Falas de Biden elevam tensão entre EUA e Rússia
Ativistas usam máscaras dos presidentes Vladimir Putin e Joe Biden, em protesto no Portão de Brandemburgo, em Berlim, em 29 jan. 2021 (Crédito: John MacDougall/AFP via Getty Images)
Por Larissa Caroline S. da Silva*
Em entrevista concedida à emissora ABC, em 17 de março, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, afirmou que Vladimir Putin “pagará um preço” pela tentativa de intervir na eleição presidencial norte-americana de 2020. A fala veio após um relatório entregue pela comunidade de Inteligência ao presidente. No informe, chegou-se à conclusão de que o governo russo interferiu nas eleições com o objetivo de desacreditar a candidatura de Biden, buscando favorecer Donald Trump.
Na mesma conversa, o jornalista George Stephanopoulos perguntou ao presidente se ele achava que Putin era um “assassino”, ao que Biden responde: “eu acho”. Os comentários do democrata sobre o presidente Vladimir Putin geraram manchetes, reportagens e comentários na mídia e reações da contraparte russa. Ainda na quarta-feira (17), o embaixador russo sediado em Washington, Anatoly Antonov, foi convocado a retornar a Moscou. A justificativa oficial foi de que o retorno era necessário para avaliar os primeiros 100 dias de Biden no cargo de presidente. Além dessa convocação, no dia seguinte (18), o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, declarou que nunca houve, na história, nada parecido com a declaração do presidente norte-americano. E que, para ele, estava claro que Biden não quer melhorar as relações com a Rússia.
O governo russo disse ainda que Washington continua praticando a “diplomacia do megafone”, que tem como principal objetivo manter uma imagem negativa da Rússia. Os Estados Unidos, segundo a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Federação Russa, Maria Zakharova, estão demonizando os russos e são os responsáveis pelos impasses que existem na relação bilateral. Enquanto isso, em uma conferência com representantes da península da Crimeia, no dia 18, Putin garantiu que não se deixará intimidar por Washington. O presidente russo ainda desejou saúde a Biden e o chamou para um debate on-line, ao vivo, para discutir sobre a política mundial (o que foi de pronto recusado).
Presidente russo, Vladimir Putin, discursa em sua conferência anual em Moscou, em 20 dez. 2018 (Crédito: Alexander Zemlianichenko/CAP Photo)
Escalada de sanções e instabilidade: a relação Biden-Putin
A troca de farpas entre Biden e Putin não é algo novo, e suas posições conflitantes em determinados assuntos, também não. Ambos estiveram em lados opostos após a guerra russo-georgiana de 2008 e no desenrolar da crise ucraniana. Fato é que as rusgas entre Estados Unidos e Rússia estão-se tornando cada vez mais intensas. A postura do governo norte-americano aponta cada vez mais para uma mudança de tratamento aos russos em relação à administração de Donald Trump. E o histórico das relações e comentários entre Putin e Biden demonstram que a tendência é que a comunicação se torne mais instável.
Uma nova rodada de sanções contra a Rússia foi decretada recentemente após a prisão do opositor Alexei Navalny. Com a entrevista de Biden, as desavenças entre o presidente norte-americano e Vladimir Putin ganharam destaque, mas os comentários de Joe Biden sobre a atuação russa no espaço pós-soviético e em relação aos Estados Unidos não são novos. Remetem à Guerra da Geórgia e passam pela questão da Ucrânia.
Ainda em 2009, quase um ano após o fim da guerra russo-georgiana, durante a Conferência de Segurança de Munique, o então vice-presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, declarou que os Estados Unidos não reconheceriam a Abkházia e a Ossétia do Sul como Estados independentes. Essa posição oficial do governo norte-americano ainda foi reforçada em uma visita à Geórgia, quando o democrata prometeu que Washington apoiaria Tbilisi e que Moscou deveria cumprir o cessar-fogo.
Durante a viagem, o vice-presidente declarou que a Rússia deveria retirar suas tropas das regiões separatistas da Abkházia e da Ossétia do Sul. E que os outros Estados não deveriam seguir o caminho da Rússia e reconhecer a independência destas regiões. Apesar das declarações de Biden, os Estados Unidos não ofereceram apoio militar para que os georgianos reconquistassem as regiões. Naquele momento, Putin era primeiro-ministro da Federação Russa e defendia que a atuação russa contra a Geórgia era necessária para proteger os cidadãos das repúblicas separatistas que estavam sofrendo nas mãos do governo georgiano.
