Os juízes de Trump e o projeto conservador de direitos civis
Os mais de 50 juízes de Trump (Crédito da imagem: The New York Times)
Por Celly Cook Inatomi*
A vitória de Joe Biden foi lida por muitos como um basta ao ímpeto conservador e antidemocrático de redefinição da política e dos direitos civis nos Estados Unidos, ímpeto este que se estabeleceu de modo muito acelerado a partir de 2017 com a vitória de Donald Trump. Se olharmos, contudo, para a atual configuração do Poder Judiciário Federal americano, bem como para a nova ordem constitucional que este Judiciário e o movimento conservador vêm construindo desde muito antes do governo Trump, é preciso ter um posicionamento mais cauteloso com o entusiasmo.
Ao mesmo tempo em que podemos encontrar resultados judiciais urgentes e necessários para a defesa de direitos básicos de cidadania e de democracia, também podemos encontrar a substituição a conta-gotas do entendimento progressista de direitos civis (que se formou a partir dos anos 1960) por um entendimento conservador (que vem-se formando institucionalmente pelo menos desde os anos 1980). Penso, portanto, que é preciso analisar empiricamente esse movimento de destruição, construção e substituição na definição dos direitos civis.
Além das recentes negativas da Suprema Corte aos pedidos infundados de Trump e de republicanos para anular a vitória de Joe Biden, que são decisões urgentes e necessárias para garantir que as coisas não fiquem piores do que já estão, também encontramos decisões em que a Suprema Corte julgou como ilegal, por exemplo, a discriminação de homossexuais e transgêneros no ambiente de trabalho. E, como é sabido, tanto em um caso como no outro, as decisões contaram com a participação de juízes conservadores que foram nomeados por Donald Trump.
Embora esse comportamento judicial não seja incomum, isto é, os juízes contrariam os interesses de quem os indicou, é preciso analisar com mais cuidado e profundidade esses atuais rompantes democráticos do atual Poder Judiciário norte-americano. Nos casos acima citados, por exemplo, é bastante visível a linha de continuidade na interpretação conservadora da Constituição e dos direitos.
Celebração após decisão da Suprema Corte, segundo a qual membros da comunidade LGBTQ não podem ser demitidos por sua orientação sexual, 15 jun. 2020, Washington, D.C. (Crédito: Chip Somodevilla/Getty Images)
E, ao considerar ilegal a discriminação de homossexuais e transgêneros no ambiente de trabalho, é possível perceber que, em nenhum momento da decisão, Neil Gorsuch, juiz conservador indicado por Trump, adotou uma interpretação constitucional à maneira progressista. Ele foi estritamente textualista em seu voto, não reconhecendo homossexuais e transgêneros como um grupo social que necessita de ações especiais do Estado para a proteção de seus direitos mais básicos. E ainda deixou claro que sua decisão poderia mudar caso fosse colocado em juízo o conflito com questões religiosas, como a liberdade de consciência dos empregadores.
É preciso ter em mente, portanto, que o Judiciário conservador deixado por Trump tem e ainda poderá ter impactos significativos na definição dos direitos mais básicos dos cidadãos americanos pelas próximas décadas. Isso se dá não apenas por fatores numéricos, mas, sobretudo, em razão dos valores defendidos por esses juízes.
Numericamente, Trump “empacotou” as cortes federais como nunca antes visto na história americana, seja em governos republicanos, seja em governos democratas. Além de nomear três juízes para a Suprema Corte, fortalecendo sua maioria conservadora, Trump colocou, em apenas um mandato, 53 juízes nas cortes federais de apelação, que tem uma enorme importância na definição dos direitos no país, ao passo que elas são responsáveis por dar a última palavra em cerca de 80% dos casos que entram na Justiça federal norte-americana. Trump reverteu três dessas cortes, que antes eram de maioria liberal e agora são de maioria conservadora, e colocou seus juízes em 11 das 13 cortes federais de apelação do país.
