China e Rússia

Curto, grosso e para sua base eleitoral: o discurso de Trump na ONU

Em mensagem pré-gravada na Casa Branca, o presidente Trump faz seu pronunciamento na 75a sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 22 de set. 2020 (Crédito da imagem: UNTV via AP)

Por Rafael R. Ioris*

O mandatário do país mais influente do mundo discursou na sessão de abertura anual da Assembleia Geral das Nações Unidas. Discursando, como todos os outros chefes de Estado do mundo, via teleconferência, Trump pronunciou um discurso curto, rasteiro, desconexo e falsificador, mas não obstante com lógica e objetivos claros. Basicamente atacando a China e o multilateralismo, e se eximindo de qualquer responsabilidade pelo trágica realidade de ser o líder do país com a maior taxa de caso e mortes pela covid-19, Trump se aproveitou do que deveria ser a maior plataforma política global para falar para o público interno de seu país, especialmente sua base eleitoral, assim como para criar clipes de frase que certamente deverão ser usadas na campanha eleitoral em curso.

Em tom agressivo, até mesmo beligerante, Trump exagerou seus méritos internos e conquistas na esfera global. Para tanto, no primeiro caso, Trump negou os fatos ao dizer que seu governo tem administrado de forma competente a crise da covid-19 nos Estados Unidos, que ele teria agido para proteger seus compatriotas de maneira assertiva e proativa – embora, na verdade, ele tenha negado a gravidade da pandemia por pelo menos um mês, período que, especialistas apontam, poderia ter reduzido as mortes, hoje mais de 200 mil, em pelo menos um terço –, ao ter aumentado a produção doméstica de ventiladores e investido em vacinas.

No âmbito internacional, afirmou igualmente que teria sido somente pela ação de seu governo que a Organização Mundial da Saúde (segundo ele, organismo cooptado e sob controle do governo chinês), teria começado a levar “a sério” a gravidade da pandemia. Falsificou também a realidade da ajuda que os EUA estariam oferecendo a outros países já que, de fato, os ataques à OMS e à decisão associada de retirada do seu país do organismo, tão central no combate à pandemia, têm, ao contrário dificultado ações coordenadas ao redor do mundo.

Aprofundando a beligerância do discurso, ainda que o novo coronavírus causador da covid-19 tenha sido chamado duas vezes de “vírus chinês” pelo presidente norte-americano, os ataques à China não se resumiram à temática da pandemia, já que o país, juntamente com outras iniciativas multilaterais, como o Acordo de Paris, foi duramente atacado. De maneira concreta, Trump chamou a China de o maior vilão da crise ambiental atual, já que seria o maior poluidor do mundo, ao passo que os EUA teriam recentemente reduzido mais do que qualquer outro país suas emissões de carbono – afirmação para a qual não há sustentação.

Aprofundando o ataque, Trump, de maneira, ao mesmo tempo, agressiva e defensiva, afirmou que a saída dos EUA do Acordo Ambiental de Paris se deveu ao fato de o país ter sido injustamente tratado pelo acordo, já que a suposta redução que sua nação teria feito não teria sido reconhecida, muito menos valorizada como devido. Em linguagem direta, Trump afirmou tais órgãos globais estariam “punindo os Estados Unidos”, algo que ele “jamais permitirá”.

O mote de que a América estaria sendo injustiçada pelo mundo e que ele, seu grande líder, seria o defensor imprescindível da nação sob ataque foi, de fato, o eixo de todo discurso, corroborado pela reiteração do fato de os EUA terem o maior poder bélico do mundo e terem recebido, no governo de Trump, a maior alocação de recursos para o setor militar em, pelo menos, duas gerações – tema claramente destoante para um discurso que seria apropriado para o fórum do mais importante organismo que promoção da paz global.

Seguindo ainda nessa lógica, o presidente norte-americano, de maneira quase ameaçadora, apresentou sua crítica ao fato de que as Nações Unidas não estariam tratando das verdadeiras questões urgentes do mundo, como liberdades religiosas e terrorismo; seletivamente minimizando o papel da Organização em questões do desarmamento e proliferação nuclear já que, segundo Trump, seu país, sozinho, teria sido mais competente para resolver tais questões, como teria sido demonstrado na questão nuclear iraniana.

A seletividade de Trump continuou quando afirmou que seu país continuaria sendo o maior promotor dos direitos humanos ao redor do mundo embora, de fato, Trump tenha sido excessivamente silencioso em criticar violações a tais direitos, inclusive em países que, de outra forma, são o cerne de suas críticas, como a China. Fechando com chave de ouro sua cruzada narrativa antimultilateral, Trump afirmou que a própria razão de existência das Nações Unidas estaria falida e que as bases de tal ocaso seria o fato de terem tentado, por muito tempo, dar respostas globais sem terem tomado conta, cada país, em primeiro e talvez em único lugar, de suas próprias populações e interesses. Nas palavras de Trump, “rejeito as abordagens do passado (que buscaram cooperação multilateral) e, com orgulho, ponho os interesses da América em primeiro lugar. E é isso que vocês todos devem fazer também”.

Difícil encontrar na história recente dos EUA, país que sempre teve forças isolacionistas históricas muitíssimo importantes – lembremos que os EUA, apesar de Woodrow Wilson, presidente do país, ter sido o proponente do organismo, acabaram não participando das Ligas das Nações no pós-Primeira Guerra – uma rejeição tão forte e explícita da própria lógica de cooperação multilateral como o discurso de Trump na Assembleia Geral das Nações Unidas em setembro de 2020. Quais efeitos poderá ter tal pronunciamento, ainda é cedo para saber.

O que é certo é que Trump, mesmo sendo o chefe executivo do país responsável pela maior quota de contribuição para a organização (ou seja, poderia de fato vir a sabotar o funcionamento da mesma), não estava falando para representantes dos outros países. Falava, sim, para o público interno, especialmente para sua base eleitoral. E ainda que nos EUA, política externa nunca seja uma tema decisivo em eleições presidenciais, as frases e mesmo o tom do discurso de Trump expressam bem a lógica de seus apoiadores e consolida, assim, tragicamente a visão de mundo unilateral e confrontacionista dos atuais controladores do poder na maior potência militar do planeta.

 

* Rafael R. Ioris é professor da Universidade de Denver e pesquisador do INCT-INEU. Contato: rafael.ioris@du.edu.

** Publicado originalmente no site da Carta Maior, em 1º out. 2020. Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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