AGNU e a conjuntura internacional nos discursos de Guterres, Trump e Xi Jinping
Presidente chinês, Xi Jinping, conversa com o secretário-geral da ONU, António Guterres, por teleconferência, em 23 set. 2020 (Crédito: www.news.cn)
Por Rafael Seabra*
Em nossa última nota neste espaço, analisamos a pandemia da covid-19 como um fenômeno acelerador de tendências que já se desenvolviam no sistema internacional, notadamente, o acirramento da competição entre EUA e China. A pandemia e as narrativas sobre como enfrentá-la foram incorporadas a essa disputa, não tendo produzido inflexão em favor de maior solidariedade e cooperação. Tratamos, ainda, da erosão da ordem internacional liberal associada à hegemonia americana, fenômeno que, observado em retrospecto, teve na Guerra do Iraque (2003) um relevante marco.
Passados cerca de seis meses, os discursos proferidos por António Guterres, Donald Trump e Xi Jinping, por ocasião da 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas, oferecem-nos uma janela para interpretarmos o papel da ONU no atual contexto, as disputas de poder em curso, a confrontação diplomática e a imagem que essas potências pretendem projetar.
Guterres e seu New Global Deal, em defesa do multilateralismo
O discurso do secretário-geral da ONU, António Guterres, reflete a gravidade do momento e, de certo modo, está em linha com os elementos centrais de nossa análise anterior. Como não poderia ser diferente, Guterres faz defesa enfática do multilateralismo, das soluções coordenadas, do arrefecimento da competição entre as grandes potências e de novos caminhos econômicos que atuem para superação da crise e conduzam a um modelo mais justo. O secretário-geral confere centralidade às questões ambiental – seguindo as metas dos Acordos de Paris 2030 – e de gênero, particularmente aos direitos da mulher. De um lado, a crise na saúde produz graves danos à economia, amplia desigualdades e agrava ameaças aos direitos humanos. De outro, acentua-se a competição geoestratégica, enquanto o arcabouço de contenção da proliferação nuclear se esvai.
Em sua perspectiva, é possível traçar analogia entre o momento atual e a época de criação das Nações Unidas, cujos fundadores haviam testemunhado uma pandemia, uma depressão global, genocídio e a Segunda Guerra Mundial. É assim que refuta o nacionalismo populista e propõe o caminho da solidariedade, da coordenação internacional e da ciência. No que pode ser lido como uma crítica à atual conduta dos Estados Unidos, ele afirma que poder e liderança se encontram atualmente dissociados na política mundial: há líderes sem poder, e há poderosos sem liderança.
Em vista das tensões entre China e Estados Unidos, Guterres alerta para a necessidade de se evitar uma nova Guerra Fria: “nosso mundo não pode suportar um futuro em que as duas maiores economias dividam o Globo em uma grande fratura – cada qual com suas próprias regras comerciais e financeiras, Internet e capacidades de Inteligência Artificial (…) uma divisão tecnológica e econômica arrisca se tornar inevitavelmente uma divisão geoestratégica e militar que devemos evitar a todo custo”.
Sobre esse ponto, é oportuno contrastarmos as premissas do secretário-geral com recente análise de Adam Tooze, para quem a dimensão essencial das crescentes tensões reside na impossibilidade de se retornar à globalização dos anos 1990, tal como transcorria sob a hegemonia dos Estados Unidos. Diante da ascensão da China, a globalização não pode mais ser “neutra”, e o crescimento e o comércio acarretam alterações inevitáveis na distribuição de poder. Em síntese, não se trata de impedir que disputas econômicas evoluam para o campo geoestratégico, uma vez que estas se tornarão – ou já se tornaram – indissociáveis na atual fase do sistema internacional.
Cabe assinalarmos que, antes da pandemia da covid-19, o debate econômico girava em torno da chamada estagnação secular e da imensa concentração de renda acarretada pela globalização neoliberal movida pela financeirização. Esse quadro fomentou o ressurgimento de forças políticas de extrema direita na Europa, mas também nos Estados Unidos, culminando na eleição de Trump. A pandemia agravou imensamente essa situação, além de interromper um período de crescimento econômico nos EUA. Esses antecedentes nos permitem compreender as considerações econômicas de Guterres e sua defesa de um novo contrato social que compreenderia duas esferas: as nacionais e um “New Global Deal” internacional.
No plano nacional, ele enfatiza a construção de sociedades inclusivas e sustentáveis, o que passa por sistemas tributários justos para indivíduos e empresas. Contempla mecanismos de proteção social, com especial destaque para a cobertura de saúde universal e para a renda básica universal. A educação e o acesso à tecnologia digital são apontados como “os grandes equalizadores do nosso tempo”. As medidas para sustentabilidade incluem impor condicionantes a pacotes de socorro em setores como aviação e setor naval, criação de empregos ”verdes” e fim de subsídios aos combustíveis fósseis.
