Eleições 2020: Harris tem desempenho mediano e Pence mantém debate em seu campo
A vice na chapa democrata, senadora Kamala Harris (D-CA), e o vice-presidente dos EUA e vice na chapa de Donald Trump, Mike Pence, no debate de campanha, em Salt Lake City, Utah, em 7 de out. 2020 (Crédito da foto: Brian Snyder/Reuters)
Este artigo é uma parceria do OPEU com o LAPPCOM-UFRJ
Por Samuel Braun*
Embora mais comum que no Brasil, o debate entre candidatos a vice presidente nos Estados Unidos também não costuma ser um dos pontos altos das campanhas, mas o deste ano chamou a atenção justamente pela expectativa de que apresentasse aquilo que faltou no debate dos candidatos a presidente, que se centrou na performance histriônica do incumbente.
Nesse sentido, o debate de Mike Pence e Kamala Harris cumpriu bem o esperado. Centrado em questões de conteúdo e menos na performance, pontuou mais quem soube trazer para seu terreno o oponente, bem diferente do debate entre Donald Trump e Joe Biden, onde se ouviu em diferentes momentos “palhaço”, “idiota” e “cala a boca”.
Harris iniciou em franca ofensiva com o que viria a se provar como um de seus melhores argumentos no debate, atacando o insucesso do enfrentamento do coronavírus por parte do governo de Trump e Pence. Nos primeiros 20 minutos, a senadora do Partido Democrata (D-CA) fez questão de enfatizar que se tratou da pior performance da história da Presidência em qualquer empreitada liderada pelo governo no combate à pandemia. Pence não encaixou nenhuma resposta convincente e ficou totalmente na defensiva.
A senadora pela Califórnia buscou ainda explorar a pauta internacional, acusando Trump de “trair os amigos” e “abraçar ditaduras”. Fez um aceno ao belicismo, ao apontar que tão importante quanto o poderio militar americano é a lealdade aos tradicionais aliados internacionais e reiterou a Rússia como símbolo do inimigo. Explorou ainda a fala de Trump sobre os soldados capturados, o que fez Pence ter de usar parte de outro bloco para tentar, sem muito sucesso, justificar.
Mas Harris não evoluiu para o domínio que se esperava de alguém mais carismática e experiente em oratória após décadas de tribunais do júri. Pence usou a frieza das respostas calmas para trazer os temas para um jogo onde ele parecia o inquisidor, deixando os segundos finais de sua fala para levantar dúvidas e insinuações que faziam Harris consumir a maior parte do seu tempo de fala. Isso, claro, além de ter extrapolado seu tempo em praticamente todas as intervenções, simplesmente prosseguindo falando por cima da moderadora até concluir seu raciocínio – ou até mesmo iniciando um novo, por mais 30 segundos.
Pence preferiu elogiar as conquistas militares, alardeou que “destruíram o califado do ISIS [sigla em inglês para Estado Islâmico do Iraque e da Síria]” e que eliminaram um “terrorista que matou centenas de soldados americanos”, lembrando que Joe Biden e Harris se opuseram à ação militar. Os democratas ao centro insistem em disputar este voto mais conservador e têm mesmo uma forte ligação histórica com a tradição intervencionista internacional americana, mas parece que os republicanos se sentem bem mais desenvoltos neste tema e neste eleitorado.
Semelhante situação se deu com o tema do aborto. Enquanto Pence repetia que era cristão e “pró-vida”, Harris iniciou dizendo ser uma “pessoa de fé” e que Biden era católico, o que poderia sugerir oposição ao aborto. Na sequência, entretanto, desmontou este caminho ao defender que a decisão cabe à cada mulher, e ainda a atrelou à eleição: ou seja, votar em Biden seria apoiar sua garantia no ACA (Afforbable Care Act); em Trump, possibilitar sua derrubada na Suprema Corte. Pence arrematou, declarando ter orgulho de se proclamar “pró-vida”, indiretamente provocando a dubiedade da oponente.
Este assunto evoluiu para a polêmica em torno da Suprema Corte. Após a indicação por Donald Trump de Amy Barrett, os republicanos viram a chance de criar uma maioria conservadora duradoura capaz de reverter muitos dos avanços legais das últimas décadas – em especial no tema do aborto. Dado que o desgaste eleitoral não parece que vá impedir a nomeação conservadora, surgiu o debate público entre os democratas de aumentar o número de juízes para reverter esta maioria, caso se elejam.
Assim, se Harris cercou Pence nos primeiros 20 minutos com o tema da pandemia, este respondeu com um bloco inteiro, pressionando-a a responder, se os democratas pretendem alterar o número de juízes na mais alta instância do Poder Judiciário dos EUA. A insistência de Pence ficou ainda mais pronunciada com a fuga de Harris em responder, em uma troca de mais de seis intervenções. Foi o único momento em que Pence falou diretamente com os telespectadores, destacando que a adversária omitia deles algo tão sério como “a separação de Poderes”.
