Economia e Finanças

EUA e União Europeia: soberania econômica e inovação na saúde em tempos de coronavírus

Por Edna Aparecida da Silva*

Competição e protecionismo vêm ganhando força nas respostas dos Estados à pandemia do coronavírus. Embora a natureza global do problema exija cooperação entre Estados e organizações internacionais, os impactos sociais, econômicos e políticos acirraram as tensões entre os países que buscam respostas nacionais para o enfrentamento das várias dimensões da crise sanitária. Destacam-se, nesse contexto, estratégias e políticas para o desenvolvimento e a proteção dos sistemas nacionais de ciência, tecnologia e inovação em saúde, assim como do complexo econômico industrial, para reduzir a dependência externa e as vulnerabilidades expostas pelo estrangulamento da cadeia global de suprimentos.

Isso ocorreu em vários setores da economia e, em particular, no da saúde. Abriu a corrida entre as grandes potências, Estados Unidos, União Europeia e China, para acelerar o desenvolvimento de uma vacina para a COVID-19, posicionando a inovação em biotecnologia no campo das emergências de segurança nacional.

E, nesse campo de questões, emergiu a tensão entre Alemanha e EUA.

Em 15 de março, o jornal conservador alemão Welt am Sonntag divulgou que o presidente Donald Trump teria oferecido US$ 1 bilhão à CureVac, empresa de biotecnologia alemã, para dar acesso exclusivo aos Estados Unidos. O caso despertou reações do governo alemão e envolveu a Comissão Europeia que, além da resposta financeira, elaborou novas regras sobre segurança dos investimentos estrangeiros na União Europeia (UE).

Assim, no último dia 25 de março, o Guidance to the Member States Concerning Foreign Direct Investment and Free Movement of Capital from Third Countries, and the Protection of Europe’s Strategic Assets, ahead of the Application of Regulation (EU) 2019/452 (FDI Screening Regulation) sintetizou as preocupações europeias quanto ao investimento estrangeiro direto (IED), como parte da resposta mais ampla à situação de crise sanitária e econômica. Também reforçou as recomendações a seus Estados-membros com base na regulação aprovada no Parlamento Europeu em 15 de março de 2019.

No documento, as razões, o desenho e o alcance dos mecanismos de revisão de segurança de investimento na UE revelam as tensões internas entre os países do bloco e com os EUA. Isto porque, seguindo as prioridades da agenda geopolítica do mandato de Ursula von der Leyen, mostra o protagonismo da Comissão Europeia na formulação de regulações e na supervisão dos investimentos na UE, avançando no desenho de uma política de segurança de investimento como política do bloco europeu.

EUA e Alemanha em disputa pela inovação em saúde: as respostas da UE

O presidente Donald Trump que, inicialmente subestimou a gravidade da pandemia, adotou o unilateralismo agressivo nas respostas para a crise. Entre suas atitudes, incluem-se o abuso do poder econômico, ao comprar toda produção chinesa de equipamentos de proteção, e a ameaça de cortes nas contribuições para a Organização Mundial da Saúde (OMS). A mais recente envolve a investida americana sobre a empresa alemã de biotecnologia CureVac, para desenvolver a vacina da COVID19 “exclusivamente para os Estados Unidos”. O objetivo de Trump seria deslocar o desenvolvimento da vacina para os Estados Unidos, afinal, a CureVac tem laboratório em Boston.

E por que a CureVac? A empresa está hoje na liderança das pesquisas para o desenvolvimento de uma vacina para a COVID-19 e diz que poderá iniciar a fase de testes em humanos em junho próximo. A CureVac é proprietária da tecnologia RNA mensageiro (mRNA), em desenvolvimento desde 2011, e que poderá ser aplicada em de terapias contra o câncer, terapias com anticorpos, tratamento de doenças raras e vacinas profiláticas.

Como explicou a diretora de Tecnologia da empresa, Mariola Fotin-Mleczek: “A natureza inventou mecanismos para ativar nosso sistema imunológico contra doenças infecciosas. Com nossa tecnologia exclusiva de RNA mensageiro, imitamos a natureza e damos ao nosso corpo as informações sobre como combater o vírus. A combinação da ciência do mRNA, do conhecimento da doença, da formulação e da experiência em produção faz do CureVac um ator único na luta contra qualquer doença infecciosa, independentemente de serem sazonais, ou pandêmicas”.

