Afeganistão e Guantánamo, os passivos que Biden espera apagar
Detentos de Guantánamo (Crédito: Joe Raedle/Getty Images News)
Por Solange Reis*
Historiadores costumam chamar o Afeganistão de cemitério dos impérios. Persas, macedônios, mongóis, britânicos, russos, e agora os americanos, todos bateram em retirada de lá carregando a derrota contra um inimigo tecnicamente inferior.
No caso dos Estados Unidos, além da mal disfarçada vergonha pela guerra perdida, é preciso retirar milhares de soldados e de toneladas de material bélico. Uma logística arriscada por terra, dispendiosa por mar, mas da qual não se pode abrir mão sem o risco de capacitar o atual inimigo, no caso o Talibã, com equipamentos de ponta deixados para trás.
Cabe a Joe Biden encerrar um guerra que George W. Bush começou, mas Barack Obama e Donald Trump não conseguiram terminar. Uma história que se repete quando se trata da prisão irregular de Guantánamo. Bush a criou, Obama descumpriu a promessa de fechá-la, e Trump achou melhor preservá-la para manter presos uns “caras maus”. O centro de detenção, que fica em uma base militar americana na baía cubana de Guantánamo (a história tem desses paradoxos), e a Guerra do Afeganistão são rebentos gêmeos do combate ao terrorismo vigente desde 2001.
11 de setembro do bem
Biden já marcou data para sair do Afeganistão, 11 de setembro de 2021, exatos 20 anos após os ataques terroristas nos Estados Unidos que levaram à doutrina da guerra contra o terror. Não foi a primeira vez que um presidente americano prometeu acabar com a Guerra do Afeganistão. Trump negociou com os talibãs uma saída das tropas em 1º de maio deste ano. Não se sabe ainda como os talibãs reagirão à postergação do prazo, mas eles já mandaram avisar que haverá consequências. A mais provável é sob a forma de ataques às forças de segurança afegãs.
O novo presidente americano está convencido de que não há mais nada a fazer por lá. Em discurso para o Congresso, em 28 de abril, explicou o porquê. “Fomos ao Afeganistão para pegar os terroristas que nos atacaram em 11 de setembro. Fizemos justiça contra Osama bin Laden e reduzimos a ameaça terrorista da Al-Qaeda no Afeganistão. Após 20 anos de valor e sacrifício americano, é hora de trazer nossas tropas para casa”. Duas décadas depois da invasão do Afeganistão para a caçada de Osama bin Laden – mentor do 11 de Setembro, morto pelos Estados Unidos no Paquistão, em 2011 –, o número de soldados americanos em solo afegão é em torno de 3.500, fora 7.000 forças da OTAN e cerca de 18.000 mercenários terceirizados pelo governo americano.
A icônica foto em que o então presidente Barack Obama e seu vice, Joe Biden, junto com a equipe de segurança nacional, recebem uma atualização sobre a Operação ‘Lança de Netuno’, uma missão contra Osama bin Laden, na Sala de Crise (‘Situation Room’) da Casa Branca, em 1° de maio de 2011. Da esq. para dir.: Biden; Obama; general Webb; conselheiro de Segurança Nacional adjunto Denis McDonough; secretária de Estado, Hillary Clinton; secretário da Defesa, Robert Gates. De é, a partir da esq.: chefe do Estado-Maior Comjunto, almirante Mike Mullen; conselheiro de Segurança Nacional, Tom Donilon; chefe de gabinete da Presidência, Bill Daley; conselheiro de Segurança Nacional do vice-presidente, Tony Blinken; diretor para Contraterrorismo, Audrey Tomason; assistente do presidente para Segurança Interna e Contraterrorismo, John Brennan; e o Diretor de Inteligência Nacional, James Clapper (Crédito: Pete Souza, então fotógrafo oficial da Casa Branca)
Nem todo mundo concorda com o líder democrata. Falcões bipartidários da política externa alegam que os Estados Unidos traem seus parceiros regionais, renunciam à liderança e fortalecem os talibãs. Até no jornalismo brasileiro houve críticas. Em editorial de 19 de abril, a Folha de S.Paulo lamentou a saída e conclui que os talibãs venceram.
