China e Rússia

‘Estamos presenciando o resultado do processo de profundo cisma no sistema ideológico e político americano’, diz especialista

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Inderjeet Parmar, chefe do Departamento de Política Internacional da City, Universidade de Londres, ainda afirma que ‘esta eleição é decisiva, porque as pessoas estão cansadas da guinada à direita’

Por Solange Reis*, especial para O Globo

No ano atípico de 2020, marcado por pandemia e massivos protestos populares, os eleitores americanos escolherão quem será seu presidente nos próximos quatro anos, em uma disputa que acontece sob forte polarização, risco de violência nas ruas e grande chance de contestação do resultado. Para Inderjeet Parmar, chefe do Departamento de Política Internacional da City, Universidade de Londres, a atual situação do país é resultado de “um processo antigo de profundo cisma no sistema ideológico e político americano”. Ele ainda afirma que o pleito é decisivo, porque as pessoas “estão cansadas da guinada à direita”.

Parmar também diz que o Partido Democrata não é unificado, mas que existe uma união temporária para derrotar Trump, algo que cresceu com uma “guinada grande à esquerda”, movida por movimentos como o Black Lives Matter (Vidas Negras Importam). Em relação ao Partido Republicano, segundo o especialista, a sigla deve tentar buscar, em uma eventual derrota de Trump, um “trumpismo mais coeso” e “menos isolacionista”.

Em entrevista ao GLOBO, Parmar também falou sobre o que levou os Estados Unidos ao cenário de instabilidade atual e aos possíveis desdobramentos da eleição na política internacional.

Devido ao papel dos EUA no mundo, toda a disputa eleitoral americana desperta muito interesse e provoca debates. Desta vez, há mais coisas em jogo?

Esta é uma das eleições mais importantes, pelo menos do nosso tempo. Há quem a considere tão controversa quanto as eleições de meados do século XIX. A atual polarização do país, que se refletiu nos partidos políticos e nos candidatos, é tão profunda e abrangente que pode causar ainda mais ruptura no sistema político como um todo. Esta eleição é decisiva, porque as pessoas estão cansadas da guinada à direita. Mas o cenário político e o sentimento do eleitorado republicano e das instituições que mantêm tal engrenagem funcionando existirão por muito tempo, mesmo com a população do país sendo majoritariamente não branca.

O que estamos presenciando é o resultado de um processo antigo de profundo cisma no sistema ideológico e político americano, e entre os dois partidos principais [Democrata e Republicano] e seus respectivos aparatos. Especialmente, devido ao crescimento do neoconservadorismo e do neoliberalismo. A partir dos anos 1970, o establishment neoliberal e neoconservador ganhou importância e poder, o que se refletiu em suas instituições. Refiro-me ao universo acadêmico, com seus professores e departamentos, e aos centros de estudos e organizações de defesa de interesses. Sem falar no salto à direita do próprio Partido Republicano.

Além disso, há uma rede influente de mídia conservadora que deu voz a grupos radicais. Tudo isso coadunou algo que não desaparecerá tão cedo.

Inderjeet Parmar, chefe do Departamento de Política Internacional da City Foto: DivulgaçãoInderjeet Parmar, chefe do Departamento de Política Internacional da City (Crédito: Divulgação)

A coerção exercida contra todos os oponentes, interna e externamente, é impressionante. Trump não tem amigos nem inimigos permanentes. Ele os define no calor do momento. Esse tipo de coerção o torna tão responsável pela crise quanto qualquer outro evento, ou ator. Porque não resta dúvida de que existe uma crise do poder americano, e ela é maior do que Trump, Biden, ou qualquer pessoa. A natureza dessa crise é sentida na vida cotidiana, com a dívida estudantil, a precarização do trabalho e a violência policial.

Como bom oportunista, ele navega bem nesses fenômenos. E modela a política. Para muitas pessoas, Trump significa uma liderança forte e decisiva contra a corrupção do sistema. Ele recuperou uma legitimidade perdida.

Por ser muito mais do que um simples sintoma, não acredito que o trumpismo acabe, não importa o que aconteça em 3 de novembro. Além do mais, existe uma base institucional para o trumpismo. Todos sabem que ele mente, mas mantêm o apoio.