O New Global Deal – referência ao New Deal de Franklin Delano Roosevelt – se propõe a direcionar os sistemas políticos e econômicos globais para que entreguem bens públicos globais. Isso implica a justa distribuição de poder, riqueza e oportunidades. Guterres defende comércio livre e justo, sem os subsídios e barreiras prejudiciais aos países em desenvolvimento. Finalmente, o secretário-geral propõe mudanças nas instituições internacionais, de modo a reequilibrar as profundas desigualdades de poder nelas refletidas. Esse seria o caminho para melhorar a governança global, evitando um caótico free for all. Embora a proposta defendida pelo secretário-geral aponte um caminho para a superação da crise, é notório que, nas atuais circunstâncias, as condições políticas para maior protagonismo das Nações Unidas são remotas – ela própria sendo apontada como ator parcial e um instrumento na competição que toma vulto.
America First como ponto de partida para cooperação internacional
Esse cenário fica claro no discurso de Trump, marcado por forte confrontação. O presidente americano equipara o desafio da Segunda Guerra Mundial ao enfrentamento da pandemia provocada pelo “vírus chinês”. Acusa a China de ter ocultado o vírus em seus momentos iniciais – com consequências para a difusão internacional da pandemia – e de dominar a Organização Mundial da Saúde (OMS). Em seguida, ressalta a imensa mobilização dos EUA na produção de ventiladores, tratamentos e na busca por uma vacina.
Sobre esse ponto, cabe observar que Trump se dirige tanto à política internacional quanto ao público doméstico. É notório que a pandemia colocou em xeque a capacidade de reação do Estado norte-americano e de seu governo de promover uma reação nacional articulada, além de expor a fragilidade do sistema de saúde e a desigualdade social nos Estados Unidos. Esses aspectos, somados ao negacionismo e à atitude contrária à ciência de Trump, impediram uma eventual liderança dos Estados Unidos no enfrentamento internacional da crise. Com efeito, também no plano doméstico a resposta de Trump à crise é fortemente questionada, o que se agravou conforme veio a público que o presidente sabia da gravidade da doença, enquanto buscava minimizá-la em suas declarações, e por sua conduta.
Com Trump, os EUA reveem sua participação no plano internacional (Crédito da ilustração: Lazaro Gamio/Axios)
Em todo pronunciamento, Trump se vale de ataques a outros países no intuito de inverter, deturpar, ou relativizar, os retrocessos promovidos por seu governo em diversos campos. Assim, aponta o retrospecto ambiental da China, enquanto sustenta que sua saída dos Acordos de Paris foi acompanhada de ampla redução das emissões de carbono por parte dos EUA.
Na mesma linha, alerta para inoperância das Nações Unidas na agenda dos Direitos Humanos em questões como opressão contra as mulheres, trabalho forçado, tráfico de drogas, perseguição religiosa, direitos dos homossexuais, entre outros. Muitos desses temas são justamente aqueles que têm provocado convulsões na sociedade norte-americana – em especial, as tensões raciais desencadeadas pela revolta contra a violência policial e sobre o direito das mulheres ao aborto.
Na segunda parte de seu pronunciamento, Trump busca reafirmar o poder americano, assegurando rápida retomada da economia e enfrentamento comercial com a China. Ao mesmo tempo, anuncia vultosos investimentos nas forças militares e propagandeia a superioridade tecnológica de seus armamentos. Defende que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) foi revitalizada em seu governo, o que vai de encontro ao aprofundamento das divisões entre EUA e seus tradicionais aliados europeus, e destes entre si, desde que Trump assumiu a presidência dos Estados Unidos.
Trump defende sua política para o Oriente Médio e lista movimentos como a retirada dos Estados Unidos do acordo nuclear com o Irã, acompanhada de pesadas sanções contra este país, assim como o enfraquecimento do Estado Islâmico. Celebra, ainda, os acordos de paz entre Israel, Emirados Árabes e Bahrein e anuncia a proximidade da retirada das tropas americanas do Afeganistão.
O presidente dos EUA encerra seu discurso com a defesa de sua política America First e, em termos mais amplos, dos egoísmos nacionais como ponto de partida para a solução das controvérsias internacionais e de possível cooperação. Nesse sentido, legitima tanto sua política econômica como sua estratégia internacional centrada em relações bilaterais. A ênfase de que esse seria um padrão virtuoso para todos os Estados Nacionais abstrai, naturalmente, as profundas disparidades de poder que Trump faz questão de sublinhar.
Globalização e cooperação ‘win-win’ no multilateralismo chinês
Por fim, o discurso de Xi Jinping constitui – em todos os temas abordados – um contraponto à retórica e à política externa dos EUA sob Trump. A China é apresentada como um país comprometido com a ordem liberal, isto é, com o multilateralismo e com as instituições internacionais outrora associadas à hegemonia norte-americana erguida no Pós-Guerra. É por esse motivo que o discurso soa como vindo da potência estabelecida, e não como da potência emergente, que a China é.