Em termos de valores, por sua vez, os juízes escolhidos por Trump são marcados por terem um passado bastante polêmico com relação à defesa de direitos civis básicos, sobretudo, de grupos tidos como minoritários, ou seja, mulheres, negros, estrangeiros e LGBTs. São juízes que constroem e defendem uma visão muito diferenciada do que sejam os direitos civis, distanciando-se do que fora estabelecido a partir dos anos 1960. E, embora os estudos apontem que os juízes federais de apelação são os menos propensos a causarem dissidências para seguirem suas preferências e valores pessoais, alguns estudos recentes do Federal Judicial Center já vêm mostrando que a taxa de dissenso entre os juízes vêm aumentando quando se tem a presença dos juízes de Trump nos julgamentos. É bom lembrar que alguns desses juízes já atuavam dessa maneira quando ocupavam cargos de juízes em cortes menores. Com isso, é preciso olhar com calma e mais friamente para o que esses juízes vêm decidindo e o que isso representa em termos de redefinição dos direitos.
Ainda que os votos dissidentes dos juízes de Trump ocupem somente o espaço da dissidência, não se efetivando enquanto decisões das cortes federais de apelação, esses votos têm força na construção e no fortalecimento da política de direitos conservadora. Esse modos operandi “de ganhar mesmo perdendo” é, inclusive, parte importante das táticas e estratégias que o movimento conservador veio desenvolvendo com o passar dos anos, especialmente a partir dos anos 1960, e com mais força institucional, a partir dos anos 1980.
Olhar com calma para a atuação dos juízes de Trump, portanto, implica que tenhamos outra visão acerca do que é considerado vitória e derrota para os conservadores, sobretudo no campo judicial, ao passo que o movimento conservador se construiu e se fortaleceu em cima da sua própria derrota institucional nos anos 1960 e 1970, em que perderam consecutivamente nas cortes do país.
Alguns estudos têm mostrado, por exemplo, como os conservadores ganharam até mesmo em decisões judiciais reconhecidamente progressistas, como a Brown v. Board of Education (1953), que determinou a dessegregação racial nas escolas. E como os conservadores teriam ganhado nesse caso? A Suprema Corte não estabeleceu critérios e prazos para o fim da segregação, deixando que os próprios estados e localidades definissem suas políticas de integração escolar, o que não somente postergou em demasia a dessegregação. Também permitiu a criação de critérios de admissão bastante draconianos, que acabaram dificultando a entrada de crianças negras em algumas escolas.
Assim, é preciso que olhemos com mais cuidado para o próprio desenvolvimento da política de direitos conservadora, deixando de lado algumas visões caricaturais, ou superficiais sobre o pensamento conservador, até mesmo para que possamos compreender os acordos históricos feitos com liberais democratas e que permitiram a sobrevivência de pensamentos e atitudes antidemocráticas.
Thomas Smith, jurista conservador e professor na Faculdade de Direito da Universidade de San Diego, disse certa vez uma frase que sintetiza bem a atuação do movimento conservador com relação aos valores progressistas: “Rome wasn’t burn in a day”. Para ele, os conservadores sempre foram muito pacientes, meticulosos, articulados e cuidadosos, tanto na destruição do mundo progressista, quanto na construção do seu “novo” mundo, com seus princípios e valores.
Ao mesmo tempo em que eram derrotados nas cortes, eles foram construindo outros espaços onde podiam expressar seu descontentamento e, com isso, construir outras formas de olhar e de viver o mundo. Universitários de grandes universidades, que se sentiam deslocados por conta da ideologia liberal de seus professores e do ensino que era dado, passaram a criar grupos de estudos e de discussão sobre a Constituição, que, aos poucos, chamaram professores e se juntaram a organizações da sociedade civil, igrejas, escolas e associações conservadoras.
Juntos e espalhados em diversos espaços, eles foram construindo outra forma de ler a Constituição e os direitos, quase em um movimento “de baixo para cima”, ou com muita proximidade com os juristas conservadores, possibilitando a formação de novos juristas e pensadores conservadores. Eles criaram revistas populares, programas de rádio e de televisão, grupos de discussão de cidadãos sobre a Constituição, documentários, filmes e uma porção de outras formas de comunicar sua visão de mundo. E foram conquistando, cada vez mais, sobretudo a partir dos anos 1980, e com mais força a partir dos anos 1990, cargos importantes nas instituições do Estado, como no Departamento de Justiça, Departamento de Educação, de Saúde e de Segurança, e principalmente no Poder Judiciário.