Fonte: The Economist
A única manifestação oficial sobre o comentário foi do então vice-ministro das Relações Exteriores da Rússia, Grigory Karasin, que acusou a Geórgia de ter tendências revanchistas. Também acusou alguns Estados, que não foram identificados, de oferecerem cooperação militar à Geórgia sob o pretexto de ajuda humanitária. A referência, na época, pareceu ser aos Estados Unidos, que estavam enviando suprimentos humanitários para Tbilisi, mas nenhuma contraparte norte-americana comentou o assunto. Mesmo com as falas de Biden, naquele momento, e com os posicionamentos de Moscou, Ossétia e Abkházia continuam sob domínio militar russo, e a Geórgia não entrou para a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
Da Geórgia a Crimeia: rusgas não são de hoje
Durante a anexação da Crimeia, em 2014, Joe Biden ainda era vice-presidente dos Estados Unidos e foi nomeado por Barack Obama para lidar com a questão. Com isso, entre 2014 e 2016, Biden visitou a Ucrânia algumas vezes e se tornou uma figura presente no decorrer da crise.
A Rússia anexou a península da Crimeia em março de 2014, após um referendo e a destituição do presidente Viktor Yanukovych. Na época, o discurso do presidente Putin ressaltou as ligações históricas entre os russos e a região, argumentando que tal movimento era necessário para proteger os russos que ali estavam dos acontecimentos que se desenrolaram em Kiev. Já um dos primeiros pronunciamentos de Biden sobre a anexação da península ocorreu poucos dias após o referendo, ainda em março de 2014, em uma visita ao primeiro-ministro da Polônia, Donald Tusk.
Durante uma coletiva de imprensa, após o encontro com o representante polonês, Biden afirmou que era mais importante do que nunca que os amigos ficassem “próximos” e que o movimento russo, em relação à península, era nada mais que uma “apropriação de terras”. A Rússia, segundo ele, nesse momento, estava sozinha e “nua” diante do resto do mundo, já que foi a única a votar contra a resolução do Conselho de Segurança sobre a Crimeia. Biden também ressaltou que os russos violaram o direito internacional ao anexar um território pertencente a outro país. E que mais sanções contra Moscou seriam postas em prática. Enquanto isso, Vladimir Putin descreveu a retomada da região como um ato que revertia uma injustiça histórica e relembrou a ligação cultural entre as duas áreas.
Em abril de 2014, Biden fez sua primeira viagem à Ucrânia e, após se encontrar com o então primeiro-ministro interino, Arseniy Yatsenyuk, em Kiev, alertou o governo russo de que “mais comportamentos agressivos” levariam o país a um maior isolamento internacional. Também pediu a Moscou que colocasse fim ao suposto apoio aos militantes pró-Rússia no leste da Ucrânia. Segundo uma reportagem do jornal The New York Times, de 2019, quando a crise na Ucrânia estourou, o vice-presidente Biden pressionou o presidente Obama a tomar uma ação decisiva e rápida para frear Moscou. Biden sugeriu que o governo norte-americano aumentasse a ajuda oferecida a Kiev e até mesmo enviasse mísseis para o local. Naquele momento, porém, o presidente rejeitou a ideia e enviou o vice como emissário.
Biden disse que sua atuação em relação à Ucrânia lhe proporcionou uma chance de tentar “fazer a diferença no mundo”. Para o professor da American University Keith Darden, o empenho do democrata em relação ao problema ucraniano também tinha um propósito político: ajudar a resolver a situação que se desenrolava em Kiev. A Ucrânia era uma linha de frente de uma batalha maior para conter o presidente russo e sua influência sob o espaço pós-soviético.
E parece que é exatamente isto que Joe Biden pretende agora como presidente dos Estados Unidos. Ao dar continuidade às sanções contra a Rússia, o discurso apontando Moscou como um problema a ser combatido, as declarações de que os russos querem enfraquecer a Europa e a reafirmação de que Washington não irá reconhecer a anexação da Crimeia indicam que a postura norte-americana será de enfrentamento político. As farpas trocadas demonstram que não haverá afagos a Moscou, nem aberturas, como ocorreram em determinados momentos da administração de Donald Trump. Pelo contrário, apontam para uma nova espiral de tensão entre os dois países.
* Larissa Caroline S. da Silva é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI/UERJ). Contato: larissalarisouza@outlook.com e @lalasouza (Twitter).
** Recebido em 22 mar. 2021. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.