ONU ignora truco dos Estados Unidos contra o Irã
Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, fala aos repórteres após uma reunião com os membros do Conselho de Segurança da ONU, em Nova York, no dia 20 de agosto (Crédito: AFP)
Por Solange Reis*
No ano em que a Organização das Nações Unidas (ONU) completou 75 anos, o presidente do país que foi seu principal idealizador voltou a desafiar a autoridade da organização. Contrariando demais membros do Conselho de Segurança (CS), os Estados Unidos anunciaram a retomada das sanções contra o Irã e a punição para as nações que as violarem.
O detalhe curioso é que não se trata de sanções unilaterais, mas aquelas que a ONU suspendeu no ano de 2015, por ocasião da assinatura do Plano de Ação Conjunto Global (JCPOA, na sigla em inglês). Mais conhecido como acordo sobre o plano nuclear iraniano, o instrumento foi negociado entre o Irã, a Alemanha e os cinco membros permanentes do CS – China, Rússia, Estados Unidos, Reino Unido e França. O que torna a decisão do governo americano ainda mais ilógica é o fato de os Estados Unidos não serem mais signatários do JCPOA desde 2018, quando se retiraram unilateralmente do compromisso conjunto.
Para a Casa Branca, essas questões parecem ser pormenores burocráticos. O Irã teria violado o JCPOA, o que daria aos demais signatários o direito de ativar o mecanismo snapback que reimpõe as sanções instantaneamente, em conformidade com a Resolução 2231. “Os Estados Unidos restabeleceram agora as sanções da ONU contra o Irã. (…) Minhas ações de hoje enviam uma mensagem clara ao regime iraniano e àqueles da comunidade internacional que se recusarem a se levantar contra o Irã”, informou a ordem executiva assinada por Donald Trump, em 21 de setembro.
Ao assumir tal postura, o governo abre nova rodada no cerco ao Irã para fazê-lo recuar de seus interesses geopolíticos no Oriente Médio. O enfraquecimento iraniano é inversamente proporcional ao fortalecimento de aliados dos Estados Unidos na região, como Israel e alguns países árabes. Ao subir o tom na política externa, Trump também pretende obter algum bônus eleitoral junto aos eleitores mais conservadores e intervencionistas do meio político. A reação da ONU indica, no entanto, que o país se isola cada vez mais no âmbito global, o que significa um desafio para sua posição hegemônica.
Direito torto
A decisão de reaplicar as sanções é um tanto kafkaniana. Em primeiro lugar, os Estados Unidos são o único país-signatário que não faz mais parte do acordo. Em 2018, Trump decidiu não renovar o compromisso, atendendo aos pedidos do Senado, de maioria republicana, aos interesses de alguns países no Oriente Médio e a uma certa convicção pessoal. Ao invocar o snapback, sem sequer ser parte do compromisso, inverteu a lógica do direito internacional, ou de qualquer tipo de fundamento jurídico.
Outra anomalia legal é o fato de os Estados Unidos determinarem sanções coletivas de forma unilateral, já que todos os outros signatários não embarcaram na ideia. A proposta nem foi considerada para votação no CS, sendo entendida como unilateral, paradoxal e juridicamente infundada. Dessa forma, o principal criador da ONU continua sua trajetória de isolamento, rompendo os princípios do multilateralismo do pós-1945.
A rejeição foi de crítica por parte das principais potências mundiais. França, Inglaterra e Alemanha (E3) fizeram uma declaração conjunta repudiando as ameaças da Casa Branca, as quais dizem ser desprovidas de legalidade. A discordância explícita é mais uma prova da cisão nas relações transatlânticas durante a gestão Trump.
Zhang Jun e Dmitry Polyansky, representante e vice-representante da China e da Rússia na ONU, respectivamente, concordam com os europeus. Sob o direito internacional, não é possível sair de um acordo e, depois, reclamar os benefícios de suas provisões, disse Polyansky. “Parece que existem dois planetas. Um fictício, da guerra de todos contra todos, no qual os Estados Unidos fingem que podem fazer o que quiserem, sem ‘persuadir’ ninguém, violar e abandonar acordos, mas ainda assim se beneficiar deles, e outro no qual o resto do mundo vive e reina o direito internacional e a diplomacia”, tripudiou.
