Construção das bases discursivas e premissas do liberalismo internacionalista no papel dos EUA
Bandeira americana no cemitério de Sugar Grove, em Wilmington, Ohio, em 28 out. 2010 (Crédito: John M. Cropper/Flickr)
Série Excepcionalismo Americano: discursos, símbolos e narrativas de uma nação
Por Glória dos Santos de Sousa*
Há uma série de termos e valores comumente associados aos Estados Unidos da América no plano internacional, como democracia, livre-comércio e liberdade. Ao longo dos anos, governos e personalidades se apropriaram desses mesmos vocábulos inúmeras vezes para justificar posições diametralmente opostas. De fato, a tradição liberal tem raízes profundas na estrutura institucional estadunidense, de forma a resistir às transformações de uma das sociedades mais dinâmicas do mundo.
Neste texto, examino o perfil de atuação internacional dos Estados Unidos da América com base nos conceitos de excepcionalismo e de Grande Estratégia, de modo a destacar a forma como ambos se desenvolveram no país e seus reflexos na definição de objetivos, ameaças e modus operandi estadunidense. Em paralelo, este artigo relaciona as duas noções com a evolução do imaginário liberal. Vale mencionar que não se trata da análise de um governo, ou de período específico, mas sim de uma reflexão que busca ressaltar permanências e mudanças ocorridas, tecendo um panorama teórico geral das bases do pensamento americano e como tem sido aplicado.
A Grande Estratégia Liberal
No livro A Grand Strategy for America (Cornell University Press, 2003), Robert Art afirma que a ideia de Grande Estratégia remonta, essencialmente, a uma perspectiva militar. Segundo o autor (p. 2), mais do que definir os objetivos gerais almejados pelo Estado na senda internacional, ponto compartilhado com a política externa, haveria como preocupação central o emprego mais eficiente do aparato militar para alcançá-los. Assim, a Grande Estratégia é um conceito amplo e que lida diretamente com um instrumento estatal de extrema relevância: o poder militar.
O destaque atribuído ao poder militar não é em vão. A anarquia característica do meio internacional gera imprevisibilidade e torna a coerção mais presente, de forma que os Estados devem ser capazes de garantir seus interesses por si mesmos. Nesse sentido, completa Art (p. 4), o poder militar se torna central tanto em tempos de paz como de guerra, ao passo que permite não somente a defesa do território físico, mas também acarreta desdobramentos políticos, como a dissuasão de inimigos.
Em um primeiro momento, portanto, a justaposição dos conceitos “grande estratégia” e “liberal” parece carregar uma evidente contradição. Isso porque, no que tange ao período inicial das Relações Internacionais, o poder militar foi um tema mais abordado nos escritos realistas. O Liberalismo Clássico era visto, por sua vez, como um grupo de teorias utópicas que se edifica sobre a crença na existência de preceitos éticos compartilhados por todos e de interesses mútuos entre os Estados, e no poder das instituições de conter a anarquia.
Woodrow Wilson, ex-presidente dos EUA, foi um dos precursores do pensamento liberal na disciplina e representou bem essa mentalidade. Em seu discurso “Quatorze Pontos”, descreveu seu plano para uma nova ordem internacional pacífica no pós-Primeira Guerra Mundial, que se constituiria na base teórica para a (tentativa frustrada de) criação da Liga das Nações, em 1919. Em linhas gerais, como desenvolve John G. Ikenberry em seu texto “America’s Liberal Grand Strategy: Democracy and National Security in the Post-War Era” (Oxford University Press, 2002, p. 105), o liberalismo wilsoniano ficou conhecido pela grande carga moralista, tendo o próprio presidente afirmado que a política externa não deveria ser pautada em “interesses materiais”.
