Teste nuclear do governo Trump: muito além de uma cortina de fumaça
Crédito: Keystone, Brendan Smialowski/Getty Images
Por Augusto W. M. Teixeira Júnior*
Recentemente, membros da administração Trump anunciaram a possibilidade de os Estados Unidos conduzirem um novo teste nuclear, o primeiro desde setembro de 1992. O governo insere a questão em tela em dois pontos principais: primeiro, seria uma possível resposta à acusação de que Rússia e China estariam conduzindo testes com armas nucleares de baixa capacidade (táticas); segundo, seria uma forma de coletar dados para impulsionar o aprimoramento das capacidades de deterrência do país.
No momento em que os EUA alcançaram a posição de primeiro lugar em número de mortos por decorrência da pandemia do novo coronavírus, à primeira vista, o debate que se instaura sobre a retomada de testes nucleares pode parecer uma cortina de fumaça para tirar a atenção da opinião pública sobre falhas da administração Trump na crise de saúde pública. No entanto, o tema em pauta está ligado intimamente à estratégia do governo Trump sobre assuntos que precedem a pandemia, como: a) a percepção da erosão de sua supremacia militar; b) a possível alteração no equilíbrio de armas estratégicas; e c) seus impactos na arquitetura internacional de controle de armas, talvez não mais favorável aos Estados Unidos.
A concepção de segurança nacional do governo Trump faz eco a um entendimento que se sobressai em diversas publicações de think tanks: a erosão do poder militar dos Estados Unidos. Parte-se da premissa de que administrações anteriores produziram uma atrofia estratégica, produto de uma presença militar global exagerada, a aceitação de comportamentos caronistas por parte de aliados e a depreciação de suas capacidades combatentes e dissuasórias.
A visão de mundo, à qual Walter Mead se referiu como jacksoniana, pode ser vista como orientando a ação internacional dos Estados Unidos de forma a priorizar o interesse nacional em detrimento de bens públicos globais, ou ideias cosmopolitas, mesmo quando em apoio a uma ordem liberal que talvez não mais busque liderar. Para o que nos interessa, a National Security Strategy de 2017 já deixava claro que o acirramento da competição entre grandes potências demandaria atenção especial na reconstrução do poder militar estadunidense.
Rumo a uma segunda Guerra Fria?
A moldura de mundo conhecida como “principled realism” ganhou espaço nos Estados Unidos como resposta à ascensão chinesa e à reemergência da Rússia no tabuleiro geopolítico global. Diante de tais processos, os Estados Unidos se percebem desafiados em seus pilares de sua supremacia global: sua projeção de poder militar e liberdade de ação. Países como China e Rússia construíram e aprimoraram ao longo das últimas duas décadas sistemas de defesa conhecidos nos EUA pelo acrônimo A2/AD (anti-access/area denial). Ancorados fundamentalmente em capacidade missilística (com base em plataformas terrestres, marítimas, ou aéreas) mediadas por sensores ISR (Intelligence, Surveillance and Reconnaissance), as capacidades A2/AD são percebidas como importantes desafios à projeção de poder dos Estados Unidos (access challenge).
Se, no campo do poder militar convencional, esse novo ambiente estratégico impõe custos cada vez mais elevados ao uso da força (deter e vencer inimigos), desenvolvimentos em diversos sistemas de armas são vistos como afetando a capacidade de dissuasão estratégica (deterrence) estadunidense.
Além da modernização militar em países como Rússia, China, Irã e Coreia do Norte, soma-se como problema a questão da obsolescência de plataformas e de sistemas responsáveis por compor a tríade nuclear das forças armadas estadunidenses. Como todo o equipamento, armas nucleares e seus meios, ou vetores de entrega, também estão sujeitos a perder a validade. Não apenas isso: o panorama supracitado do A2/AD está ligado ao aprimoramento por parte de rivais dos EUA de sistemas missilísticos de alcance variado. São bastante ilustrativos desses desenvolvimentos os testes de mísseis hipersônicos – balísticos e de cruzeiro – sobre os quais se prevê no futuro a possibilidade de se armar com ogivas nucleares.
