos, o Brasil se coloca não apenas contra a Rússia, com a qual as relações nunca foram muito intensas, é verdade, mas se coloca contra a China. Com a China, há que se reconhecer, a questão é diferente. Para os Estados Unidos, a Rússia é uma inimiga geopolítica, posto que os norte-americanos não aceitam a ideia russa de recuperar territórios e influência da época da União Soviética e também porque consideram a aliança russo-chinesa incompatível com sua ideia de hegemonia. A China, por sua vez, é uma concorrente em trajetória ascensional, que não constitui ameaça militar imediata, mas ameaça ultrapassar os Estados Unidos na capacidade econômica e tecnológica.
Pois é justamente com a China que o Brasil entretém os mais apertados laços econômicos. Além dos investimentos diretos, a China pode ser considerada importante esteio da economia brasileira, responsável pela maior parte das importações provenientes do agronegócio, que é o atual mais importante setor produtivo do país e uma das bases políticas de apoio do governo Bolsonaro. Desse modo, como conciliar a dependência econômica para com a China com a participação em uma coalizão político-militar que tem a China como inimiga? É evidente que essa posição ambígua apenas enfraquece o poder nacional. Apesar de depender economicamente da China, o Brasil deixa de constituir como parceiro confiável aos olhos chineses. O imbróglio do governo com a embaixada chinesa a propósito da vacina é exemplo irretocável dessa situação.
Atlântico Sul em xeque
Outro importante problema que o entusiasmo militar brasileiro com a aliança militar com os Estados Unidos e a OTAN coloca é que esta política de associação é incompatível com a ideia de Atlântico Sul até então defendida pela Marinha do Brasil.
Em seu ponto 2.3.10, a Política Nacional de Defesa do Brasil registra que “(…) a América do Sul, o Atlântico Sul, a Antártica e a África Ocidental detêm significativas reservas de recursos naturais, em um mundo já cioso da escassez desses ativos. Tal cenário poderá intensificar a ocorrência de conflitos nos quais prevaleça o uso da força, ou o seu respaldo para a imposição de sanções políticas e econômicas, com eventual militarização do Atlântico Sul, área cuja consolidação como Zona de Paz e Cooperação revela-se fundamental para resguardá-la da interferência de interesses não legítimos”.
Todo pensamento estratégico da Marinha do Brasil havia sido garantir a defesa do Atlântico Sul, com vistas a proteger não apenas a economia do petróleo do país, mas também todas as potenciais riquezas situadas no fundo do mar. Para exprimir a importância desse pensamento estratégico, elaborou-se o conceito geopolítico de Amazônia Azul. Com a ideia de Amazônia Azul, a Marinha pretendia chamar a atenção da sociedade brasileira para a importância do mar para o país, incutindo nos brasileiros a ideia de que o mar também pertence ao país e que, nele, estão riquezas tão ou mais valiosas das que são encontradas em terra. Pretendia-se, com isso, mostrar aos brasileiros que investir na Marinha significava investir na proteção das rotas marítimas, proteger-se de eventuais agressores e garantir para o país a exploração dos recursos do fundo do mar.
Em consonância com essa ideia, buscou-se também manter boas relações com os países do litoral oriental da África, particularmente com os de expressão portuguesa. Buscou-se reforçar o projeto iniciado quando do governo do presidente José Sarney de fazer do Atlântico Sul uma zona desnuclearizada e de paz e de cooperação. Como parte desse programa político, a Marinha do Brasil se empenhou em contribuir para a organização da Marinha da Namíbia. Estabeleceu, assim, vínculos fortes com esse país, evitando-se, dessa forma, a aliança de uma potência hostil ao Brasil em tão importante ponto estratégico do Oceano.
A vinculação do Brasil à OTAN na condição de Estado parceiro põe em questão todo esse pensamento estratégico. Isso porque países da OTAN têm interesses importantes no Atlântico Sul e, inclusive, não reconhecem a denominação Atlântico Sul. Para os países da OTAN, entre eles Portugal, o Oceano Atlântico é uno. Apesar de o tratado militar reunir países do Atlântico Norte, esses mesmos países consideram que particularizar o Sul é abusivo. Naturalmente que, por exercerem soberania sobre territórios na região, como é o caso da França (Guiana) e da Inglaterra (Malvinas), e por considerarem supostos direitos históricos, como é o caso de Portugal, países da OTAN se recusam a aceitar o conceito de Atlântico Sul.
Em vista disso, a outra questão que se apresenta é: como participar de uma coalizão que é contrária aos seus próprios interesses?
Como se pode concluir, a decisão de participar dos exercícios militares organizados pelos Estados Unidos e pela OTAN é muito grave, pois representa o rompimento com os princípios que norteavam uma política de defesa do país resultante de longo processo de maturação e que tinham por objetivo assegurar autonomia estratégica para o país. Ao assimilar a ideia de que Rússia e China, ex-parceiros do BRICS, são potências inimigas, os decisores brasileiros adotam uma nova política de defesa que, além de não passar pelo mesmo processo de maturação da política antes vigente, tem como ponto focal a dócil submissão à política hegemônica dos Estados Unidos. E é indubitável que o aspecto mais grave dessa política de defesa ora praticada, senão mesmo incompreensível, é admitir que o país que mais influi no desempenho da economia brasileira hoje, a China, passa a ser considerada nação inimiga. Por fim, os elaboradores da nova política devem à sociedade, evidentemente, a explicação sobre as razões que determinam essa inimizade.
* Williams Gonçalves é pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU) e professor de Relações Internacionais da UERJ e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval (PPGEM-EGN).
** Recebido em 25 jul. 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
Edição e revisão final: Tatiana Teixeira.
Assessora de Imprensa do OPEU e do INCT-INEU, editora das Newsletters OPEU e Diálogos INEU e editora de conteúdo audiovisual: Tatiana Carlotti. Contato: tcarlotti@gmail.com.
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