Presidente Woodrow Wilson, em um jogo de beisebol, em Washington, D.C, em 1916 (Crédito: AP)
Apesar do criticismo do Realismo no Entreguerras, Ikenberry (p. 108) afirma que a agenda liberal permaneceu presente na política externa estadunidense nas décadas seguintes, especialmente com o surgimento de um novo grupo de instituições entre as democracias do Ocidente depois da Segunda Guerra Mundial. Na prática, argumenta o autor (p. 108), os oficiais dos EUA empregaram muito das premissas liberais para compor uma nova ordem internacional, sobretudo, no que diz respeito à reconstrução da Europa e à abertura da economia global.
Frente a diferentes problemáticas do contexto do Pós-Guerra, como a busca por regulação e gestão da cooperação entre Estados, as ideias liberais buscaram propor soluções viáveis, e as pautas dessa escola teórica se tornaram mais complexas. Assim, há um afastamento do moralismo e da utopia, que dá lugar a uma compreensão pragmática e sofisticada da realidade do século XX e dos fatores que levam à estabilidade no plano internacional – o que compreende aquilo chamado por Ikenberry de Grande Estratégia Liberal (p. 103).
Em concordância com a definição de Robert Art, a Grande Estratégia Liberal aproxima as premissas do liberalismo e o conceito de segurança nacional. Com base em teses que advogam a favor dos benefícios do regime democrático, da identidade política, entre outros, os Estados Unidos tomam atitudes para atingir seus interesses e minimizar as ameaças a sua segurança.
Também vale comentar brevemente o efeito da própria teoria da Grande Estratégia Liberal. A proposta de Ikenberry de atribuir à promoção da democracia e de valores liberais um componente estratégico e militar, ainda que pouco usual, permite romper com os estereótipos de liberais e realistas e até mesmo incentivar os estadistas norte-americanos a se debruçarem sobre temas e objetivos que se afastam da temática de hard-law. Portanto, podemos pensar a Grande Estratégia Liberal como capaz tanto de perceber tendências do comportamento dos EUA quanto de influenciá-lo.
Papel do Excepcionalismo Americano
Como o termo já revela, “excepcionalismo” remonta a uma ideia de superioridade e de diferenciação. No livro Os Estados Unidos e o século XXI (Elsevier, 2012, p. 2), a professora Cristina Pecequilo (Unifesp) indica que o excepcionalismo é o primeiro dos componentes do sistema norte-americano e deriva da percepção de que o experimento da República Democrática deveria ser tomado como exemplo pelas demais sociedades. Nesse sentido, a autora ressalta que a narrativa adotada em dois episódios importantes – a Declaração de Independência (1776) e a redação da Constituição – evidencia não apenas o aspecto inovador do novo regime, como atribui ao povo dos EUA a tarefa de demonstrar o funcionamento de um bom governo.
Esse senso de dever está presente primeiro na retórica e, em um segundo momento, é incorporado à prática política. Ao longo do século XVIII, explica a autora (p. 2), surge uma grande quantidade de instrumentos discursivos que evidenciam o excepcionalismo, a exemplo das expressões que colocam os Estados Unidos como o “farol do mundo”, ou uma “cidade na colina”. Ambos destacam a visão estadunidense sobre si e sobre o mundo, além de seu papel na humanidade (de guia e de vigia).
Na política externa, o conceito de excepcionalismo se consolidou na chamada “Tradição de Washington”. Esta pensava o exercício do poder nacional a partir do “isolacionismo” e do internacionalismo unilateral, que buscam, respectivamente, preservar o país mediante o distanciamento e garantir maior liberdade ao Estado na condução das relações internacionais (Pecequilo, 2013, p. 3). Nesse contexto, a consolidação da nação era vista como sine qua non para a expansão da democracia.
