América Latina

Terceirização da política externa estadunidense e sua relação com a América Latina

National Endowment for Democracy (NED) complementa o trabalho da CIA na promoção, instalação e manutenção da democracia e dos interesses estadunidenses ao redor do mundo (Fonte da imagem: Voltairenet.org)

Por Jahde de Almeida Lopez e Luan Corrêa Brum*

 

[…] Também consideraremos seriamente a recomendação do comitê “de que o governo deve prontamente desenvolver e estabelecer um mecanismo público-privado para fornecer fundos públicos abertamente para atividades no exterior de organizações que são julgadas merecedoras, no interesse nacional, de apoio público.’” (Presidente Lyndon B. Johnson, em resposta ao Comitê Katzenbach, 1967)

 

O trecho acima exposto em uma diretiva do presidente Lyndon B. Johnson, no ano de 1967, pode ser entendido como um atestado das pretensões do governo estadunidense em criar um mecanismo que fosse capaz de promover, de forma privada, seus interesses no exterior, sem vincular sua imagem diretamente às ações promovidas. Ainda que embrionário, esse movimento em defesa da criação desse mecanismo e de sua respectiva forma de atuação contrasta com o longo histórico de ingerência estadunidense sedimentado no uso da coerção e da promoção de arranjos autoritários no âmbito da América Latina (Robinson, 1996; Ayerbe, 2002).

Ameaçado pela ascensão de governos não alinhados aos seus interesses, Washington apoiou golpes militares em países como Guatemala (1954), Paraguai (1954), Brasil (1964), Chile (1973) e Argentina (1976), os quais foram conduzidos através da Agência Central de Inteligência (CIA) e justificados pela doutrina de segurança nacional e pelo combate à ameaça comunista. De acordo com Philip Agee, ex-agente da CIA, referindo-se ao golpe no Chile: “Para preparar o terreno para os militares, financiamos e canalizamos as forças de organizações líderes da sociedade civil e da mídia. Foi uma versão melhorada do golpe no Brasil (1964)”.

Discussões em torno de uma readaptação da estratégia dos Estados Unidos em intervir no exterior e da criação de um mecanismo que pudesse simbolizar esse esforço foram resgatadas quando da eclosão, na década de 1970, de acusações sobre um conjunto de operações secretas levadas a cabo pela CIA em favor da ascensão e da manutenção de regimes militares na região (Blum, 2001). A partir deste momento, tornou-se notório para grupos de especialistas e membros do governo estadunidense que a CIA poderia ser muito eficiente em desestabilizar, porém, era extremamente ineficiente em promover a estabilidade, e que os arranjos coercitivos e autoritários não eram mais garantidores de controle social na periferia. Como destacou Robinson (1996, p. 87), “quase quatro décadas depois que a CIA derrubou o governo Arbenz, a Guatemala permaneceu um caldeirão de insurgência guerrilheira, graves violações dos direitos humanos e instabilidade social”.

O estabelecimento de um mecanismo capaz de transferir recursos públicos e convertê-los em apoio para organizações civis em outros países seria fortalecido nos anos 1980, quando os então presidentes do Partido Republicano, William Brock, e do Democrata, Charles Manatt, escreveram ao presidente Ronald Reagan (1981-1989), destacando que: “Os Estados Unidos estão envolvidos em muitas áreas da assistência internacional, mas têm uma capacidade muito escassa quando se trata de apoiar as forças democráticas em outros países” (Brock e Manatt, 1982).

Bill Brock, G.O.P. National Chairman After Watergate, Dies at 90 - The New  York Times

Crédito: AP)

Nesse sentido, em 1982, a partir de um discurso de política externa proferido perante o Parlamento Britânico, o presidente Ronald Reagan anunciaria a criação de uma entidade que fomentaria a infraestrutura da democracia aos moldes estadunidenses no âmbito internacional. Tal organização, criada em 1983 sob o nome de National Endowment for Democracy (NED), teria como objetivo central promover ajuda na forma de assistência para a consolidação da democracia em outros países (NED, 2021). Algo que, na perspectiva de seus formuladores, preencheria uma lacuna fundamental em termos de política externa dos EUA, emulando sua noção de democracia mediante uma série de projetos de financiamento.

Conforme a retórica do anticomunismo perdia força enquanto justificativa para a ingerência dos Estados Unidos nos assuntos domésticos de outros países, a promoção da democracia foi adquirindo um significado cada vez maior dentro de sua política externa. Concomitante à criação do NED na década de 1980, tem-se observado um processo cada vez maior e mais intenso de “terceirização” da política externa estadunidense, fazendo uso de práticas que seriam impossíveis em áreas de programas governamentais (Schoultz, 2018) e direcionando montantes significativos para sua implementação. De acordo com o ex-presidente do NED Allen Weinstein, “muito do que fazemos hoje era feito secretamente há 25 anos pela CIA” (Weinstein apud Guilhot, 2003, p. 230). Mediante uma atuação mais aberta e calcada no preceito de assistência democrática, torna-se, porém, mais difícil desacreditar as ações empreendidas no âmbito do NED.