Esse ponto pode ser observado já no início do pronunciamento, em que Xi Jinping enaltece a vitória comum na “Guerra Mundial antifascista” – referência à Segunda Guerra Mundial – e defende a institucionalidade ali construída, com destaque para a própria ONU e para a OMS, abordada no contexto do combate à pandemia da covid. Com tintas iluministas, defende a primazia da ciência e da luta pela vida, “sem que nenhum paciente seja abandonado”.
A China é apresentada como protagonista no esforço internacional de cooperação contra a pandemia, pelo compartilhamento de suas práticas de controle, métodos diagnósticos e terapias, participação nas pesquisas em andamento e por seu compromisso em tratar uma futura vacina como bem público. Ressalta-se, ainda, a menção de tornar mais estáveis as cadeias de suprimento da saúde, possivelmente uma reação às iniciativas ocidentais de reformulação dessas cadeias.
Como é de conhecimento público, a fase inicial da pandemia implicou escassez de suprimentos médicos, principalmente de respiradores, o que levou a uma disputa internacional clandestina para assegurar o abastecimento doméstico. É importante observarmos, porém, que as pressões sobre a China extrapolam a cadeia da saúde e abrangem as Cadeias Globais de Valor como um todo, um elemento-chave de sua estratégia de catch-up tecnológico.
Ao tratar do tema da retomada da economia, o presidente da China enfatizou a necessidade de reabertura ordeira dos negócios e das escolas, mas foi além do discurso protocolar, ao defender políticas de coordenação macroeconômica há muito abandonadas pelos EUA. Ademais, contempla países em desenvolvimento, em especial africanos, com defesa do alívio de suas dívidas, assistência internacional, redução da pobreza e desenvolvimento econômico e social. Trata-se aqui, não apenas de demarcar uma vez mais oposição à agenda norte-americana, mas de sinalização para países, nos quais os investimentos chineses avançam fortemente.
A pandemia da covid-19 é o pano de fundo utilizado para reiterar a defesa do multilateralismo, da paz, do desenvolvimento e da cooperação “ganha-ganha”, tanto na política como na economia. Em termos gerais, Xi Jinping pretende reforçar as instituições de modo a conter impulsos unilaterais dos EUA, mas também dirimir temores sobre a formação de blocos de influência excludentes na esfera chinesa. Além disso, há o alerta para que não se caia “na armadilha do choque de civilizações”, ou de uma nova “Guerra Fria”, em refutação de formulações que ganham corpo nos debates público e acadêmico norte-americanos e que alimentam o espírito de cruzada que constitui vertente da política externa dos EUA, não apenas sob Trump.
Um ponto que cabe ressaltar no discurso é a defesa da globalização – do papel da Organização Mundial do Comércio (OMC) – que destoa da retórica desenvolvimentista de países em desenvolvimento acerca das assimetrias internacionais. Isso pode ser compreendido no contexto mais amplo do modelo de desenvolvimento chinês, com sua “abertura econômica” estrategicamente orientada, crescente sofisticação da pauta exportadora e do poder de barganha de seu Estado frente ao Investimento externo direto. É contra esse modelo que está orientada a guerra comercial e tecnológica lançada por Trump.
Nesse sentido, entendemos que um olhar exclusivo para os números do déficit comercial na relação bilateral com a China, ou para os interesses dos operários americanos empobrecidos que contribuíram para sua eleição, não contempla o cerne da disputa. Como resposta, Xi Jinping propõe um redirecionamento da economia chinesa para a circulação doméstica em sinergia e em retroalimentação com a circulação internacional.
Em síntese, os discursos proferidos na 75ª Assembleia Geral denotam um secretário-geral com propostas fortes, mas impotente. Os EUA sob Trump representam a potência dominante disposta como nunca a se valer de seu poder sem amarras, não havendo pretensão de exercê-lo por meio das instituições internacionais. Nesse sentido, abandona relevante pilar de sua hegemonia no Pós-Guerra. Xi Jinping busca se contrapor a Trump e apresenta a China como sustentáculo da ordem multilateral, da cooperação econômica e dos esforços internacionais de superação da pandemia. Essa estratégia, em nossa leitura, tem por objetivo dissuadir temores sobre suas pretensões, reforçar a institucionalidade internacional, por meio da qual a China desempenha crescente papel, e assegurar interesses econômicos e influência, os quais também exerce ao largo dos marcos do multilateralismo.
* Rafael Seabra é doutor em Economia Política Internacional (PEPI – UFRJ). Contato: seabrarafael@hotmail.com.
** Recebido em 11 out. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.