Maior acordo comercial do mundo é celebrado sem os Estados Unidos
O primeiro-ministro do Vietnã, Nguyen Xuan Phuc (dir.), e demais representantes dos Estados-parte na cerimônia de assinatura do Regional Comprehensive Economic Partnership (RCEP) durante a cúpula da ASEAN, realizada on-line, em Hanói, 15 nov. 2020 (Crédito: Nhac Nguyen/AFP)
Parceria Regional Econômica Abrangente é vista como uma vitória da China
Por Rúbia Marcussi Pontes*
Foi assinado, em 15 de novembro, o que tem sido chamado de maior pacto comercial do mundo, a Parceria Regional Econômica Abrangente (Regional Comprehensive Economic Partnership, RCEP). A Parceria conta com um acordo de livre-comércio entre os dez países-membros da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), além de Austrália, Coreia do Sul, Japão, Nova Zelândia e, claro, a China. A Índia fez parte das negociações da Parceria, mas se retirou em novembro de 2019, em decorrência de pressões internas relacionadas ao possível impacto negativo que a abertura de seu mercado traria para a produção nacional.
Mesmo sem a Índia, vale ressaltar que a Parceria cobre aproximadamente 30% da população mundial e corresponde a 29,3% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial, bem como a 27,4% do volume mundial de comércio. Números que impressionam, ainda mais se comparados ao Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífico (Comprehensive and Progressive Agreement for Trans-Pacific Partnership, CPTPP, antigo Trans-Pacific Parnership, TPP), que corresponde a 13,2% do PIB mundial e a 15% do volume mundial de comércio.
A ideia embrionária da RCEP foi apresentada na 19ª Cúpula da ASEAN, em novembro de 2011. Um ano depois, os países-membros da organização concordaram em negociar o framework do tratado, o que foi feito, posteriormente, com 19 reuniões ministeriais e 29 sessões de negociação formal. As negociações foram, enfim, concluídas e, em novembro de 2019, os países concordaram pela assinatura no ano seguinte.
Como dito por Nguyen Xuan Phuc, primeiro-ministro do Vietnã, país “anfitrião” da 4ª Cúpula da RCEP: “tenho o prazer de dizer que, após oito anos de trabalho duro, a partir de hoje, concluímos oficialmente as negociações da RCEP para a assinatura”.
A RCEP está baseada em acordos de livre-comércio (free trade agreements, FTA) já existentes entre os países signatários, mas tem, como objetivo principal, a diminuição das tarifas comerciais em importação, em até 90%, de forma imediata e nos próximos dez anos. O acordo de 510 páginas, com 22 capítulos, inclui, também, cláusulas tratando de redução de tarifas em agricultura, serviços financeiros, comércio eletrônico (e-commerce) e propriedade intelectual.
O acordo será efetivado quando pelo menos seis países-membros da ASEAN e três não-membros ratificarem-no nos próximos dois anos. E alguns países, como Camboja e Laos, terão maior flexibilidade nesse processo, com três a cinco anos para ajustes em procedimentos nacionais que permitirão a efetivação das regras da Parceria.
Ficou clara, em comunicado conjunto, a importância da RCEP para a recuperação econômica e o fortalecimento das cadeias de valor na região e com o estabelecimento de regras de origem comuns, tendo em vista o impacto negativo da pandemia da covid-19 e os múltiplos desafios para uma recuperação pós-pandêmica. Além disso, a Parceria é uma vitória do multilateralismo em uma região dinâmica, que concentrará grande parte dos fluxos econômicos nos anos vindouros. É, sobretudo, uma vitória da China.
Líderes da ASEAN na 3a cúpula da RCEP, em Bangcoc, em 4 nov. 2019 (Crédito: Manan Vatsyayana/AFP)
Vitória do multilateralismo chinês
O premiê chinês, Li Keqiang, afirmou que, “no atual contexto internacional, a assinatura da RCEP, depois de oito anos de negociações, traz um raio de luz e de esperança em meio às nuvens”, reconhecendo o acordo como uma “vitória do multilateralismo e do livre-comércio”. Palavras que significam muito após quatro anos da administração do presidente estadunidense, Donald Trump, em que os Estados Unidos (EUA) se afastaram de iniciativas multilaterais e, especialmente, retiraram-se do antigo TPP. E demonstram, sobretudo, como Pequim tem atuado na concertação mundial e influenciado a formulação de regras que regerão grande parte do comércio internacional. Nesse sentido, a perda para os EUA, que está fora da RCEP e do CPTPP, é imensa.
Vale notar também que o estabelecimento de regras de origem comum, no seio da RCEP, facilitará a importação de partes de produtos de diferentes locais para montagem em um país, o que estimulará as cadeias de valor regionais e a compra intra-países aderentes. Isso pode, consequentemente, prejudicar ainda mais a presença de empresas dos EUA na região.
A assinatura da Parceria ocorreu quase simultaneamente ao reconhecimento chinês da vitória eleitoral de Joe Biden e de Kamala Harris, na esteira das eleições dos EUA. Aventou-se que um segundo mandato de Trump seria o resultado desejado pelos líderes chineses, mas o entendimento predominante é de que há um consenso bipartidário, nos EUA, sobre a necessidade de continuidade de medidas mais duras (hard-line) na política desse Estado para a China, independentemente de quem ocupe a Casa Branca.
Com Biden, há uma expectativa de afastamento dos EUA da ineficaz “guerra comercial solitária”, mas a competição tecnológica, principalmente no que tange o domínio e uso de tecnologias de ponta, persistirá em um provável contexto de retorno dos EUA às coalizões multilaterais, visando a contrabalancear a China.
Os desafios para os EUA são enormes, porém.
A China demonstrou, na 5ª sessão plenária do 19º Comitê Central do Partido Comunista Chinês, a centralidade que a inovação tem no seio da estratégia de desenvolvimento do país, com indicadores de que a China investirá, de forma ainda mais expressiva, na produção de semicondutores e em Inteligência Artificial, entre outros, nos próximos anos.
O secretário de Estado americano, Mike Pompeo, realizava viagem à Ásia, enquanto o encontro chinês se concretizava, buscando reforçar os laços e a presença dos EUA na região. Com o (então) secretário de Defesa, Mark Esper, ambos foram à Índia, vista como um ator regional essencial para contrabalancear a China, mas também seguiram em visita para outros países na região, como Indonésia e Sri Lanka. Isso ocorreu apenas uma semana após a aprovação da potencial venda de armamentos de mais de US$ 1,8 bilhão para Taiwan.
É certo também que os EUA continuaram a articular sua política para a China e para a região da Ásia-Pacífico mesmo às vésperas de sua eleição nacional. Mas os últimos acontecimentos e a assinatura da RCEP evidenciaram, novamente, a capacidade e a resolução chinesa de planejamento de longo prazo e de aposta no multilateralismo. Resta observar os rumos da administração Biden-Harris nesse contexto.
* Rúbia Marcussi Pontes é doutoranda e mestra em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGCP-IFCH), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pesquisadora do INCT-INEU e bolsista CAPES. Contato: rubiamarcussi@gmail.com.
** Recebido em 17 nov. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.