O NED se insere dentro de um esforço maior de Washington, que busca minimizar suas práticas de ingerência em outros países, tornando-as cada vez menos identificáveis, o que permite que os EUA atinjam um nível de desengajamento, ao “terceirizarem” a implementação de programas no âmbito de organizações da sociedade civil. Trata-se de um esforço, que visa a sedimentar, com base em organizações da sociedade civil de outros países, estruturas capazes de absorver tensões e manter o controle social, ao orientar estas sociedades em direções que convirjam com os interesses estadunidenses (Robinson, 1996). Por meio deste esforço, os EUA tem sido capaz de desviar a atenção do aparato estatal e governamental de outros países para grupos do setor privado, indo desde organizações não-governamentais (ONGs), sindicatos e jornais, até centros universitários e think tanks, os quais funcionam como lócus-chave de poder e controle social.

Sob a presidência de Carl Gershman, representante dos direitos humanos nas Nações Unidas sob a embaixadora dos EUA, Jeane Kirkpatrick, e símbolo maior do consenso bipartidário (Guilhot, 2003), o NED fomentaria ainda o surgimento de outras organizações que atuariam em setores considerados pilares estratégicos dos interesses estadunidenses no exterior. As partes constituintes da estrutura do NED e os principais destinatários de fundos são, seguindo a ordem de seus campos de atuação: Center for International Private Enterprise – CIPE (empresarial); American Center for International Labor Solidarity – ACILS (sindicatos); Democratic Institute for International Affairs – NDI (Partido Democrata) e International Republican Institute – IRI (Partido Republicano).

Como destaca Blum (2001), “o NED gosta de se referir a si mesmo como uma ONG (organização não-governamental), porque isso ajuda a manter uma certa credibilidade no exterior que uma agência oficial do governo dos EUA pode não ter” (Blum, 2001, p. 149). Por meio deste esforço, consegue-se ofuscar o simples fato de que o maior montante recebido pelo NED, para além de seus recursos procedentes de doadores privados, que vão desde os mais recorrentes como Facebook, Microsoft, Google, Coca-Cola e Goldman Sachs, advém do Congresso dos EUA (aprovado anualmente), e que sua alocação é realizada pela United States Agency for International Development – USAID (agência governamental). Posteriormente, estes valores são redistribuídos para as organizações pertencentes à estrutura do NED (CIPE, ACILS, NDI e IRI), as quais são responsáveis por difundir o dinheiro para financiar projetos em parceria com instituições privadas no exterior (figura 1).

Figura 1: Alocação de recurso público para o NED

Fonte: Elaboração própria.

Mediante um circuito financeiro que se origina nos níveis hierarquicamente mais altos do governo, e que passa por um filtro de redes públicas e “privadas” aparentemente desconectadas de sua origem primária, obscurece-se a ligação entre muitas das atividades de ingerência estadunidense no exterior e seus reais interesses. Trata-se de um esforço que parece ter como premissa a ideia de que se o dinheiro público for filtrado por um número suficiente de camadas burocráticas, transforma-se em financiamento “privado” (Conry, 1993 apud Guilhot, 2003). De tal modo, a confusão intencional entre “público” e “privado” se tornou, ao longo dos últimos anos, uma característica estrutural da política externa estadunidense. Diversos interesses se fundem e, ao mesmo tempo, dissipam a distinção entre atividade estatal e privada (Robinson, 1996).

O orçamento do NED ao longo de sua existência e seu constante crescimento (gráfico 1) simboliza muito bem o esforço de terceirização da atuação dos Estados Unidos no exterior, tendo em vista que a maior parcela de seus recursos advém do governo estadunidense. O restante doado pelo setor privado representa um valor pouco expressivo, se comparado ao montante canalizado do setor público. Nas duas primeiras décadas de sua atuação, os recursos absorvidos ficaram entre US$ 15 milhões a US$ 39 milhões. Nos últimos anos, porém, tem-se observado um aumento exponencial do montante de dinheiro que é canalizado pelo NED. Somente na última década o valor passou de US$ 136 milhões (2010) para US$ 300 milhões (2020).

Gráfico 1: Orçamento do National Endowment for Democracy (1984-2020)

Fonte: Elaboração própria.

Desde a década de 1980, o NED vem atuando em conformidade com a necessidade e os objetivos estratégicos dos EUA na América Latina, utilizando-se de um conjunto de valores (democracia, mercados livres e direitos humanos), como uma cortina de fumaça para seus reais interesses (Blum, 2001). Por meio desta estratégia, é possível destinar apoio e recursos para a consolidação de uma oposição de direita, que tenha capacidade de deslegitimar aqueles governos e líderes de esquerda não alinhados aos seus interesses. Desse modo, o NED atua enquanto um ator especializado em desestabilizar todo e qualquer movimento que não atenda, ou que se apresente como uma ameaça, aos interesses estadunidenses, o que é cristalizado na forma de recursos financeiros e técnicos para organizações da sociedade civil. A exemplo disso, pode-se mencionar o esforço do NED em construir uma oposição suficientemente forte que pudesse derrotar o governo sandinista nas eleições de 1990 na Nicarágua.