Diplomacia distópica
As razões práticas para que esses países ignorem a Casa Branca são várias. Além da discordância quanto à motivação – sobre o Irã ter violado o acordo – e da falta de embasamento legal para o procedimento, os países temem que a medida ilógica leve o governo iraniano a sair do programa nuclear de forma definitiva, ou até mesmo do Tratado de Não Proliferação. Sem falar no risco de se criar um precedente jurídico e moral para que outros tratados sejam desrespeitados no futuro.
Mantendo o estilo retórico usual, o Irã anunciou que os Estados Unidos terão uma resposta decisiva, caso façam bullying contra países que desrespeitarem a medida unilateral. Depois que Trump retirou seu país do acordo, o Irã afrouxou algumas regras que limitavam o desenvolvimento de programa nuclear. Segundo a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), órgão internacional que fiscaliza as instalações nucleares iranianas, uma quantidade de material não declarado tem sido detectada nas usinas. A existência de urânio enriquecido acima do permitido pelo acordo deve ser explicada pelo Irã, diz a agência. Mas a AIEA não confirma que houve violação e garante que continua tendo acesso livre às instalações iranianas, conforme acordado no JCPOA.
A reação do governo americano contra os aliados no CS foi afiada. Mike Pompeo, secretário de Estado, disse que os europeus estão se colocando ao lado dos aiatolás e que seu país tem o direito de reativar as sanções porque elas foram aplicadas pelo CS, do qual os EUA fazem parte. Algo como uma pessoa vender um terreno a um parente, mas reclamar direitos sobre a propriedade pelo simples fato de continuar a fazer parte da família.
Quatro décadas de sanções
Os Estados Unidos impõem sanções contra o Irã desde 1979, após o sequestro de diplomatas americanos na embaixada em Teerã. Outras punições unilaterais foram aplicadas ao longo do tempo. Em 2007, a estratégia de estrangular o Irã economicamente ganhou reforço na própria ONU, que aprovou a Resolução 1747 com penalidades adicionais. Outras resoluções posteriores continuaram a pressionar o Irã a diminuir o escopo do programa nuclear, que o governo em Teerã garante ser apenas civil.
A partir de 2013, intensificaram-se as negociações entre o Irã e o P5+1, formado pelos membros permanentes do CS e a Alemanha, a fim de encontrar uma solução para a questão. Dois anos depois, as partes negociadoras assinaram o JCPOA, instrumento que suspendeu as sanções em troca de redução e fiscalização do programa e das instalações. Embora as autoridades iranianas sempre tenham dito não haver pretensão de produzir armas nucleares, os negociadores exigiram medidas que assegurassem o exclusivo uso civil.
Ao ser eleito, Donald Trump chamou o acordo de o “pior da história”. Durante pouco mais de um ano, manteve o compromisso e a suspensão das sanções. Em 2018, optou pela saída unilateral e ameaçou retomar as sanções, caso suas demandas não fossem atendidas. Entre os 12 pontos levantados na época, apenas dois são parcialmente ligados à questão nuclear. O restante pede o recuo de praticamente toda a estratégia militar do Irã no Oriente Médio e o fim do desenvolvimento de mísseis balísticos. O que antes era apenas a preocupação com a possibilidade de o Irã desenvolver armas nucleares, ganha contornos bem amplos agora.
Derrota diplomática
Ressuscitar as sanções não foi o único motivo para o governo americano ir de encontro ao Conselho de Segurança. Em agosto, também fracassou seu plano de estender o embargo de armas contra o Irã. Igualmente amparado por uma cláusula do JCPOA, o bloqueio expira em 18 de outubro. Os Estados Unidos pediram formalmente que o Conselho mantivesse o embargo, mas foram ignorados. Rússia e China votaram contra, 11 países se abstiveram (incluindo os aliados europeus), e apenas a República Dominicana acompanhou os americanos no voto. Eram necessários nove votos para a aprovação.
O Irã comemorou o que considera uma vitória diplomática sobre os Estados Unidos. Mike Pompeo, por sua vez, acusou o CS de falhar em conter o Estado que mais apoia o “terrorismo no mundo” e prometeu corrigir esse erro. Já o representante especial dos Estados Unidos para o Irã, Brian Hook, diz ter esperanças de conseguir a extensão do embargo antes da expiração em outubro. Considerando que do outro lado da mesa estão alguns dos maiores exportadores mundiais de armas, e que todos eles têm uma relação atual turbulenta com Washington, o mais provável é que essa esperança tenha vida curta.
* Solange Reis é doutora em Ciência Política pela Unicamp, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu). Contato: reissolange@gmail.com.
** Recebido em 30 de setembro, 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.