A estratégia pode não ser nenhuma bala de prata, mas serve para contrabalancear as críticas de posições antidemocráticas que pairavam sobre ele e Trump, ao se negarem a assumir o compromisso com uma transição tranquila, em caso de derrota. Ambas as campanhas agora acusarão uma à outra de ser um perigo à democracia, nivelando por baixo.
Nivelar por baixo tem sido, aparentemente, a estratégia dos ocupantes da Casa Branca nestes debates. Já se esperava agressividade de Trump, mas, no primeiro debate entre ambos, em 29 de setembro, ele conseguiu arrastar Biden para o estilo de não-debate, ao ponto de os xingamentos terem partido sobejamente do democrata, enquanto o republicano se limitava a irritá-lo com interrupções e informações inverídicas. A utilidade desta estratégia é que, se a mídia que declarou apoio à Biden bateu na tecla das interrupções de Trump, as mídias pró-Trump exploraram as ofensas de Biden, mobilizando o moralismo conservador.
Um debate morno, com script padrão
O tema da violência policial e das questões raciais poderia ser o grande momento de Harris, mas, outra vez, Pence foi habilidoso em reduzir os danos e mesmo inverter o jogo, acuando Harris ao final. A senadora democrata iniciou no ataque, defendendo os protestos, condenando o racismo e propondo medidas contra a violência policial, como a proibição de sufocamentos. Chegou até a falar, já com o tempo estourado, que descriminalizaria a maconha. Neste quesito, porém, Pence acabou se saindo muito melhor que Trump, que se notabilizou negativamente, no primeiro debate, pelo “stand back, stand by” dito aos supremacistas brancos.
Pence começou pelo script padrão de diferenciar protestos legítimos de vandalismo (nisso repetindo o centrismo democrata, aliás) para, em seguida, enfileirar casos comoventes de pequenos comerciantes devastados pelos saques e concluir dizendo que Biden e Harris insultam todos que usam uniforme, alegando que ambos defendiam o desfinanciamento das polícias. Essa é uma defesa de democratas mais à esquerda que acaba repercutindo sobre o partido como um todo. Aqui, mais uma vez Pence falou para a câmera, dirigindo-se diretamente aos policiais e a “todos aqueles que vestem uniforme” para que não tivessem dúvida de quem era seu candidato.
Kamala elevou o tom e disse que era a única no estúdio que sabia o que era fazer aplicar a lei, aproveitando o passado de procuradora, em uma tentativa de se associar aos “que vestem uniforme”. Ela lembrou ainda que Trump não condenou os Proud Boys e, ao longo de seu mandato, atacou latinos, negros e muçulmanos.
Já em nova ofensiva, Pence rebateu que, durante o período de Kamala como procuradora, os negros foram 19 vezes mais acusados de crimes que os brancos e que, após ela assumir, o encarceramento dos afro-americanos aumentou. Pence veio com este objetivo: enfraquecer Biden e Harris em cada segmento, com o qual eles têm identificação, deixando para Trump a missão de inebriar os direitistas. Fez isso na questão do aborto (contando com a tibieza de Harris), na política internacional, na defesa do jogo democrático e até mesmo nas questões raciais. Evidentemente, não pretende ganhar nestas searas, apenas desestimular adesões à oponente.
Nesse sentido é que se insere o clamor reiterado de Harris, assim como Biden, de que as pessoas “votem, votem, votem”. Pence se limitou a dizer que os democratas tentaram, valendo-se “de seu pertencimento ao establishment”, destituir Trump durante todo mandato e que isso justificaria a cautela em se comprometer com uma possível transição de poder.
Em um debate morno, Harris não surpreendeu, e Pence se saiu bem com o ônus de ter de defender o mandato. Trump, se reeleito, entraria em último mandato, e Biden, com 77 anos, já insinuou não pensar em um segundo, fazendo de Kamala a herdeira natural da vaga. Mulher, negra, filha de imigrantes, centrista, e com a possibilidade de não haver outros debates presidenciais este ano por causa da pandemia, teve nas mãos uma chance de ouro para agarrar esta posição e, aparentemente, não aproveitou. Já para disputa de votos nesta eleição o debate pode não ter dito muita coisa.
* Samuel Braun é mestrando em Ciências Sociais e pesquisador do LEPPEM/UFRRJ. Conduz pesquisa sobre o Partido Democrata e as eleições americanas de 2020. Contato: linkedin.com/in/samuelbraun.
** Recebido em 9 out. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.