Marinha dos EUA: avançando de volta para a pirataria?
‘USS Kearsarge’ e ‘USS Bainbridge’ navegam no Mar da Arábia, em 17 de maio de 2019 (Crédito: Reuters)
Por Atul Bhardwaj e Inderjeet Parmar*
A abordagem de engajamento de “toda sociedade”, ao estilo da Guerra Fria, do governo Trump para uma “ameaça chinesa” fabricada parece não ter limites. Tendo transformado comércio em arma, por meio de tarifas, interrompido o financiamento e deixado a Organização Mundial de Saúde, “centralizada na China”, e ameaçado a China com sanções contra sua nova lei de segurança nacional em Hong Kong, alguns analistas navais importantes estão ponderando sobre o retorno à pirataria à moda antiga, em alto-mar, para restaurar a ordem. Ou seja, para colocar a China em seu lugar, licenciando corsários para saquear sua enorme Marinha Mercante.
A China, ao que parece, é a única questão nos EUA e na política mundial hoje em dia, no que diz respeito ao governo Trump e a seus mais falantes líderes de torcida. Embora a “ascensão da China” tenha preocupado administrações anteriores de ambos os partidos, a obsessão do governo Trump com o assunto é palpável, especialmente em um ano eleitoral em que mais de 100.000 norte-americanos morreram por causa do coronavírus, mais de 40 milhões ficaram desempregados, e protestos nacionais contra a violência policial estão ocorrendo.
Trump está presidindo o que parece cada vez mais um Estado ilegítimo e falido, cuja autoridade moral está afundando e cuja liderança e instituições têm sido desconstruídas por projeto de décadas.
Uma ameaça externa existencial, do tipo Guerra Fria, está sendo evocada pelo governo Trump e seus aliados belicistas, como Frank Gaffney e o recém-ressuscitado “Comitê do Perigo Presente: China”, de Stephen Bannon. Isso é para distrair a atenção de problemas e crises flagrantes que são criados em casa e enraizados em um modelo político-econômico falido, que coloca os interesses corporativos e os lucros na frente e no centro. Nos comunicados e documentos de políticas da administração, isso é frequentemente chamado de “proteção de uma ordem internacional livre e aberta baseada em regras” contra a influência maligna da China.
Não há indícios de ironia nesse mantra frequentemente repetido, mesmo quando o próprio governo Trump mina sistematicamente as instituições internacionais e o direito internacional.
Paranoia de observação naval dos EUA
A Marinha dos EUA tem regulado as ondas e renunciado às regras desde a Segunda Guerra Mundial. Nenhum outro poder chegou perto de desafiá-la. Mas o milagre chinês catapultou suas forças navais, por algumas medidas, ainda que grosseiras, para o status internacional.
Paradoxalmente, a China continental agora é uma potência marítima significativa, com mais de 300 navios de guerra e uma frota mercante de mais de 4.000 navios. Em nítido contraste, os níveis de força da Marinha dos EUA estão paralisados em 295 navios de guerra, enquanto apenas 246 navios mercantes hasteiam a bandeira dos EUA. A Marinha chinesa possui mais navios, ou cascos, do que as marinhas do Reino Unido, Índia, Alemanha e Espanha juntas.
No entanto, meros cascos não contam toda história. A Marinha dos EUA mantém vantagens fundamentais sobre as da China. Em grande tonelagem, a força dos EUA é três vezes maior. Os EUA têm 11 porta-aviões movidos a energia nuclear, a força de porta-aviões da China é dois, ambos com motor convencional. Os navios dos EUA estão espalhados globalmente, enquanto os da China são, em grande parte, para operações de defesa costeira. A China está a décadas de chegar perto de desafiar os EUA em alto-mar.
Inflacionar a ameaça para justificar ação
Os EUA, a única superpotência mundial em navegação marítima, parece estar se entregando a um de seus ataques regulares de excessiva angústia, ou mesmo paranoia, sobre seu declínio relativo e o que fazer a respeito. O estresse é aparente nos debates em andamento nos círculos navais de elite dos EUA, onde alguns estrategistas sugerem que a melhor maneira de anular a força marítima da China é atacar seus navios mercantes no mar, usando atores não estatais. Sim, você leu corretamente. Este é um apelo à pirataria aberta, uma solução legalmente tênue para enfrentar uma ameaça supostamente enorme que deveria “limitar a proeminência da lei”. Decodificando, significa que o direito internacional pode ser anulado quando os EUA o disserem.