Segundo seu site na Internet, a empresa conta com diferentes fontes de financiamentos, que incluem recursos da Bill & Melinda Gates Foundation e da Defense Advanced Research Projects Agency (DARPA), agência do Departamento de Defesa dos Estados Unidos voltada para pesquisa.

O presidente Trump e a Curevac negaram as notícias. Para o embaixador americano na Alemanha, Richard A. Grenell, o jornal estava errado. O governo americano declarou que a notícia exagerava, pois os Estados Unidos estão investindo em várias empresas do setor de biotecnologia que alegaram ter condições de desenvolver rapidamente a vacina. Já o CEO Daniel Menichella, cidadão americano que participou da reunião com Trump na Casa Branca, foi substituído no comando da CureVac pelo biólogo alemão Ingmar Hoerr, um dos fundadores da empresa. A mudança destaca a importância da nacionalidade no controle das empresas, o que tem sido uma das diretivas da própria regulação de setores estratégicos nos EUA.

O interessante no caso, independentemente da veracidade das notícias feitas com base em fontes anônimas, são os desdobramentos na Alemanha e na UE.

O ministro alemão da Economia, Peter Altmaier, um ferrenho defensor de uma estratégia industrial nacional e europeia, reagiu dizendo que “a Alemanha não está à venda”. A chanceler Angela Merkel e seu ministro do Interior, Horst Seehofer, destacaram a urgência na discussão de uma estratégia para defesa da indústria alemã: tanto como medida de segurança nacional quanto para formular uma posição comum na Comissão Europeia em resposta à ofensiva de Trump.

Essa mobilização garantiu 80 milhões de euros para que a CureVac mantenha o desenvolvimento da vacina em território alemão. Foi o que defendeu a presidente da Comissão Europeia, conforme o jornal francês Libération: “Nessa crise de saúde, é essencial apoiar nossos pesquisadores e nossas indústrias tecnológicas de ponta. Estamos determinados a fornecer apoio financeiro para a CureVac para acelerar o desenvolvimento e a produção de uma vacina”.

Os recursos para apoiar a CureVac serão aportados pelo Banco Europeu de Investimento (EIB), como parte do programa Horizon 2020, por intermédio do projeto InnovFin Infectious Disease Finance Facility (IDFF). Seu objetivo é fomentar o desenvolvimento de vacinas, medicamentos, dispositivos médicos e de diagnóstico inovadores, ou novas infraestruturas de pesquisa para combater doenças infecciosas.

Já o Horizon 2020 é um programa da UE para o financiamento de pesquisa e inovação, com previsão de um orçamento de 80 bilhões de euros ao longo do período de 2014 a 2020. Em parceria com o setor privado, pretende estimular a liderança industrial e competitividade global da Europa. O programa atua em diversas áreas, como nanotecnologia, tecnologia de informação, inovação em pequenas e médias empresas, saúde, segurança alimentar, agricultura sustentável, bioeconomia, eficiência e segurança energética, questões ambientais, entre outros.

Parte da estratégia europeia de longo prazo para fomentar o desenvolvimento, a autonomia e a competitividade nesses setores da economia, esses mecanismos institucionais estão sendo mobilizados para responder às demandas de emergência da crise sanitária. Em 7 de abril deste ano, por exemplo, a UE anunciou a criação de mais um fundo para financiar pesquisas e inovação sobre o coronavírus. Segundo publicação oficial, o fundo apoiará 18 projetos com 48,5 milhões de euros, que também serão aportados pelo Horizon 2020.

Importante obsevar que, se o debate em torno da securitização da saúde se acirrou com a crise do coronavirus, os programas para setores estratégicos antecederam esse cenário. Além do Horizon 2020 da União Europeia, os investimentos chineses para inovação, pesquisa e desenvolvimento no setor de biotecnologia e indústria farmacêutica já faziam parte do “Made in China 2025”, que abrange não apenas produtos e equipamentos, como também inovação em capacidade clínica e cuidados com a saúde.