As redes associativas dos juízes de Trump
O Federal Judicial Center já desenvolveu um amplo catálogo quantitativo de informações acerca da vida pregressa dos juízes federais de Donald Trump, verificando não apenas questões relacionadas à sua formação acadêmica, mas também suas ligações com organizações da sociedade civil, associações, igrejas, escolas, universidades, partidos, bem como cargos políticos e judiciários por eles ocupados. Além disso, também já disponibilizou estatísticas acerca dos votos dissidentes dados por esses juízes depois de empossados.
Além dessas informações, no entanto, é importante investigar o papel dessa rede associativa dos juízes na construção e no desenvolvimento da política de direitos conservadora, para que possamos compreender a força que algumas dessas organizações têm na política institucional americana e na conformação de entendimentos e saberes acerca dos direitos.
Aos poucos, esses estudantes convidaram professores, juízes, fundações e organizações da sociedade civil, e fundaram a mais poderosa e conhecida think tank conservadora, a Federalist Society, da qual os juízes de Trump, com raras exceções, são associados. A Federalist Society se espalhou por diversas universidades no país e é, atualmente, o maior ponto de encontro das ideias conservadoras, tendo diversos juízes como seus membros, inclusive os ídolos conservadores Antonin Scalia (já falecido) e Clarence Thomas.
Crédito da ilustração: Krieg Barrie
É através da Federalist Society que muitos desses juízes viajam o país dando palestras e seminários acerca de temas conservadores, como o originalinalismo e a correta interpretação da Constituição, sempre tendo Antonin Scalia como modelo a ser seguido e propagado. Essas palestras também são dadas em diversas escolas, organizações religiosas e associações jurídicas conservadoras pelo país, e seus temas também foram objeto de estudo em cursos de Direito e em palestras dadas por esses juízes em uma diversidade muito grande de universidades americanas.
Verificamos também que grande parte desses juízes passou por cargos políticos importantes no Departamento de Justiça e também trabalhou como assistentes jurídicos de juízes importantes para o movimento conservador, dois cargos que parecem se constituir quase que em passagens obrigatórias para os juristas conservadores em formação. Os estudos têm-nos mostrado como essa passagem pelo Departamento de Justiça e pelas cortes como auxiliares de juízes conservadores foi sendo construída a partir, sobretudo, do governo Reagan, e se fortaleceu com o governo de George W. Bush, que sedimentou institucionalmente a interpretação originalista da Constituição. A passagem obrigatória por esses cargos se configuraria, portanto, como uma oportunidade de institucionalizar entendimentos conservadores.
A última rede associativa que destacamos até o momento é a ligação dos juízes com igrejas e organizações religiosas. Embora elas sejam bastante diversificadas, é possível perceber que a maioria delas é de origem católica, o que nos pareceu, em um primeiro momento, bastante surpreendente. Mas os estudos têm-nos mostrado o papel importante que o pensamento católico, assim como a filosofia católica, tem tido na formação do pensamento conservador nos Estados Unidos, permitindo a unificação de diferentes correntes do cristianismo, especialmente em torno de questões como o aborto, o casamento homoafetivo, a liberdade religiosa e direito de consciência, e a visão de Estado cristão.
Diante disso, resta-nos investigar até que ponto esses entendimentos estão sendo empregados e de que maneira eles estão sendo mobilizados nas decisões judiciais tomadas por esses juízes. O que vamos encontrar? Ainda não sabemos, mas será preciso observar essa política de direitos ainda por muitas décadas.
* Celly Cook Inatomi é pesquisadora do INCT-INEU e pesquisadora colaboradora da Unicamp. Especialista em relações entre política, direito e judiciário, é autora de As análises políticas sobre o Poder Judiciário: Lições da ciência política norte-americana (Editora Unicamp, 2020). Contato: celoca05@yahoo.com.br.
** Este texto é um resumo modificado da apresentação feita pela autora no Seminário do INCT-INEU “O governo Trump, as eleições de 2020 e a crise na política norte-americana”, realizado em 7 e 8 de dezembro de 2020, pelo canal do INCT-INEU no YouTube. Recebido em 13 dez. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.