De acordo com Ayerbe (2002), desde a Revolução Sandinista na Nicarágua, esse país foi visto nos meios conservadores dos EUA “como uma nova Cuba prestes a incendiar toda América Central” (Ayerbe, 2002, p. 193). Logo, esse país se viu em um quadro de intenso bloqueio comercial dos Estados Unidos, assim como de fortes pressões por parte de funcionários do alto escalão do governo (principalmente os conservadores), o que acabou se acentuando com a chegada das eleições presidenciais em 1990 na Nicarágua (Martí I Puig, 2009). A partir desse momento, o NED passou a concentrar seus esforços no fortalecimento da União de Oposição da Nicarágua (UNO). Sob a égide do NDI e do IRI, canalizou aproximadamente US$ 7 milhões para um conjunto de atividades (1989-1990), cujo objetivo central era aproximar e orientar os principais líderes de uma fragmentada oposição. Nas palavras de Brian Atwood, membro do NED, “nós nos propusemos a unificar a oposição e a orientar suas atividades antissandinistas” (Atwood apud Schoultz, 2018).

De acordo com informações contidas nos relatórios anuais do NED, no que se refere aos anos de 1989 e 1990 – período este de acentuamento da corrida presidencial –, destinou-se um montante de mais de US$ 11 milhões para organizações da sociedade civil nicaraguense, em sua maioria portando nomes apartidários e alguns ainda engajados em prestar assistência técnica nas eleições (Schoultz, 2018). Todo um conjunto de apartidarismos, que buscavam disfarçar o repasse de recursos públicos do NED para os líderes da oposição sandinista. A partir deste movimento, tornou-se possível construir uma oposição unificada e que, sob a liderança da candidata Violeta Chamorro (representante da aristocracia tradicional), foi capaz de derrotar o candidato Daniel Ortega da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) nas eleições de 1990.

Por meio do CIPE, o NED ainda tem buscado, ao longo dos anos, promover uma série de programas e iniciativas, que visam a fortalecer pautas vinculadas à iniciativa privada e à promoção do livre-mercado na América Latina. No Paraguai, a título de exercer um papel educacional, promoveu um programa, em parceria com a Fundación Paraguaya, cujo resultado foi, de acordo com o CIPE, o fortalecimento do “conhecimento e das competências empresariais de cerca de 900 professores de escolas públicas” (CIPE, 2011). Martin Burt, fundador deste instituto, atuou diretamente como presidente da Câmara de Comércio Paraguaio-Americana e membro do conselho de diretores da Fundação Schwab para Empreendedorismo Social no Fórum Econômico Mundial, além de ter sido vice-ministro de Comércio do Paraguai (1991-1993), dentre outros cargos públicos.

Já no que se refere à Bolívia, o CIPE destaca, em seu relatório, o fato de que esse país “não tem sido capaz de administrar com sucesso essa riqueza (naturais) para aliviar a pobreza dos bolivianos comuns. […] Situação agravada pelo clima socialista político, ineficiência do governo e corrupção” (CIPE, 2008).

Fonte: CIPE.

Somente no período entre 2016 e 2019, o NED distribuiu diretamente, e mediante seus organismos (CIPE, NDI, IRI e ACILS), um total de US$ 99 milhões para entidades privadas na América Latina, canalizados em programas que visam a expandir e defender os interesses dos EUA, sob a forma da promoção de reformas políticas, econômicas e até mesmo educacionais. O que se camufla na forma de justificativas morais e humanitárias sob a defesa da promoção da estabilidade é, na verdade, um veículo pelo qual se objetiva encobrir o repasse de recursos públicos para a finalidade de desestabilizar e deslegitimar todo e qualquer movimento não alinhado aos interesses estadunidenses na região.

 

Notas

Os dados orçamentários do NED foram extraídos de seus annual reports e dos forms 990. Por não ter acesso aos relatórios anuais e form 990 referentes aos anos de 1998,1999, 2000 e 2020, os valores se limitam aos montantes canalizados a partir do governo dos EUA, os quais foram retirados de seus anos fiscais.

 

* Jahde de Almeida Lopez é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e membro do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Política Internacional Contemporânea (GEPPIC). Contato: jahdelopez@gmail.com. Luan Corrêa Brum é mestrando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e membro do GEPPIC. Contato: luan.brum1996@hotmail.com.

** Recebido em 20 de maio de 2021. Este trabalho não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

Realização:
Apoio:

Conheça o projeto OPEU

O OPEU é um portal de notícias e um banco de dados dedicado ao acompanhamento da política doméstica e internacional dos EUA.

Ler mais