China e Rússia

Esperando a China, último tratado nuclear Rússia-EUA agoniza

Marshall Billingslea, enviado especial do presidente para controle de armas, tuitou esta foto dos assentos vazios designados à China nas conversas nucleares de 22 de junho, em Viena. No início do mês, disse o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores chinês, Hua Chunying: “A China tem reiterado, repetidamente, não ter intenção de participar das chamadas negociações trilaterais de controle de armas com os Estados Unidos e a Rússia” (Crédito: @USArmsControl/Twitter)

Por Solange Reis*

Representantes da Rússia e dos Estados Unidos se reuniram na Finlândia, no dia 5, para discutir estabilidade estratégica e contenção nuclear. O tópico principal da agenda foi a renovação do Novo Tratado para Redução de Armas Estratégicas, acordo bilateral conhecido como NEW Start. Sua validade expira em fevereiro de 2021, mas os Estados Unidos relutam em estendê-la.

O tratado nuclear bilateral foi assinado, em 2010, pelos presidentes Barack Obama e Dmitry Medvedev. Apesar da então objeção de muitos republicanos, predominou a percepção de que o tratado contribuía para a paz por reduzir a corrida armamentista entre as duas maiores potências nucleares. Com a chegada de Donald Trump ao poder, essa ideia se deteriorou. O NEW Start passou a ser visto pelo governo americano como um instrumento defasado em relação a novas armas e ao fortalecimento militar da China.

Estágio terminal

Marshall Billingslea, que fala em nome dos Estados Unidos, saiu do encontro dizendo que houve um progresso importante. Até o momento, essa foi a última reunião oficialmente confirmada antes da eleição de novembro. Uma fonte não identificada da agência de notícias AP revelou, no entanto, que outro encontro deverá acontecer neste mês. Como a renovação desse tratado não depende do Senado, Trump reeleito terá condições de enterrá-lo de vez. O cenário ficará mais promissor, caso o democrata Joe Biden saia vitorioso, mas nem isso está garantido.

O presidente Vladimir Putin precisará da aprovação parlamentar, embora essa seja uma mera formalidade. Na abertura da 75ª Assembleia Geral da ONU, Putin disse que a renovação incondicional é de suma importância. Seu governo, entretanto, não ficou tão otimista com a reunião em Helsinque. Sergey Lavrov, ministro das Relações Exteriores, lamenta que o tratado morra devido às condições inaceitáveis dos Estados Unidos. A Casa Branca exige adaptações, ou espera transformar o tratado em um instrumento trilateral para incluir a China e novos tipos de armamentos. A relutância mostra um ponto de inflexão na política de segurança americana, reduzindo o foco no terrorismo internacional para retornar à tradicional competição de poder entre Estados.

O NEW Start é o único tratado bilateral vigente que limita o arsenal nuclear dos dois países. Juntos, Estados Unidos e Rússia possuem bem mais de 90% do estoque mundial de ogivas nucleares. A polêmica em torno do acordo é mais uma tentativa americana de abandonar compromissos bilaterais, ou multilaterais, considerados pela administração Trump como nocivos aos interesses nacionais. No ano passado, o governo retirou os Estados Unidos do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF, na sigla em inglês) de 1987, sob a alegação de que os russos violaram o acordo. É provável que o NEW Start tenha um fim parecido, já que a Casa Branca volta a acusar os russos de violação e aponta a defasagem do documento quanto à configuração atual de forças globais.

Defasagem estratégica

Alguns fatores motivam a abordagem. Em primeiro lugar, a percepção de que os Estados Unidos são ameaçados de perto pela Rússia, e agora também pela China, quanto à capacidade no campo nuclear-militar.  Segundo um artigo divulgado pelo Departamento de Defesa, em junho de 2020, a Rússia vem modernizando seu arsenal há 15 anos. Cerca de 70% dessa atualização já estaria concluída. Por sua vez, a China deverá ter um potencial equivalente ao americano dentro de uma década, segundo o almirante Charles A. Richard, responsável por um dos 11 Comandos Estratégicos (USSTRATCOM).

Quanto à vantagem da Rússia no campo nuclear-civil, o governo americano a reconhece abertamente. Em um documento de 2020, intitulado “Restaurando a Vantagem Competitiva dos Estados Unidos em Energia Nuclear”, o Departamento de Energia propõe recuperar a liderança. A estratégia é reavivar a indústria de mineração e o processamento de urânio, investir em pesquisa e desenvolvimento e recuperar a ponta no mercado de exportação de produtos para o setor nuclear. Hoje, China e Rússia dominam as exportações no setor civil.

