Relações EUA-Turquia: há espaço para um reset?
Os presidentes Joe Biden e Recep Tayyip Erdogan (Crédito: AP)
Por Vlademir Monteiro*
As relações bilaterais entre Estados Unidos e Turquia atravessaram uma intensa deterioração nos últimos anos. Crises e antagonismos deram a tônica nas interações de ambos os países. No centro destas animosidades, estão divergências e interesses conflitantes em assuntos estratégicos tanto para Ancara quanto para Washington. Agora, porém, o advento de uma nova administração na Casa Branca fornece oportunidades para um reset.
As tensões recentes refletem os rumos tomados pela política externa de cada país de 2008 para cá. Sob o comando de Erdogan, o governo turco assumiu um viés autonomista, de modo a suavizar o alinhamento ocidental e a diversificar os horizontes do engajamento externo. Nesse sentido, ocorre uma recalibragem da projeção internacional. Em vez da condição de potência intermediária, com pouco espaço para protagonismo, atribui-se à Turquia o papel de potência regional. Há duas consequências disto. Por um lado, significa a priorização da defesa dos interesses nacionais em detrimento de preferências coletivas. Naturalmente, essa postura cria pontos de tensão com seus aliados. Por outro, a adesão dessa abordagem também indica a regionalização da política externa. Do ponto de vista geopolítico, Ancara passa a enfatizar a projeção no Oriente Médio.
A inflexão da política externa norte-americana decorre, por sua vez, das preferências adotadas pela administração Obama. O descontentamento da opinião pública, junto com as restrições orçamentárias, criou um ambiente doméstico pouco favorável a comportamentos ofensivos ao estilo praticado pelo governo de George W. Bush. Ou seja, há uma indisposição geral em se envolver em intervenções externas que demandem o estacionamento massivo de tropas e a alocação de recursos, como as ocorridas no Iraque e no Afeganistão.
O então presidente dos EUA, George W. Bush (dir.), recebe o então primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan, no Salão Oval da Casa Branca, em Washington, D.C., em 2 out. de 2006 (Crédito: Jay L. Clendenin-Pool/Getty Images)
Sob essas circunstâncias, o democrata estabelece uma doutrina que gravita em torno do princípio “leading from behind”. Em termos práticos, Washington não abdica de sua proeminência, mas reduz seu engajamento no teatro global. Ocorre, então, uma reformulação da projeção estratégica em alguns cenários. O aspecto central disso é a delegação de tarefas e de responsabilidades a atores locais aliados dos Estados Unidos.
Precária leitura do cenário
Apesar de divergentes, essas trajetórias apresentam pontos de interseção. Um deles é a revolta na Síria. Naturalmente, os atores em tela delineiam suas respostas à crise em concordância com os vetores em voga na política externa de cada um deles. Embora a destituição de Bashar al-Assad tenha sido um objetivo comum, a evolução do conflito tornou suas agendas incompatíveis. À medida que ocorre a escalada da luta armada, não apenas Erdogan amplia seu envolvimento, mas também espera de Obama o mesmo comprometimento na derrubada do ditador. Essa expectativa indica, porém, uma leitura equivocada por parte das lideranças turcas a respeito do momento de inflexão da potência atlântica e, sobretudo, sua postura no tocante aos assuntos do Oriente Médio.
Havia pouco espaço de manobra na política interna dos EUA para acomodar empreitadas militares, uma vez que a plataforma eleitoral do presidente democrata se pautara pelo fim das guerras na região. Os desentendimentos se intensificariam com a patronagem norte-americana aos curdos. Mesmo sendo coerente com o “leading from behind”, o expediente revela uma miopia estratégica, em que interesses a curto prazo (no caso, a derrota do ISIS) preponderam acima do risco de alienar um importante aliado no Oriente Médio.