De fato, exceto pela Casa Branca, é quase consensual que os talibãs ganharam a guerra. Mas nem todos os analistas consideram o resultado tão negativo. Andrew Bacevich, conhecido autor de Relações Internacionais, diz que “ao contrário do Vietnã (…) o desolador desfecho da Guerra do Afeganistão deveria provocar uma reavaliação em ampla escala da grande estratégia dos EUA”. Ele conclui que a única coisa que os Estados Unidos ganharam em troca de US$ 2 trilhões gastos na guerra talvez seja a chance de aprender a não mais cometer o mesmo tipo de erro.
Prisão dos mortos-vivos
Biden também gostaria de fechar Guantánamo no atual mandato. Nesse caso, há barreiras logística e legais quanto ao destino dos prisioneiros remanescentes. Criada em 2002 para alojar terroristas, a prisão recebeu 780 presos estrangeiros desde então. De acordo com a ONG Human Rights First, 85% deles não eram sequer suspeitos de ligação com terrorismo. Passados quase 20 anos, apenas 40 deles continuam lá. A maioria foi transferida para prisões em mais de 50 países, embora muitos nunca tenham sido formalmente acusados, ou julgados. A esse limbo jurídico, somaram-se técnicas de tortura que expuseram a imagem dos Estados Unidos como violador de direitos humanos.
Fechar a prisão e retirar os soldados do Afeganistão são medidas necessárias e corretas para enterrar esqueletos pendurados no armário do combate ao terror. “A chamada ‘guerra ao terror’ era por definição infinita, sendo o ‘terror’ uma sensação e uma tática que sempre fará parte da experiência humana. Para os americanos, a guerra passou a parecer normal, inescapável, eterna, mesmo que os ônus tenham caído sobre poucos entre eles. De certa forma, o país mais poderoso da Terra parecia incapaz de ficar em paz”, disse o analista Stephen Wertheim.
Biden não é pacifista, mas racional
A decisão de pôr fim a esses passivos militares implica desgaste político e poucos ganhos eleitorais, ainda que a maioria da população prefira o fim da guerra e não ligue para o que acontece na prisão. Biden não é um pacifista. Ao contrário, é um dos mais influentes membros da máquina de guerra americana. Em sua longa carreira política, foi a favor de guerras para transformar outros países em democracias liberais. Essa percepção implica primeiro destruir para depois reconstruir nações à imagem ocidental. Enquanto senador, fez parte por muitos anos, inclusive como presidente, do influente Comitê de Relações Exteriores do Senado. O comitê apoiou inúmeras intervenções e interferências americanas no exterior.
Apesar de suas convicções ideológicas, Biden parece ter entendido a gravidade do momento atual dos Estados Unidos e do mundo. Com um discurso voltado para a reconstrução da economia americana, mostrou que, por enquanto, a racionalidade se sobrepõe à ideologia do internacionalismo liberal. “Embora o cenário desta noite seja familiar, esta reunião é muito diferente — uma lembrança dos extraordinários momentos em que nos encontramos. Ao longo de nossa história, os presidentes vieram a esta Câmara para falar ao Congresso, à nação e ao mundo. Para declarar guerra. Para celebrar a paz. Para anunciar novos planos e possibilidades. Hoje à noite, venho falar sobre crise — e oportunidade”, declarou diante dos congressistas.
É muito significativo que seu primeiro discurso para o poder legislativo, aquele que tem a autoridade para declarar guerras, tenha começado se referindo a guerra e paz como algo anacrônico. Não que o presidente acredite verdadeiramente nisto. Basta ver que seu orçamento militar foi requerido na ordem de US$ 715 bilhões, um aumento de 1,6% em relação ao ano anterior. Mas o democrata sabe que é hora de arrumar a própria casa antes de voltar a se meter nas dos outros.
Os Estados Unidos saem do Afeganistão deixando um saldo de mais de cem e cinquenta mil mortos, entre civis, militares ocidentais, soldados afegãos, mercenários e combatentes opositores, além de mais uma lápide no cemitério dos grandes.
* Solange Reis é doutora em Ciência Política pela Unicamp, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu). Contato: reissolange@gmail.com.
** Recebido em 29 abr. 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.