A própria viabilidade da centenária estratégia naval norte-americana de manter a ordem no mar, a “liberdade dos mares”, protegendo as rotas marítimas de comunicação para o comércio florescer, está sendo questionada. Os ataques surpresa à Marinha Mercante em alto-mar – uma estratégia rejeitada pelos principais estrategistas navais dos EUA, como Alfred Thayer Mahan e Julian Corbett – está sendo reintroduzida no léxico naval. A agenda naval parece estar mudando de acordo com a abordagem totalizada dos EUA de reverter e subordinar o status de grande potência da China.
Guerra de guerrilha em alto-mar
Esse revisionismo no pensamento naval repousa sobre a “estratégia dos fracos”, expressamente revelada em dois artigos publicados na edição de abril da Proceedings, a revista mensal do Instituto Naval dos EUA, cuja “Visão” é “dar voz a quem procura o melhor para a Marinha dos EUA, Corpo de Fuzileiros Navais e Guarda Costeira”. É a publicação de registro do establishment militar-naval, tendo atendido seus leitores ativos e aposentados desde 1874. Os artigos da revista concluem que a Marinha dos EUA deveria estar diretamente envolvida na guerra comercial com a China, empregando “piratas licenciados” para visar e saquear navios mercantes chineses e suas cargas no mar.
Em “Liberem os corsários!”, Brandon Schwartz, ex-gerente de relações com a mídia do influente think tank de Washington, D.C., Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (Center for Strategic and International Studies – CSIS), e o coronel aposentado do Corpo de Fuzileiros Navais, Mark Cancian (consultor sênior do CSIS), fazem uma recomendação radical. Em vez de usar a opção mais demorada, mas legal, de enfrentar as defesas chinesas usando forças navais de propriedade estatal, o Congresso, que é o mandatário constitucional (pelo artigo 1, seção 8, cláusula 11) deveria emitir “cartas de corso”, para navios de propriedade de civis, que lhes dá cobertura legal para capturar, destruir, ou saquear navios mercantes chineses e levar o butim para casa para compartilhar com o governo.
Uma “carta de corso” é efetivamente a permissão para qualquer navio particular, assim autorizado, se armar e praticar pirataria. A guerra irregular, a arma dos fracos, agora está sendo promovida como uma estratégia cada vez mais atraente da Marinha mais poderosa do mundo.
O título do segundo artigo é tão inconscientemente orwelliano que podia muito bem ter sido “Crime é Legal”. De fato, em “US Privateering Is Legal” [O Corso dos EUA é Legal], Schwartz acrescenta que, de acordo com o Protocolo Adicional I (AP I) de 1977 das Convenções de Genebra, os corsários não podem ser rotulados de “mercenários”, desde que sejam nacionais de uma parte em conflito, ou um residente do território controlado por uma parte no conflito.
No entanto, a Convenção Internacional contra o Recrutamento, Uso, Financiamento e Treinamento de Mercenários 2001, ratificada por 35 países (exceto Reino Unido, EUA, Rússia e China), mostra que quase não há distinção entre corsário e mercenário. Ambos são motivados a entrar em hostilidades pelo desejo de obter ganhos privados. Além disso, uma “Carta de Corso” é uma violação grave dos princípios da justiça natural sob o direito internacional consuetudinário, além de ser uma violação do direito internacional sobre o uso da força.
O corso, no entanto, não se limita ao tempo de guerra, porque se torna aplicável em situações em que uma parte específica de um oceano é declarada zona hostil. Por exemplo, quando sanções são impostas a outro Estado, como o Irã, ou a Coreia do Norte, as águas circundantes se tornam uma zona de guerra, onde os corsários podem atacar o comércio.
O recrutamento de corsários para derrubar governos é contra o direito internacional, sob uma resolução do Conselho de Segurança da ONU de 1977, que rejeita o recrutamento de mercenários com o objetivo de derrubar governos dos Estados-membros das Nações Unidas.
Navegando com ousadia de volta ao passado: o retorno da Companhia da Índias Orientais
O ataque licenciado pelo Estado a navios comerciais foi um negócio popular de 1689 a 1815. No entanto, à medida que o comércio marítimo internacional ganhou impulso, o aumento dos custos dissuadiu os comerciantes de armarem seus navios. Mas, à medida que o “comércio seguia a bandeira” e vice-versa, o corso declinou com a ascensão do poder naval do Estado britânico. Foi também nessa época que a Índia testemunhou uma violenta transferência de poder da Companhia das Índias Orientais para a Coroa.