A autonomia perseguida por Erdogan criou condições para que, diante de tais constrangimentos, seu país pudesse preservar seus interesses em vez de ter uma conduta passiva. O custo disso, da perspectiva estadunidense, é uma fragilização da aderência de Ancara ao arranjo euro-atlântico. Em outras palavras, a Turquia se desprende da órbita de Washington. Ainda que esse processo não signifique, de modo algum, uma ruptura formal, com uma eventual saída da OTAN, por exemplo, ele representa uma mudança substancial na postura da Turquia, tendo em vista a disposição de seus líderes em confrontar seu aliado. Em termos concretos, constatam-se esforços para balancear o comportamento norte-americano, que culminam no alinhamento estratégico com a Rússia.
Presidente Barack Obama e o então premiê turco, Recep Tayyip Erdogan (Crédito: Larry Downing/Courtesy Reuters)
Da perspectiva de Ancara, o ônus dessa postura assertiva se manifesta nas tentativas de Washington de penalizá-la por aquilo que pode ser considerado uma defecção. Observa-se, então, a mobilização de instrumentos coercitivos para elevar os custos da transgressão. Nesse sentido, uma das primeiras medidas implementadas se trata da expulsão dos turcos do programa de desenvolvimento dos jatos F-35, em 2019. No ano seguinte, o Congresso norte-americano acionou o dispositivo legal CAATS (Countering America’s Adversaries Through Sactions Act) para impor sanções contra o governo turco pela compra do sistema S-400 da Rússia.
Escolhas difíceis para Biden
Com o novo ocupante da Casa Branca, emerge o questionamento: é possível que as relações melhorem, ou continuem em sua tendência de debilitação? Fica evidente que o padrão de interação até aqui gera prejuízos para ambas as partes. Em um momento em que a política internacional se define pelo retorno da competição entre as grandes potências, a perda de um aliado de longa data não adiciona qualquer incremento à posição dos Estados Unidos, em uma região tão vital a seus interesses como o Oriente Médio.
Na verdade, os decisores norte-americanos deveriam evitar fissuras em sua rede de alianças. Do contrário, abrem flancos que os adversários podem facilmente explorar para cooptar parceiros. Tampouco é totalmente proveitoso para Ancara uma ruptura com a grande potência atlântica. Embora a aproximação junto à Rússia tenha resultado em ganhos táticos, principalmente, no contexto da Guerra da Síria, a colaboração não está longe de ser vantajosa. Se, por um lado, Erdogan conseguiu aliviar as pressões de Moscou, por outro, tornou-se ainda mais seu refém.
Diante desse cenário, há espaço para resetar as relações? Certamente sim, mas as dificuldades abundam. É necessário boa vontade e concessões, o que torna esse resultado pouco provável. Do lado turco, prevalecem ressentimento e suspeitas. E com razão, pois não há nenhum sinal da administração Biden de ajustar sua cooperação com os curdos para acomodar as demandas de Ancara. Além do mais, ainda que assuma uma conduta pragmática, o viés normativo da política externa de Biden – que dentre outras coisas, prioriza a agenda democrática – complica o diálogo com Erdogan, dado seu autoritarismo e o desmantelamento das instituições pluralistas na Turquia.
À luz disso, as escolhas de Biden transitam entre encapar a bandeira dos direitos humanos, mas arriscar um maior alienamento das lideranças em Ancara, e/ou fazer vista grossa ao histórico autoritário e buscar a reabilitação das relações bilaterais. Em um cenário em que a segunda opção fosse selecionada, porém, seu êxito seria incerto, em face das amarras impostas por decisões passadas de Erdogan. O reatamento das boas relações com a Casa Branca poderia reverberar de forma negativa sob os vínculos com a Rússia. Dificilmente o Kremlin não enxergaria nisso algum tipo de ameaça a seus interesses e agiria para minar as posições turcas no Mar Negro, no Cáucaso e no Oriente Médio.
Em suma, o grande desafio para ambos os lados é contornar os trade-offs envolvidos. Independentemente disso, alcançar um modus vivendi em que os interesses de ambos sejam servidos é imperioso.
* Vlademir Monteiro é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPE e membro do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Segurança Internacional (GEESI). Contato: vlademir.monteiro@hotmail.com.
** Recebido em 14 abr. 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.