Lições da crise financeira de 2008

O Guidance to Members States reforça as recomendações de monitoramento do investimento estrangeiro como parte da segurança nacional e da ordem pública, aprovadas pelo Parlamento Europeu em março de 2019, a 2019/452 (FDI Screening Regulation). A Comissão Europeia quer que os mecanismos de revisão de segurança, existentes até o momento em apenas 14 países europeus, sejam aplicados e alerta para a necessidade adoção por todos os Estados-membros, para responder aos riscos potenciais da crise econômica e sanitária. Importante destacar que são recomendações. A decisão é exclusiva dos Estados-membros, pois envolve segurança nacional e acesso ao território. Ou seja, as análises de investimentos e ações como o bloqueio, ou exigências de mitigação de riscos para um investimento, são responsabilidade dos Estados-membros.

O esforço é justificado por duas preocupações fundamentais, no campo da saúde e da economia. A primeira delas é o avanço do investimento estrangeiro e das aquisições de ativos no setor de saúde, no contexto de emergência da COVID-19. Assim o regulamento aponta os riscos “das tentativas de adquirir capacidades de assistência médica (por exemplo, para a produção de equipamentos médicos, ou de proteção), ou indústrias relacionadas, como pesquisa de estabelecimentos (por exemplo, desenvolvimento de vacinas), por meio de investimento direto estrangeiro. A vigilância é necessária para garantir que esse IDE não tenha um impacto prejudicial sobre a capacidade da UE de cobrir as necessidades de saúde de seus cidadãos”. Segundo, a preocupação de que a crise financeira, com a desvalorização de ativos e títulos, facilite as aquisições e takeovers de empresas europeias por investidores estrangeiros de ativos críticos e de tecnologia.

Fica clara a lição da crise de financeira de 2008, quando o investimento global chinês foi inicialmente recebido como alternativa para a crise nos Estados Unidos e na Europa e, depois, tornou-se alvo das políticas de exceção de segurança. A crise do euro favoreceu a ampliação do investimento chinês na Europa, do mesmo modo que em países como Grécia e Portugal, com programas de privatização e políticas de atração de investimento. No caso da cooperação chinesa com os países da Europa Centro Oriental (CEE), surgiu o “17+1”, parte da iniciativa chinesa Belt and Road, com investimentos no setor de energia e infraestrutura.

Os Estados mais fortes, como Alemanha e França, tem impulsionado a discussão dos temas de segurança de investimento no âmbito das instituições europeias, para conter a expansão e a concorrência com o investimento chinês no bloco e mesmo sua influência política, como tem acontecido no grupo “17+1”. Apesar das iniciativas de cooperação e de negociações comerciais, a UE declarou a China um “rival sistêmico e competidor estratégico”.

No cenário de crise da COVID-19, as regulações não estão exclusivamente direcionadas para o investimento chinês e poderão incluir, como mostrou o caso CureVac, os Estados Unidos.

Principais aspectos das diretrizes da UE

“A União Europeia está aberta ao investimento estrangeiro, que é essencial para o crescimento, competitividade, emprego e inovação”. Com essa afirmação, o Regulamento da UE reitera o compromisso com a política de abertura e liberdade de movimentos de capitais no bloco e nas suas relações com países terceiros, lembrando que as empresas europeias estão integradas nas cadeias globais de suprimento.

Por isso, o uso de restrições ocorrerá apenas como política de exceção, ou seja, quando envolverem objetivos legítimos de política pública e razões de interesse geral, como preservação da ordem, segurança e saúde públicas, e não por motivos puramente econômicos, com base nas disposições do 2019/452 aprovadas em março de 2019 pelo Parlamento Europeu.

Em vídeo, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, explicou que agora os europeus querem saber qual o propósito do investimento direto e, assim, evitar a vulnerabilidade da UE. Ela destacou os instrumentos disponíveis para proteção dos ativos críticos de tecnologia, pedindo aos Estados-membros que monitorem o investimento estrangeiro direto e as aquisições de controle, ou de influência, sobre empresas europeias. Os países devem usar seus mecanismos de revisão, e os que ainda não têm – sugeriu a presidente – “é hora de criar”. A mensagem foi bem clara: a União Europeia permanece aberta ao investimento estrangeiro, mas pretende equilibrar esse compromisso com a preservação de sua “soberania econômica”.