A rejeição americana ao tratado também é baseada na alegação de que a Rússia desenvolveu armas que fogem ao escopo legal e que o país excedeu a quantidade permitida pelo NEW Start. Hans M. Kristensen, diretor do Projeto de Informação Nuclear, da Federation of American Scientists, contraria essa versão. Segundo o cientista, assim como os Estados Unidos, a Rússia diminuiu seu arsenal desde que o tratado foi ratificado.

Outra motivação americana é transformar o tratado, ou seu eventual substituto, em um acordo trilateral para incluir a China e as armas de última geração. Há anos, o Pentágono publica um relatório anual indicando o crescimento nuclear chinês como um grande perigo à segurança nacional dos Estados Unidos. No relatório deste ano, a palavra “ameaça” aparece 56 vezes.

Em junho, a China recusou o convite dos Estados Unidos para participar de outra rodada do NEW Start. A reação americana foi colocar bandeiras da China sobre mesas vazias para simbolizar a ausência. Do ponto de vista estratégico, os chineses ganham ficando fora do acordo. Afinal, possuem muito menos quantidade de armas nucleares do que os russos e americanos.

Pelas cláusulas do NEW Start, Rússia e Estados Unidos devem cumprir o seguinte teto:

  • Total de 700 mísseis balísticos intercontinentais instalados (ICBM, na sigla em inglês), mísseis balísticos de base submarina (SLBM, na sigla em inglês) e bombardeiros equipados com armas nucleares;
  • 1.550 ogivas nucleares nos armamentos citados acima;
  • 800 lançadores para os armamentos citados acima — instalados, ou não.

Esperando a China

Além de restringir a quantidade instalada desse tipo de arma, o NEW Start confere a cada um dos signatários o direito de verificar o cumprimento das regras pela outra parte. São permitidas até 18 visitas por ano às instalações alheias, sem a necessidade de notificação com muita antecedência. Essa é uma das razões pelas quais a administração Obama considerava o tratado muito positivo para a estabilidade mundial.

Tal visão governamental mudou desde a eleição de Donald Trump. O atual governo ameaça não apenas deixar o arranjo caducar, como aumentar o arsenal do país. Para a satisfação dos neoconservadores, que propagam uma nova Guerra Fria, e o deleite da alta hierarquia militar, que há anos sugere mudar a estratégia nacional de segurança para a competição entre Estados na Ásia.

Durante seu mandato, Trump trabalhou para modernizar o arsenal nuclear. Além de destinar mais verbas para o segmento, o presidente acelerou a substituição de mísseis antigos, desenvolveu novas armas e defendeu a retomada de testes nucleares. De vez em quando, ameaçou lançar uma bomba nuclear sobre um país rival e retirou os Estados Unidos de alguns tratados importantes para a estabilidade global. Além do INF, o país saiu unilateralmente do acordo sobre o programa nuclear iraniano.

Em entrevista ao jornalista Bob Woodward, o presidente Trump disse ter construído um sistema de armas como nunca ninguém ousou fazer no país. Alguns especialistas acham que ele se referiu à arma W76-2, capaz de burlar o sistema de defesa aéreo russo. As declarações de Trump têm alguns objetivos externos, além da usual propaganda doméstica. Um deles é pressionar para que Rússia a convença a China a aderir às discussões.

Ao menos no primeiro momento, Washington estaria recorrendo ao realismo defensivo, esperando que a estrutura do sistema internacional enquadre os chineses para que os demais jogadores mantenham suas posições relativas. O problema é que já não basta combinar somente com os russos.

Na famosa peça de Samuel Beckett, a espera é o tema central. Esperando Godot um desconhecido que nunca chegará –, dois vagabundos começam com um diálogo. Estragon diz “nada a fazer”, ao que Vladimir responde “estou quase acreditando”. Talvez os signatários do NEW Start devessem evitar outras semelhanças com a dramaturgia e preservar um tratado que, apesar de não garantir a estabilidade, é melhor do que nada.

 

Solange Reis é doutora em Ciência Política pela Unicamp, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu). Contato: reissolange@gmail.com.

** Recebido em 12 out. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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