A partir do século XIX, o excepcionalismo passa a justificar a projeção de poder (Pecequilo, 2013, p. 3). Sob a ótica do Destino Manifesto, a expansão dos EUA seria simultaneamente um direito e um dever, ao passo que promoveria a universalização dos ideais de democracia e liberdade (Pecequilo, 2013, p. 3). A manutenção dessa associação entre expansão e prosperidade (bem como a manutenção da imagem nacional de missionário da Doutrina Monroe) foi o motor das primeiras incursões ao continente americano e ao Pacífico no século XIX, mas também pode ser percebida, posteriormente, no discurso moralista do presidente Wilson, e mesmo no movimento de consolidação da hegemonia norte-americana no pós-Segunda Guerra Mundial.
A autora destaca também a transição da Tradição de Washington para a política externa estadunidense atual e comenta a dificuldade de Woodrow Wilson em romper com paradigmas de não engajamento, enfrentando oposição do Congresso. Tal relutância em se desprender dos conceitos que pautaram a história política americana mostra como o excepcionalismo vai além de uma opção discursiva e resultou, de acordo com a autora (p. 4), em uma nova forma de liderança internacional após 1945: a ideia de promover uma “dominação benigna”.
O estilo de liderança dos Estados Unidos passou a incorporar o internacionalismo multilateral, ainda que sem abrir mão do poder militar, complementa Pecequilo (p. 5). E, como explica a professora da Unifesp (p. 5), a precedência adquirida pelas Organizações Internacionais Governamentais era pautada na narrativa de democracia e liberdade, sendo mobilizada enquanto arena discursiva, na qual os EUA buscavam apresentar a si mesmos como um player justo e honesto, que atuava nos diferentes tabuleiros de forma a equilibrar a balança de poder. Esse movimento tornou a relação entre dominador e dominados mais complexa.
Apesar da mudança de abordagem, o excepcionalismo americano não deixou de existir. Ele permaneceu na base do pensamento como propulsor de ações concretas dos Estados Unidos e legitimando, internamente, a postura de liderança internacional, sendo adaptado segundo o contexto internacional e os objetivos estratégicos do país.
Simbiose do Excepcionalismo e da tradição liberal
Em última análise, podemos dizer que a noção de excepcionalismo e a tradição liberal estão diretamente relacionadas no que tange à postura internacional dos Estados Unidos da América. Isso porque, ainda que o excepcionalismo tenha representado no passado uma abordagem isolacionista, o conceito se apoia e se apropria dos valores liberais para justificar a posição especial dos EUA no mundo. Em outras palavras, é o liberalismo que confere substância ao argumento excepcionalista.
A Grande Estratégia Liberal seria, por sua vez, a afirmação dessa relação na prática. Por um lado, ela é composta de uma visão de mundo – e do que seria uma ordem internacional estável – que é caracteristicamente pautada nas premissas do liberalismo, e usa desse instrumental teórico para resolver as problemáticas referentes à segurança nacional. Por outro, a inclusão da democracia no centro da Grande Estratégia e a proposta de expandir esse conceito pelo mundo remetem à ideia de os EUA serem um exemplo para os demais países, além de conter a carga do discurso missionário característico do excepcionalismo americano.
* Glória Sousa é graduanda em Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio de Janeiro (IRID/UFRJ). É integrante do Grupo de Pesquisa de Política Internacional (GPPI-UFRJ), atuando na linha de pesquisa “BRICS: Parceria pela estabilidade global, segurança compartilhada e crescimento inovador”. Em 2020, foi selecionada como uma dos cinco representantes brasileiros do programa de Relações Internacionais do BRICS Educational Internship Program, na Universidade Federal do Extremo Oriente (FEFU – Vladivostok, Rússia).
** Recebido em 20 jun. 2021 e publicado com revisão e supervisão da editora do OPEU e professora colaboradora do IRID-UFRJ, Tatiana Teixeira, e do editor associado do OPEU, Rafael Seabra. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
Assessora de Imprensa do OPEU e do INCT-INEU, editora das Newsletters OPEU e Diálogos INEU e editora de conteúdo audiovisual: Tatiana Carlotti. Contato: tcarlotti@gmail.com.
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