O combate privatizado no mar e a reintrodução da guerra de guerrilha no alto-mar são uma receita para a anarquia. No entanto, apesar da experiência passada e das restrições legais, as marinhas privadas podem ganhar legitimidade, porque o mundo anglo-americano parece decidido por sua reintrodução. A “Guerra ao Terror” – especialmente as Guerras do Afeganistão e do Iraque – renovou as energias das Empresas Militares Privadas (PMCs) no campo de batalha para fornecer apoio logístico e serviços de reparo de armas. A elevação de PMCs para o papel de combater completaria o processo de “mercenarização” da profissão de armas.
Os Estados Unidos não estão sozinhos na privatização da guerra. Os russos usam ativamente a Companhia Militar Privada Wagner na Síria, uma entidade formalmente privada com laços muito próximos com o Estado. Mas fornece distância suficiente para permitir “contestabilidade plausível” ao presidente Putin.
Erik Prince, o fundador de uma das PMCs mais notórias, a Blackwater (renomeada como Academi) propôs abertamente que o governo dos EUA reestruturasse a guerra no Afeganistão, retirando completamente o Exército nacional dos EUA e entregando operações à sua empresa. Em uma entrevista, Prince apontou a Companhia das Índias Orientais, durante a colonização britânica, como uma fonte de emulação para a política dos EUA no Afeganistão. Em um artigo publicado no “USA Today”, Prince escreveu: “Essa abordagem custaria menos de 20% dos US$ 48 bilhões gastos no Afeganistão este ano”.
Prince é o irmão da secretária de educação, Betsy DeVos. Betsy é casada com o ex-CEO da Amway Dick DeVos. O clã DeVos é um dos maiores patrocinadores de think tanks conservadores, que incluem o American Enterprise Institute.
Os pronunciamentos de Prince devem ser levados a sério e é preciso considerar as consequências a longo prazo de tal movimento na ordem mundial. Como a Companhia das Índias Orientais, uma entidade corporativa agindo sob o disfarce de “soberania delegada”, metamorfoseada em poder colonizador, forma uma parte importante da experiência histórica da Índia. E a explosão de violência que causou o desaparecimento da empresa também deve ser lembrada.
Os conservadores norte-americanos prezam um Estado mínimo, promovendo a privatização como e quando necessário. A “corporativização” do combate é o próximo grande passo no sentido de entregar uma das principais funções confiadas ao Estado-nação. Os paleoconservadores que atualmente dominam o espaço político-intelectual nos Estados Unidos procuram resgatar essas ideias retrospectivas. J. Michael Waller, no Center for Security Policy (CSP), por exemplo, propôs que o Congresso emitisse cartas de corso, para que entidades norte-americanas privadas possam confiscar bens e aplicar represálias para fazer o PCC (Partido Comunista da China) “pagar” pela pandemia global, e compartilhar a riqueza (resultante) com o contribuinte americano.
O CSP é um influente think tank conservador liderado por Frank Gaffney. Gaffney, juntamente com Steve Bannon, ex-CEO da campanha eleitoral do Trump 2016 e estrategista-chefe da Casa Branca, está liderando o ataque diplomático contra a China através do Comitê sobre o Perigo Presente – China (Committee on the Present Danger – China, ou CPD-C), um grupo de defesa ultrabelicista.
A agenda política de Trump do século XXI, obcecada pela ameaça aparentemente esmagadora da China, está tentando restabelecer as práticas pré-modernas para subordinar seus rivais. A agenda é impulsionada tanto pelas eleições quanto pela ideologia e nostalgia de uma época passada, quando a China conhecia seu lugar. É retoricamente justificada por reivindicações para defender o estado de direito e a ordem internacional, enquanto seus planos e ações desafiam a própria essência dessa mesma ordem.
* Dr. Atul Bhardwaj é ex-oficial da Marinha e atualmente é pesquisador honorário do Departamento de Política Internacional na City, Universidade de Londres. Inderjeet Parmar é professor de política internacional na City, Universidade de Londres, professor visitante na LSE IDEAS (o think tank de política externa da LSE) e pesquisador visitante no Rothermere American Institute da Universidade de Oxford. Ele é colunista do The Wire e membro do conselho consultivo do INCT-INEU (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos dos Estados Unidos).
* Tradução de César Locatelli para a Carta Maior. A versão em inglês foi republicada pelo OPEU em 12 jun. 2020.