Por que os conservadores, incluindo o próprio Partido Republicano, mantêm o apoio sob o risco de caírem junto com Trump no eventual pós-trumpismo?

Há um certo eco do macartismo. Trump adota um tipo de linguagem, acusação, polarização e aviltamento de oponentes semelhante, categorizando-os como antiamericanos. Isso remete muito ao senador Joseph McCarthy, nos anos 1950. O Partido Republicano apoiou McCarthy até quando ele passou a prejudicar a própria causa republicana e anticomunista. Os republicanos o apoiavam por sua capacidade de mobilização. Na conjuntura atual, os republicanos sabem que Trump cairá em 3 de novembro, não importa quanto tempo demore para sair o resultado. Eles tentarão se reconstruir depois, mas a razão pela qual não se contrapõem agora é porque Trump tem o apoio sólido de 85% dos eleitores republicanos. Ninguém no partido chega perto desse percentual, justamente porque todos são parte do sistema que Trump ataca.

O partido pensa que poderá retomar parte do controle ideológico e programático após a derrota. O problema é que existem 50 Partidos Republicanos, em 50 estados, além das pessoas que passaram a controlar essas subdivisões. É o caso da ala Tea Party, ou dos candidatos do QAnon, grupo de teoria conspiratória que tem chance de ganhar quase 20 cadeiras no próximo Congresso.

O provável é que a liderança republicana tente um trumpismo mais coeso, um conservadorismo nacionalista menos isolacionista que reconheça os Estados Unidos como potência global. É preciso encontrar alguém mais cortês e diplomático para uma “América em primeiro lugar sem Trump”. O senador republicano Tom Cotton, o primogênito do presidente, Donald Trump Jr., e o âncora da Fox News Tucker Carlson são nomes no horizonte. Gente que consegue falar para as massas, administrar a raiva popular e avançar o programa conservador nacionalista.

Joe Biden está liderando as intenções de voto. O quanto essa tendência reflete o mérito do Partido Democrata, ou simplesmente o fracasso de Trump?

O Partido Democrata não é unificado. Existe uma união temporária, porque Trump reúne todos que não gostam dele em torno de Biden. Qualquer coisa é melhor do que ele. E também houve uma guinada grande à esquerda. Vimos isso em 2016 e 2018 e, provavelmente, veremos novamente agora. São pessoas que estão muito à esquerda do partido e protestam por causa da pandemia e do efeito econômico e social em suas vidas. Movimentos como o Black Lives Matter, por exemplo, estão fora do controle partidário. A verdade é que o Partido Democrata não conseguiu mobilizar nenhum movimento nacional nos últimos quatro anos.

Por isso, digo que o resultado da eleição será a volatilidade do trumpismo sem Trump. Supondo que Trump realmente perca por uma margem grande, em alguma medida, isso será bom para a liderança republicana. Ela poderá se reorganizar e abrir guerra contra Biden. Além disso, Trump não será um ex-presidente silencioso. Será uma terceira força, porque as pessoas o adoram, e seguirá com a carreira empresarial. Se isso acontecer, e houver cortes de impostos e decepção da esquerda, teremos Tom Cotton, Tucker Carlson, ou Don Jr., em 2024. A derrota de Trump é importante para diminuir esse movimento. Passaria uma mensagem de que as coisas não podem ir tão longe.

Alguém popular, como Bernie Sanders, conseguiria energizar o Partido Democrata?

Bernie Sanders tem dois caminhos. Ele jogou o peso todo na nomeação e agregou votos da esquerda. O papel que ele tem é o de angariar votos. Não acho que seja uma pessoa consistente para uma mudança radical. Ele não se manifestou, quando Trump ameaçou chamar as milícias. Não disse nada sobre a prisão das pessoas que planejavam o sequestro e a morte da governadora de Michigan [Gretchen Whitmer].

Já o papel do Partido Democrata é apenas mobilizar os descontentes para o voto. É preciso reformular. Esses movimentos sociais já aconteceram no passado. Mas os dois partidos são muito espertos em recebê-los, absorvê-los e domesticá-los. Às vezes, até incorporam alguma reivindicação em suas políticas. O Green New Deal, por exemplo, era uma ideia marginal por volta de 2005, até que, cinco anos depois, cresceu como movimento de massa. Hoje, os democratas fazem algumas políticas nesse sentido com foco nos grandes investidores. Quando esse tipo de coisa acontece, é porque a ideia já deixou de ser radical e foi transformada. É assim que os dois partidos fazem essa absorção, tal como o Partido Republicano pensou que absorveria Trump.