Entre os vários aspectos do Regulamento europeu, destacamos o papel da Comissão Europeia no monitoramento das políticas de investimento dos Estados-membros. No caso de um investimento estrangeiro não ser submetido a um processo de rastreio nacional, os “Estados-Membros e a Comissão podem apresentar comentários e pareceres no prazo de 15 meses após a conclusão do investimento estrangeiro. Isto pode levar à adoção de medidas pelo Estado-Membro onde o investimento teve lugar, incluindo as medidas mitigadoras necessárias”. Isso altera o cenário do investimento na União Europeia e cria tensões entre os Estados europeus que têm diferentes perspectivas sobre o papel do IED e das relações com a China, bem como cria um sistema de monitoramento interno sobre as políticas no âmbito dos Estados nacionais.

UE e EUA: cenário geopolítico do investimento estrangeiro

Vistos em conjunto, o Regulamento de 17 de março e a regulação de investimento 2019/452 reforçam os objetivos do mandato da presidente Ursula von der Leyen (2019-2024) para uma agenda mais geopolítica da Comissão. Em relação à política de investimento estrangeiro, destacam-se três ordens de questões no cenário geopolítico.

Primeiro, a resposta da Comissão Europeia a Trump, em defesa da soberania econômica, revela o cenário da mobilização política para proteção da inovação, ativos estratégicos e da capacidade industrial europeia. Indica que a busca de respostas para a crise sanitária está sendo tratada como parte das disputas pela recuperação das economias nacionais. Portanto, os mecanismos de revisão de segurança não visam apenas à China, ou à Rússia, mas também aos Estados Unidos, em um esforço de proteção do mercado europeu e dos interesses estratégicos do bloco.

Segundo, coloca em evidência as divergências sobre a política de revisão de investimento estrangeiro do bloco, internamente entre os Estados e de suas relações com a China.

Por fim, sinaliza a ampliação da agenda e da atividade das instituições europeias sobre regulações de investimento como questão de segurança nacional, tema de jurisdição exclusiva dos Estados-membros. Isso coloca a questão no campo político mais amplo das relações euro-americanas. A ideia de um sistema de monitoramento do investimento no âmbito europeu, como uma política regional, vai contra a posição dos EUA, já que reduziria o campo para pressões sobre os Estados nas relações bilaterais assim como para a aplicação extraterritorial de sua própria regulação de segurança de investimento.

O Foreign Investment Risk Review Modernization Act (FIRRMA) de 2018 (H.R. 5515), lei que reformou o Comitê de Investimentos Estrangeiros nos Estados Unidos (CFIUS) e os controles de exportação, prevê que os Estados Unidos realizem um esforço internacional junto aos aliados e parceiros para adotarem processos semelhantes ao do CFIUS para rastrear investimentos estrangeiros com riscos de segurança nacional, coordenando suas respostas. O texto cita como “aliados” os maiores investidores na economia americana – Reino Unido, Japão, Alemanha, França, Canadá, Suíça e Holanda –, que “representaram 72,1% do valor agregado das afiliadas estrangeiras nos Estados Unidos e mais de 80% das despesas de pesquisa e desenvolvimento dessas entidades” (H.R. 5515-540).

Sobre esse aspecto, a análise de T. Bromund, da Heritage Foundation, observa que essas regulações de segurança nacional teriam sido pensadas pelos EUA como mecanismo para proteção das empresas e das capacidades nacionais das “democracias ocidentais contra os investimentos de autocracias, da China e da Rússia”. Para o autor, o governo norte-americano rejeitará uma política europeia de monitoramento dos investimentos estrangeiros, como um sistema do bloco, e não de Estados nacionais, assim como sua aplicação dos investimentos americanos.

Essas questões terão desdobramentos importantes para as relações da União Europeia com a China e com os Estados Unidos, assim como na agenda da economia política internacional, uma vez que tratam do desenho das políticas de investimento e regulação do movimento de capitais. No cenário atual, as estratégias para o enfrentamento das consequências da COVID-19 e para a recuperação das economias nacionais em face da crise econômica global compõem uma agenda única que articula a competição entre os Estados.

 

* Edna Aparecida da Silva é cientista política e pesquisadora do INCT-INEU.

** Recebido em 14 abr. 2020. Este Informe não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.

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