Como se observa, o cenário atual em que o presidente Trump propõe a possibilidade de realizar testes nucleares é palco de uma possível nova corrida armamentista e segunda guerra fria. Imerso no dilema de segurança acirrado por esse ambiente geoestratégico, restaura-se a urgência do diálogo silencioso entre os contendores, por meio da sinalização de capacidade e credibilidade encarnados nos meios de força nuclear e de seus sistemas de entrega.
Por essa razão, é fundamental nos voltarmos para a Nuclear Posture Review de 2018. Armas nucleares e seus sistemas de apoio são pilares fundamentais para uma estratégia militar coercitiva, em particular de tipo dissuasória, ou de deterrência. Não obstante países que não sejam nuclearmente armados possam se orientar por uma estratégia dissuasória (dissuadir um potencial agressor de seu intento em virtude da capacidade de negação de seus objetivos), países nuclearmente armados podem ir além, através da deterrência (dissuadir um potencial agressor através da certeza de retaliação com armas nucleares contra seus centros de gravidade).
Dilema de segurança no governo Trump
Washington e seus principais contendores possuem o que se convenciona chamar de tríade nuclear, que consiste em plataformas e sistemas de lançamento de armas nucleares, normalmente de alcance intercontinental, por terra (mísseis), mar (submarinos) e ar (bombardeiros estratégicos). No quadro geral de modernização e de proliferação de capacidades no âmbito internacional, o equilíbrio de poder e de terror pode se alterar com consequências para os EUA e para o mundo.
Diante de tal conjuntura, a administração Trump tem diante de si um dilema: reforçar as capacidades militares dos EUA no campo nuclear e seus sistemas de apoio, mesmo que em detrimento da arquitetura internacional de controle de armas, ou buscar se adequar aos regimes vigentes e trabalhar internacionalmente para seu enforcement.
Documentos como a National Security Strategy (2017) e a Nuclear Posture Review (2018) já davam claros indicativos de que a posição do governo Donald J. Trump seria a favor de se engajar na busca da maximização de sua segurança, mesmo que se colocasse em risco os bens globais fornecidos pelos regimes de controle de armas. Em favor dessa interpretação, são ilustrativas a saída dos EUA do INF (Intermediate-Range Nuclear Forces) em 2018 e a declaração, em 2020, de que o país irá abandonar o Open Skies Treaty.
Observe-se que a autopercepção do governo dos Estados Unidos sobre a matéria em tela não compreende sua posição como revisionista, mas como reação ao desrespeito por parte de seus contendores aos ditames dos regimes e tratados de controle de armas. A despeito da sinalização dada por Washington no tocante ao enfraquecimento da arquitetura internacional de controle de armas, os Estados Unidos buscam, possivelmente, condições para negociar uma revisão de uma versão mais recente do New Strategic Arms Reduction Treaty (START), não apenas com a Rússia, mas incluindo também a China.
Seguindo um roteiro já tentado sem sucesso com Irã e Coreia do Norte, calcado em uma barganha de steaks and carrots, o governo Trump tem diante de si o desafio de renegociar um sistema de controle de armas, no momento em que uma nova corrida armamentista poderá subverter o equilíbrio de poder em uma conjuntura geopolítica que parece anunciar uma segunda guerra fria.
* Augusto W. M. Teixeira Júnior é doutor em Ciência Política (UFPE), com estágio de Pós-Doutorado em Ciências Militares (ECEME). Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais (PPGCPRI – UFPB). Pesquisador do INCT-INEU. Foi pesquisador do Núcleo de Estudos Prospectivos (NEP) do Centro de Estudos Estratégicos do Exército (CEEEx/EME) entre 2018 e 2020. Coordenador do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Segurança Internacional (GEESI/UFPB).
** Recebido em 27 de maio de 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.