Quais são as chances de confrontos entre esses dois lados durante e após a eleição? Trump tem responsabilidade na construção do clima conflitivo?

Há tempos, ele diz que não deixará o cargo, que sua derrota será fruto de fraude. Alega que os votos pelo correio são a prova de que as eleições são fraudulentas. No primeiro debate, instruiu o Proud Boys, um grupo fascista, a ficar preparado. Sua campanha mantém o site Army For Trump [Exército para Trump] com o objetivo de recrutar dezenas de milhares de vigilantes durante a votação.

Em 1982, a Justiça proibiu o Partido Republicano de ter pessoas armadas gerando insegurança nos locais de votação. Naquele ano, policiais armados e fora de seu horário de trabalho identificavam eleitores negros e latinos como fraudadores e, literalmente, impediam essas pessoas de votar. Mas a proibição ao porte de arma nas bocas de urna expirou em 2018, o que traz um risco real de violência neste ano.

No outro espectro, temos os sindicatos ameaçando fazer greve geral, caso Trump ganhe. Os Estados Unidos hoje são uma panela de pressão, induzida pelo presidente e pelo secretário de Justiça, William Barr.

Quais são as chances de Joe Biden contestar o resultado?

É possível, dependendo da natureza do problema. Os vigilantes pró-Trump verificarão cada pequeno erro na tentativa de invalidar e postergar a apuração. Sobretudo neste ano de comparecimento recorde, crescem as chances de erros e questionamentos. É contra esse tipo de tática republicana que Biden e os democratas poderão contestar.

O que podemos esperar da política externa de Biden?

Comparado com dez anos atrás, o cenário internacional já mudou muito. A China ficou muito mais poderosa, recuperou-se economicamente da pandemia e manteve a ambiciosa estratégia ‘One Belt, One Road’ [Um Cinturão, Uma Estrada]. Mas existem muitas similaridades com a transição de George W. Bush para Obama. A Guerra do Iraque e a Guerra do Afeganistão iam muito mal, além da crise econômica. Até os republicanos estavam insatisfeitos com Bush.

Trump é uma versão ampliada dos conservadores nacionalistas, que são céticos quanto a organizações internacionais e alianças. Biden suavizará isso e tentará promover uma reorganização hegemônica, restaurar a liderança e construir consenso. Ele sabe que não é possível frear a China atacando a União Europeia. É preciso formar alianças. De um lado, a Europa, do outro, os aliados na Ásia, como Japão, Austrália, Taiwan e Coreia do Sul. Uma Eurásia cercada e controlada a partir dos mares pela Marinha americana.

É provável que seja mais amistoso com as instituições internacionais, recoloque os Estados Unidos no Acordo de Paris e no Conselho de Direitos Humanos da ONU e não apoie abertamente governos autoritários. Acredito que haverá uma mudança de imagem e algo mais significativo na política prática. Por exemplo, quanto ao acordo com o Irã e às negociações nucleares com a Rússia.

Mas Biden não será o vovô bonzinho com todo mundo. Ele não só tem um aparato por trás, como é peça central dessa engrenagem. Como presidente do poderoso Comitê de Relações Exteriores do Senado, durante muito tempo, foi um dos principais formuladores do internacionalismo liberal.

As relações transatlânticas foram construídas em um mundo que não existe mais. Hoje, a União Europeia é relativamente obrigada a escolher entre China e EUA. Biden terá que acomodar essa nova realidade?

Absolutamente correto! Dos anos 1940 até agora, as relações transatlânticas passaram por várias crises existenciais: Guerra da Coreia, Guerra do Vietnã, crises no Oriente Médio, Ronald Reagan, o oleoduto siberiano, que os alemães e ingleses apoiavam, mas os Estados Unidos rejeitavam, a Guerra do Iraque e assim por diante. Mas o que une os dois lados, como um cordão umbilical, isso não acabou. Comércio, investimentos, cultura, instituições, mentalidade, redes formais e informais, segurança e estratégia.

Acontece que, quando se trata de dinheiro, alto comércio, padrão de vida, investimentos, não é como na Guerra Fria. Soa mais como “nos preocupamos com seu poder, mas precisamos da oportunidade que você nos oferece”. Por essa razão, ninguém no Sudeste Asiático, incluindo Austrália e Nova Zelândia, está se desacoplando da China. O mesmo acontece com a União Europeia, que declarou a China como rival sistêmico. O que é bem diferente de rival estratégico, como os Estados Unidos de Donald Trump a consideram. Rivalidade sistêmica significa que existem pontos de atrito e a necessidade de socializar a China, mas há muito investimento entre chineses e alemães. É natural que haja um certo distanciamento dos Estados Unidos, mas as relações transatlânticas são muito fortes.

O que mudou nas relações transatlânticas foi o ambiente estratégico fora delas. O comunismo não existe mais. A China foi uma potência revolucionária que não titubeou em apoiar a repressão em países africanos. Hoje, ela é a principal potência da globalização. O problema é que se trata de uma potência não ocidental, e isso gera ansiedades e temores culturais, civilizacionais e étnico-raciais.

At least the chemistry would be better.
Biden e a chanceler alemã, Angela Merkel (Crédito: Steffen Kugler/Pool/Getty Images)

As diferenças culturais não serão uma barreira para a formação desse tipo de rede entre duas potências com idiomas, histórias e visões de mundo tão díspares?

Assim como na passagem da hegemonia britânica para a americana, haverá uma acomodação na transição para a liderança chinesa. Existe muita competição, mas também interdependência. Em níveis de segurança e tecnologia, haverá muita desconfiança. Em termos econômicos e comerciais, haverá muita troca. De 2016 em diante, os Estados Unidos investiram mais na China do que antes. A verdade fundamental é que China e Estados Unidos são totalmente interdependentes, embora mutuamente desconfiados.

A questão cultural é onde começa o elemento desorganizado dessa nova multipolaridade. São 500 anos de domínio ocidental e de suas elites governantes imersas nessa mentalidade.

Estamos de volta aos anos 1930?

De certa forma, para melhor e pior. Os anos 1930 tinham impérios e aspirantes como Alemanha, Itália e Japão. Já o pós-1945 é um sistema internacional voltado para uma economia forte e aberta, mobilidade de bens e pessoas e um conjunto de normas. Não é mais preciso lutar uma guerra para ser um império mundial em mercados fechados.

Brasil, Índia, China e muitas potências médias são frutos dos investimentos ocidentais para modernizar as elites nesses países, as quais não querem mais ser juniores. Pleiteiam assentos no Conselho de Segurança, criam o Banco de Investimentos de Infraestrutura da Ásia, desenvolvem a Organização para Cooperação de Xangai. Sabem que podem construir estruturas na Nova Rota da Seda porque dispõem de recursos suficientes. Para viver o sonho chinês, é preciso alimentar todas aquelas pessoas, exportar e investir.

Hoje, as elites respondem à instabilidade política trazida pelo descontentamento com as condições de desigualdade nas sociedades. Como? Apelando para autoritarismo, populismo, xenofobia e esse tipo de coisa. Isso é o que fazem Trump, Bolsonaro, Modi e movimentos como o Brexit.

A fonte de instabilidade global não vem da rivalidade estatal, mas da desigualdade em âmbito nacional e na forma como as elites administram a tensão interna. É aí que o nacionalismo vira uma estratégia para convencer os descontentes a culparem estrangeiros, imigrantes, refugiados, terroristas, muçulmanos.

As lideranças tentam gerenciar a raiva popular contra as elites, se posicionando contra elas, embora sejam parte integrante. Tal qual Mussolini e Hitler. O nacionalismo atual pode ser o resultado de uma estratégia para dividir trabalhadores negros de trabalhadores brancos e assim por diante. Culpar os chineses, mexicanos, imigrantes por tudo. É uma tática batida que funciona instantaneamente.

 

* Solange Reis é doutora em Ciência Política pela Unicamp, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu). Contato: reissolange@gmail.com.

** Publicado originalmente no site do jornal O Globo, em 3 nov. 2020. Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.
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